segunda-feira, 30 0aio 2016
Em meados de maio, a entidade católica
Little Sisters of the Poor
recebeu da Suprema Corte dos EUA
o
direito de não ter de se submeter às diretrizes impostas pelo novo programa
de saúde —
o Obamacare
— do governo federal americano.
Para resumir o caso em duas frases: a instituição
católica não aprova a diretriz do Obamacare que impõe que empregadores têm de
pagar um plano de saúde para seus empregados que conte com "coberturas médicas
relacionadas ao aborto". Isso significa
que as Little Sisters tinham duas
opções: ou elas obedeciam e pagavam por serviços relacionados ao aborto nos
planos de saúde fornecidos aos seus empregados, ou elas não obedeciam e pagavam
uma pesada multa.
Mas então, no dia 16 de maio, a Suprema Corte
ordenou aos tribunais de primeira instância que encontrassem uma maneira de
resolver a situação de modo a não violar as convicções religiosas das Little Sisters.
Isso está sendo comemorado por vários comentaristas
como sendo uma vitória da liberdade religiosa.
No entanto, decisões judiciais e estatutos protegendo a liberdade
religiosa jamais deveriam ser necessários para preservar a liberdade religiosa
de ninguém. A entidade católica teria
sido muito mais bem protegida caso houvesse um simples respeito aos
tradicionais direitos de propriedade.
Afinal, em um ambiente legislativo que não obrigasse
as pessoas a pagarem por coisas que consideram imorais — baseadas em qualquer
ideologia religiosa ou laica —, as Little
Sisters jamais teriam sido colocadas nessa situação.
Se o estado respeitasse o direito de livre
associação da entidade católica, bem como o direito de fazer o que quiser com
sua propriedade honestamente adquirida, então não há nem espaço para questionar
se a entidade deve ou não ser forçada a pagar pelo aborto de terceiros. As Little Sisters deveriam ser simplesmente
deixadas em paz. Um indivíduo que
não concordasse com a política da entidade de não cobrir serviços relacionados
ao aborto nos planos de saúde de seus empregados seria totalmente livre para não trabalhar para a entidade.
Todos
os direitos humanos são baseados em direitos de propriedade
A crucial importância dos direitos de propriedade se
estende a absolutamente todos os campos.
Em seu livro Man,
Economy, and State, Murray Rothbard abordou o problema no contexto da
liberdade de expressão:
Peguemos,
por exemplo, o "direito humano" à liberdade de expressão. Supõe-se
que a liberdade de expressão significa que todos têm o direito de dizer o que
bem entenderem. Mas a questão negligenciada é: onde? Onde um indivíduo possui esse direito? Certamente ele não possui esse direito em uma
propriedade que esteja invadindo.
Em
suma, ele possui esse direito apenas em sua própria propriedade ou na
propriedade de alguém que concordou voluntariamente — seja por meio de um
contrato de aluguel ou mesmo por um ato de generosidade — em conceder a ele o
espaço determinado.
Portanto,
na realidade, não existe isso de "direito à liberdade de expressão";
existe apenas o direito de propriedade de um indivíduo: o direito de ele fazer
o que quiser com o que é seu ou de fazer acordos voluntários com outros
indivíduos que, por possuírem uma propriedade, concedem a este indivíduo o
direito de utilizá-la para fazer o seu discurso ou escrever o seu artigo.
No caso das Little
Sisters, elas têm sido relativamente livres para praticar sua religião não
por causa de uma liberdade religiosa especial ou específica, mas sim porque
eles têm podido exercer seus direitos de propriedade.
Especificamente, as Little Sisters têm conduzido seus negócios privados em sua própria
propriedade ou em locais cujos proprietários deram a elas a permissão de
fazê-lo. Os empregados da entidade
trabalham para ela por livre e espontânea vontade, e a entidade possui (uma
relativa) liberdade de associação com seus empregados. Ninguém obrigou ninguém a trabalhar para a
entidade. Tampouco as Little Sisters se forçaram para cima de
terceiros. Ou seja, elas foram livres
para fazer e dizer coisas — de acordo com suas crenças religiosas — em
qualquer lugar para o qual foram livremente convidadas para fazê-lo.
Por outro lado, a entidade não era livre para
praticar sua religião em locais cujos proprietários não as convidaram e nem as
queriam, como dentro de uma mesquita ou de qualquer outra propriedade cujo dono
não queria as Little Sisters por
perto. Obviamente, uma mesquita se recusar a não abrir espaço para que as Little Sisters ali pratiquem sua
religião católica não configura uma "censura" ou uma violação da "liberdade
religiosa".
E quem pode dizer que há algo de errado nesse
arranjo? Trata-se simplesmente de uma
situação na qual pessoas livres exercem livremente seus direitos de
propriedade. Na sua propriedade só entra
quem você quiser. E tal pessoa só pode
falar aquilo que você aprovar. Caso tal
pessoa esteja insatisfeita com o arranjo, ela pode simplesmente se retirar da
sua propriedade.
Tal raciocínio pode ser perfeitamente aplicado à
liberdade de expressão e, principalmente, à liberdade de imprensa. Ninguém tem o direito de dizer o que quiser
onde quiser. Por exemplo, uma pessoa
jamais teve e — torçamos! — jamais terá o "direito" de escrever o que quiser
em um jornal. Pessoas só podem escrever
coisas em jornais se os proprietários destes jornais assim permitiram. Qualquer outro arranjo configura agressão à
propriedade privada. [N. do E.: imagine se este site fosse obrigado a conceder
"liberdade de expressão" a Leonardo Sakamoto?]
Consequentemente, tudo o que é necessário para que
haja liberdade de expressão é permitir que proprietários de jornais — ou de
portais de internet, ou de livrarias, ou até mesmo de saboneteiras — exercitem
seus direitos de propriedade.
No entanto, tão logo o estado se intromete, a
situação muda inteiramente. Se os
governos começarem a determinar o que jornais podem e não podem publicar, estará
havendo uma restrição dos direitos de propriedade destes veículos.
Similarmente, a liberdade religiosa das Little Sisters só se torna restringida
quando o estado começa a determinar como a entidade deve interagir com seus
empregados ou como ela deve gastar o próprio dinheiro. Sim, a liberdade religiosa está sendo
restringida, mas somente porque os direitos de propriedade da entidade foram
violados.
Exatamente por isso Rothbard igualou todos os
direitos humanos aos direitos de propriedade.
Disse ele:
O
conceito de "direitos" somente faz sentido se eles são entendidos a
partir do conceito de direitos de propriedade.
Pois não apenas não existem direitos humanos que não sejam também
direitos de propriedade, como todos esses direitos perdem sua
incondicionalidade e clareza, e se tornam confusos e vulneráveis, quando os
direitos de propriedade não são usados como padrão.
A
propriedade é algo mais concreto que a consciência
A afirmação de Rothbard de que os direitos de
propriedade são mais concretos também é de especial importância. Afinal, se começarmos a análise baseando os
direitos na religião em vez de na propriedade, então imediatamente nos veremos
em uma situação em que o estado terá de ter o poder para definir o que é e o
que não é religião. Pior ainda: o estado
estará na posição de julgar quais são as motivações
de uma pessoa ou de uma organização, e se tais motivações são ou não de
natureza religiosa.
Por exemplo, quem poderá dizer com absoluta certeza
que as motivações das Little Sisters
eram realmente religiosas? Afinal, elas
também poderiam ser financeiras (ter menos gastos com os planos de saúde de
seus empregados). Se o estado tiver o
poder de decidir que a entidade tinha motivações financeiras e não religiosas,
então aqueles que dependem da liberdade religiosa para se proteger não mais
teriam qualquer defesa contra os decretos do estado. Somente se os juízes dos tribunais (entidades
estatais) lessem a mente das Little
Sisters e decidissem que suas motivações são de fato religiosas, estaria a
entidade livre para exercer seu mais básico direito de propriedade.
Mas as coisas podem se tornar ainda mais obscuras.
Por exemplo, no caso das Little Sisters, a entidade se beneficiou do fato de pertencer a uma
grande e bem conhecida religião, com visões claras e milenarmente estabelecidas
sobre o assunto. Mas e se estivéssemos
lidando com um indivíduo, ou mesmo com um grupo de indivíduos, que segue uma religião
mais obscura, cujas visões são bem menos fáceis de ser identificadas? Neste caso, teríamos juízes, promotores e
advogados debatendo quais realmente são as crenças religiosas desse grupo
específico, e se elas são ou não aplicáveis a uma situação específica. Obviamente, esse debate ideológico está muito
além da competência do estado.
Essa é exatamente a estrada nebulosa e amorfa que
começamos a trilhar tão logo abandonamos o conceito de direito de propriedade e
começamos a falar exclusivamente sobre "liberdade religiosa".
Adicionalmente, observe que o argumento da liberdade
religiosa protege somente a liberdade de pessoas que fazem parte de uma
instituição religiosa.
Um católico tradicional, por exemplo, que gerencia
um pequeno empreendimento familiar, ainda continua sendo forçado a violar seu
próprio credo religioso pelo Obamacare, pois os juízes estatais provavelmente
concluiriam que suas motivações em não pagar aos seus empregados um plano de
saúde que cobre serviços relacionados ao aborto são majoritariamente
financeiras, e não exatamente religiosas.
Pouco importa para o estado se esse pequeno empreendedor enxerga o seu
empreendimento como um esforço religioso — como é o caso das Little Sisters.
Você
é suficientemente religioso para ter liberdade?
Como ilustração adicional para as armadilhas por trás
de nomear juízes como árbitros das motivações e das consciências privadas,
podemos olhar para o problema da objeção consciente. O alistamento militar obrigatório sempre
representou uma das mais explícitas violações dos direitos de propriedade de um
indivíduo, mas há governos que foram politicamente obrigados a permitir exceções
baseadas em razões religiosas e ideológicas.
Em vez de se guiar pelo mais básico direito de
propriedade de cada indivíduo (o direito de propriedade sobre o seu próprio corpo)
— algo que naturalmente invalidaria o alistamento militar compulsório —, o
governo recorre à amorfa e arbitrária tarefa de determinar se as convicções pacifistas
de um indivíduo são suficientemente fortes para lhe assegurar uma objeção
consciente. Neste ponto, o indivíduo que
se opõe está na posição de fazer argumentos teológicos — ou alegações sobre
seu estilo de vida e hábitos diários — para provar que é um pacifista. O estado então terá de analisar há quanto tempo este indivíduo possui e
segue tais convicções. Você decidiu se
tornar um pacifista apenas seis meses antes de ser recrutado? Lamento.
O estado pode decidir — baseando-se em padrões completamente
arbitrários — que seis meses não são o suficiente para "provar" suas convicções
ideológicas ou sua religião.
A irracionalidade e a arbitrariedade desse processo são
totalmente insensatas. Nenhum arranjo minimamente
racional as aceitaria. E, no entanto, é
exatamente tal procedimento que é adotado quando os governos decidem as coisas
com base em religião, consciência e motivações internas.
Este caso, obviamente, é apenas mais um exemplo de
como os direitos de propriedade também protegem os direitos de um indivíduo que
faz uma objeção consciente, sem que ele tenha de recorrer a quaisquer direitos
especiais de consciência ou religião. Por
exemplo, qualquer Quaker que
pudesse simplesmente exercer seu direito de propriedade sobre o próprio corpo
teria a permissão de exercer integralmente suas convicções religiosas de jamais
empunhar uma arma.
Assim, em ambos os casos, o argumento da liberdade
religiosa é incapaz de proteger a maioria das pessoas. As únicas exceções são aquelas que souberam
preencher corretamente a papelada do governo e cumpriu corretamente todos os padrões
arbitrários estipulados pelo estado para provar suas crenças pessoais de modo a
satisfazer os tribunais. Você possui a documentação
correta para provar sua afiliação a religiões pacifistas? Você possui um carimbo comprovando que seu
empreendimento possui uma missão religiosa, o que lhe isentaria de financiar o
aborto de terceiros?
Se direitos humanos essenciais dependem dessa
burocracia, então, obviamente, não mais há direitos humanos essenciais. E é isso o que ocorre quando se ignora os
direitos de propriedade.
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Leia
também:
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"direitos humanos"
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fazer com que os "direitos sociais" sejam mantidos para sempre
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espontânea e não algo deliberadamente criado por "iluminados"