Nota do Editor
O artigo a seguir foi originalmente publicado no longínquo fevereiro de 2016. Sua previsão a respeito do massacre de eventuais outsiders foi certeira, assim como sua constatação de que o establishment sempre reage a "intrusos".
Já a previsão de que o autoritarismo estatal estava em franco recuo por causa das inovações tecnológicas foi tragicamente refutada não só pela Covid-19 como também pela parceria do estado com essas mesmas empresas de tecnologia, que passaram a censurar informações.
Fica um convite ao leitor para estipular se o artigo acertou mais do que errou em suas previsões.
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Há sempre aqueles defensores da liberdade que, ao
verem a ascensão de candidatos que representam uma ameaça à ordem política
estabelecida — como o caso de Donald Trump —, se
sintam animados, pois isso, segundo eles, representa um aberto descontentamento
com o status quo.
Mas há um problema: o poder estatal ao qual nos
opomos não é idêntico à elite governante (o establishment)
que rejeitamos. É perfeitamente possível
você derrubar o establishment e,
ainda assim, ficar com uma gigantesca máquina de exploração legalizada. Todas as agências reguladoras, todas as leis
criadas por políticos, todas as regulamentações, todas as empresas em conluio com o estado, e todos os demais poderes estatais
continuam intactos.
E com um novo problema: outra pessoa estará agora no
comando do estado. Simplesmente houve
uma troca da elite governante. E o novo establishment pode ser ainda pior do que
aquele do qual você acabou de se livrar.
Com efeito, normalmente é.
A
anatomia do establishment
O que é um establishment?
Trata-se de uma grande rede de lobistas e grupos de
interesse, que cooperem entre si e que já desenvolveram uma confortável, longa
e estável relação com o poder estatal. O
establishment inclui os grandes
bancos, as empreiteiras que conseguem contratos polpudos com o estado, os
grandes sindicatos, o funcionalismo público, as grandes indústrias protegidas
por tarifas de importação, as grandes empresas em conluio com o estado e protegidas por agências
reguladoras e, acima de todos, o judiciário, que empresta a tudo isso o manto da legalidade.
Todas essas instituições
operam em uma relação de troca de favores com os políticos, com os burocratas responsáveis
pelas regulamentações, com as famílias tradicionais da política, com os
intelectuais e jornalistas pró-estado etc.
A história é antiga. A Rússia czarista já apresentava um establishment
profundamente enraizado: a igreja, as grandes empresas, o governo e a
aristocracia — todos atuavam em conjunto por meio de uma estável e confortável
relação. A corrupção era explícita. E então, a partir de 1915, com a guerra, com
o recrutamento compulsório e com a inflação galopante, a situação se tornou intolerável. O establishment fracassou e foi
derrubado. O que surgiu em seu lugar foi
um governo de transição e, em seguida, o regime bolchevista.
A República de Weimar, na Alemanha, também tinha um establishment enraizado: grandes bancos,
governo, grandes empresas e todo o estamento burocrático trabalhavam em
conjunto. A corrupção era óbvia. E então se tornou intolerável com a hiperinflação
e com a profunda recessão econômica. As pessoas
sofrerem profundas privações e começaram a buscar respostas. Nesse ambiente, a mensagem e os discursos de
Hitler começaram a ressoar e ele passou a ser visto como um mensageiro da
verdade. Ninguém esperava os resultados.
A lista de establishments
fracassados que foram substituídos por outros ainda piores é, com efeito, bem
longa: no século XX, México, Rússia, Espanha, Itália, Cuba, Argentina, Venezuela; no século atual,
Iraque, Síria e Líbia.
A fusão entre estado e establishment fez com que vários movimentos revolucionários dessem
errado. O Leste Europeu derrubou seus establishments em 1989, mas manteve seus
estados, dando origem a economias mistas e social-democratas. A Rússia se livrou dos bolcheviques em 1990 e
colocou em seu lugar uma oligarquia autoritária. Sim, em ambos esses casos, os regimes subsequentes
eram melhores do que os anteriores. Porém,
como bem ilustram os exemplos italiano, russo, francês e alemão, isso nem
sempre ocorre. Os resultados diferem de
acordo com os planos e desígnios dos novos detentores do poder.
Revolução
boa?
O caso clássico de uma revolução tida como
bem-sucedida é a Revolução Americana. Segundo
seus apologistas, os americanos se livraram da monarquia britânica e inventaram
o conceito de liberdade. Mas será? A própria guerra pela independência criou um
novo establishment formado por políticos,
generais militares, financistas que emprestavam dinheiro para o governo, e
latifundiários influentes.
Doze anos após
a Declaração de Independência, estes grupos se uniram e formaram um novo
governo que, com o tempo, se tornou tão opressivo e restritivo quanto — em alguns quesitos, muito
mais que — aquele que os revolucionários derrubaram.
E isso ocorreu não obstante a existência de uma
cultura intelectual — bem como de normas políticas — de cunho
liberal-clássica.
Não obstante todo esse passado, vários dos atuais defensores
da liberdade se tornaram tão extasiados com a ideia de simplesmente se opor ao establishment, que acabaram perdendo o
foco do real objetivo, que é estabelecer a liberdade. É por essa razão que, em vários países,
muitos estão se deixando levar pelas mensagens de políticos sedizentes outsiders que alegam merecer seu
apoio em suas cruzadas eleitorais pelo simples fato de serem abertamente vocais
contra o establishment.
A questão é: por que isso seria positivo para a
liberdade? Tais pessoas, mesmo que
genuinamente bem intencionadas, praticamente nada podem fazer para desmantelar
o establishment e todo o poder
estatal.
Em outras ocasiões, já escrevi que não é a
classe política quem comanda as coisas. Políticos vêm e vão. A
classe política é apenas o verniz do estado; é apenas a sua face pública. Ela não é o estado propriamente dito. Quem de fato comanda o estado, quem
estipula as leis e as impinge, é a permanente estrutura burocrática que comanda
o estado, estrutura esta formada por pessoas imunes a eleições. São
estes — os burocratas, os reguladores e todas as grandes empresas em conluio com eles — que compõem o verdadeiro aparato controlador
do governo.
O establishment
é como Maquiavel descreveu: uma máquina estável que mantém seus desafiadores
acuados e que sempre procura fazer o sistema funcionar em benefício de si próprio. O establishment
resiste a qualquer arroubo revolucionário ou reacionário que possa causar
tumulto e, consequentemente, atrapalhar um esquema tão bem está lhe servindo.
A
fogueira das vaidades
Para entender Maquiavel, tenha em mente que sua
besta-fera foi o clérigo Savonarola, o
proto-ditador de Florença que liderou um movimento de massa formado por malucos
pietistas que praticavam a pilhagem e queimavam posses materiais acreditando
que isso seria um caminho para o céu. A Fogueira das
Vaidades, 1487, foi um dos resultados.
Este é exatamente o tipo de comportamento que os establishments se esforçam para manter
reprimido.
É o ápice da ingenuidade política e da ignorância histórica
acreditar que o populismo anti-establishment e a defesa da liberdade humana são
aliados na mesma batalha. Não são.
Veja os casos recentes do Iraque e da Líbia. A julgar pelos relatos, as massas estavam
lutando contra déspotas e fazendo de tudo para serem derrubados, com a esperança
de ter um futuro com direitos humanos e democracia. O que obtiveram foi o total oposto. Tarde demais as massas perceberam que os tão odiados establishments que compreensivelmente estavam tentando derrubar era
tudo o que havia entre elas e o reinado do terror irrestrito.
Esse é o problema com as revoluções políticas: um
grupo de pessoas lidera a revolução enquanto todos os outros apenas seguem. Se a revolução for bem-sucedida, os líderes
esperam ser recompensados. E a principal
recompensa é o controle do aparato estatal que irá assumir o lugar do establishment que foi derrubado. Faz sentido que o novo regime seja ainda mais
impiedoso, implacável, vingativo e sanguinário do que tudo o que veio
antes. Apenas pense em Cuba.
Isso, obviamente, não é um argumento em defesa do establishment. É, isso sim, um argumento contra a adoção de
uma postura anti-establishment como sendo a ideal. O ideal é a liberdade, e não a simples derrubada da estrutura das atuais
elites governamentais. Um populismo
desenfreado e irrestrito pode ser um inimigo da liberdade tão grande quanto o
domínio de uma elite governamental já enraizada.
É de extrema importância atentarmos para essa diferença. Um movimento em prol de uma liberdade
duradoura tem de pensar no longo prazo, e jamais pode se deixar encantar pela
lábia de outsiders e de partidos que prometem resultados imediatos, por mais
afinados que estejamos com as palavras proferidas por eles. O objetivo, além da derrubada do establishment, é sua substituição por
uma sociedade de direitos
humanos negativos e que funcione de acordo com padrões civilizados.
De
cima para baixo ou de baixo para cima?
Golpes políticos feitos de cima para baixo são particularmente
perigosos na atualidade. O establishment já está um tanto perdido
por causa das inovações tecnológicas. A elite
governante está gradualmente perdendo o controle das comunicações, da educação,
do desenvolvimento industrial, do planejamento civil, do consumo e de quase
todo o resto. Os modelos antigos se
tornaram antiquados e desacreditados, e os novos os estão substituindo,
organicamente, de maneira duradoura.
Um novo autocrata, seja de esquerda ou de direita,
pode colocar tudo isso em risco. Um movimento
político impulsionado pelo ressentimento pode conferir poder a uma nova forma
de controle oligárquico, resultando em uma calamidade que ninguém almejava — e
que, tão logo tenha poder, ninguém poderá controlar.
É por isso que uma postura anti-establishment, embora crucial, não será bem-sucedida caso seja adotada sem o respaldo de ideias pró-liberdade. É esta filosofia que será crucial para a vitória final. Se os adeptos do movimento não estiverem em sintonia com esta filosofia, as chances de sucesso são pequenas.
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