Já estreou no Netflix "
A
Grande Aposta" (
The Big Short), baseado
no
livro
homônimo de Michael Lewis sobre a crise financeira de 2008. O filme é ao mesmo
tempo excelente e terrível.
Em termos de narrativa sobre uma bolha financeira, e
de todas as manias que ela gera, o filme é espetacular. Mas em termos de analisar as reais causas
dessa bolha ou mesmo de apresentar um caminho para soluções futuras, o filme é
um desastre.
Não há dúvidas de que o filme está tendo um grande
impacto e está sendo propagandeado como "o filme" a ser visto sobre o evento
econômico desta geração. Os críticos do The New York Times afirmaram que o filme merece ser o ganhador do
Oscar de melhor filme. Paul Krugman
concorda, dizendo
que: "Creio que o filme faz um excelente trabalho em mostrar de maneira
divertida as trapaças de Wall Street... o filme mostra corretamente as partes
essenciais da crise financeira."
Por
que os odiadores do mercado adoraram
Krugman e companhia gostaram do que viram porque o
filme deixa de fora — sim, ignora por completo — qualquer discussão sobre o
principal culpado pela crise financeira.
Sim, os bancos forneceram crédito fácil para todos, mas quem
possibilitou esse crédito fácil?
O culpado da crise financeira não foi a "ganância"
de Wall Street, mas sim as
políticas monetárias e de crédito fácil do Federal Reserve (o Banco Central
americano) e do próprio governo americano.
Wall Street ficou bêbada, mas quem serviu as bebidas foi o Fed e quem
obrigou as pessoas a se embebedaram foi o governo americano por meio de políticas voltadas para a
facilitação da aquisição de imóveis.
É estranho que esses dois tenham ganhado um passe livre no filme. O filme, aliás, mal alude a qualquer fator
exógeno.
Por isso a turma defensora de mais regulação está
vibrando. Aos espectadores do filme não
é fornecida nenhuma informação explicativa sobre os verdadeiros fatores
causadores da crise financeira.
Consequentemente, esse vácuo é preenchido pela mera afirmação de que os
bancos simplesmente adoram espoliar as pessoas.
[N. do E.: o que é verdade, como detalhado neste artigo;
mas culpar apenas os bancos é desonestidade intelectual e pura manifestação
ideológica].
Para ser franco, se você for assistir a esse filme
já possuindo algum conhecimento sobre economia e sobre política monetária, todo
o resto da narrativa fará sentido. É
óbvio que Wall Street fez besteira e nem poderia ser diferente, considerando todas as políticas criadas
pelo governo americano para facilitar e incentivar empréstimos para a aquisição
de imóveis. Não há intervenção que
não gere consequências não-premeditadas.
No entanto, se este filme fosse a sua primeira e
única exposição à história da crise financeira, e você nada soubesse sobre ela,
é fácil entender por que uma pessoa sairia da sala do cinema pensando: "Nossa,
Wall Street e todo o sistema capitalista não passam de um grande esquema
fraudulento! Precisamos
desesperadoramente de um governo poderoso para controlar tudo isso!" Sendo que foi o governo quem incentivou tudo isso...
Mas há também pontos positivos e temos de ser
justos: o filme também mostra, e de maneira competente, como os grandes bancos
comerciais, os bancos de investimento, as agências de classificação de risco e
os reguladores trabalharam
em conluio para aproveitarem ao máximo o período do inchaço da bolha e, ao
mesmo tempo, postergarem até o ultimo minuto possível o estouro da bolha e a
subsequente correção.
Como novas regulações iriam corrigir isso é algo que
ninguém explica — afinal, quem irá regular os reguladores?
O
mérito do filme
A maior virtude de A Grande Aposta está em explicar os bizarros produtos financeiros
que haviam se tornado moda antes da crise.
E o filme faz um trabalho magistral em explicar como funciona um "título
lastreado em hipotecas" (mortgage-backed
security — MBS), e como este
título se transformou em uma "obrigação lastreada em dívida" (collateralized
debt obligation — CDO), e em seguida em um "CDO sintético", sendo então
despejado no mercado como um "investimento de qualidade" (por obra e graça das
agências de classificação de risco, que usufruem um monopólio
concedido pelo governo).
Analisando-se puramente como uma peça de jornalismo
descritivo, o filme faz um grande serviço ao desnudar os disparates financeiros
— que haviam se tornado moda à época — e revelar toda a insustentabilidade da
bolha imobiliária e do boom financeiro da primeira metade da década de 2000.
Adicionalmente, qualquer filme que consiga descrever
de maneira interessante o mercado financeiro e os ciclos econômicos é digno de,
no mínimo, uma menção honrosa. Tais
filmes nos lembram do quão importante é a economia em nossas vidas. A economia é o instrumento teórico que nos
permite entender como os seres humanos estão evoluindo em sua permanente
batalha contra a pobreza, contra a insegurança, contra as doenças e contra a
morte prematura, e é por isso que o assunto merece ser estudado por qualquer
pessoa.
Há outro aspecto excelente em A Grande Aposta. O filme
sutilmente transforma especuladores — mais especificamente aqueles que fazem "vendas a descoberto"
(os short-sellers), apostando que os
valores financeiros das ações e dos títulos irão cair — em heróis. Já era hora.
Especuladores sempre foram demonizados como inimigos do povo. Já o filme, corretamente, mostra que especuladores são
pessoas dispostas a correr altos riscos baseando-se em uma opinião majoritariamente
contrária à opinião dominante, desta forma efetuando o valioso feito de moderar
a exuberância quando esta se torna injustificada. Sendo assim, é interessante constatar que a
esquerda, ao vibrar com o filme, está explicitamente concedendo aos
especuladores status de heróis. Que bom.
Estranhamente, o filme critica a ganância e a
riqueza de Wall Street, mas acaba celebrando um punhado de especuladores espertos
que ganharam bilhões de dólares apostando contra milhões de infelizes compradores
de imóveis. Talvez de maneira não
intencional, A Grande Aposta despreza
décadas de retórica esquerdista contra os especuladores — especialmente contra
os especuladores que fazem "vendas a descoberto", as quais derrubam os valores
dos ativos —, e os transforma em gênios quem merecem cada centavo de seus
ganhos.
Krugman pergunta se o filme mostra a história de
maneira correta, e ele próprio responde que sim, embora alerte que os elos
causais nem sempre são explicitados. Ele
está correto quanto a isso. A Grande Aposta é uma grande história
sem uma teoria coerente. Qualquer que
seja a teoria que você traga para o filme, esse será a teoria que você verá
sendo reforçada pela narrativa.
Assim como uma perspectiva keynesiana pode ser lida
no filme, uma perspectiva pró-mercado sobre como o colapso de um setor
imobiliário — que foi artificialmente inflado pelo governo e pelo Banco
Central — deixou de joelhos alguns dos mais poderosos agentes de Wall Street
também pode ser encontrada.
A
narrativa ausente
Sem uma teoria robusta, A Grande Aposta trata as atividades no mercado financeiro antes do
colapso como se fossem apenas um esquema malicioso. Os corretores imaginavam que haviam
descoberto um caminho mágico para a riqueza infinita e se tornaram
horrivelmente céticos em relação à artificialidade de tudo aquilo, empurrando
papeis sem nenhum valor para compradores que nada suspeitavam. É essa percepção que sustenta os reiterados
pedidos de processos criminais contra os presidentes dos bancos e das
corretoras.
Para um olhar mais realista, e mais humano, da
maneira como os mercados financeiros funcionam, o filme Margin Call - O Dia Antes
do Fim (N. do E.: em exibição no
Netflix) fornece uma excelente "visão dos bastidores" durante um dia
dramático em um fundo de investimentos.
Essas empresas não eram, como um todo, conduzidas
por criminosos. Ao contrário, elas
estavam simplesmente obedecendo aos sinais de mercado que chegavam até elas,
exatamente como deveriam fazer (ao menos em teoria). Elas criaram um modelo que presumia que o
comportamento passado persistiria no futuro.
O modelo funcionou — até o momento em que parou de funcionar.
Quando chega este momento, tudo se torna uma questão
de vida ou morte nos negócios. A pressa
para sair do mercado antes do colapso leva a uma liquidação de títulos — que
brevemente não valerão mais nada — a preços vigentes de mercado. E quando o valor dos títulos cai a zero, as
cabeças rolam. Até aí, o mercado estava
funcionando exatamente como deveria, ou seja, corrigindo os excessos e punindo
os culpados. Mas então os mais poderosos
jogadores da indústria foram socorridos por políticos que utilizaram caminhões
de dinheiro de impostos.
O filme Margin Call - O Dia Antes do Fim
mostrou que o mercado financeiro estava funcionando como deveria, seguindo os
sinais de lucros e prejuízos que estavam sendo emitidos. Este filme é tão interessante quanto — ou
talvez ainda mais interessante que — A
Grande Aposta. O drama é intenso e o
filme é eletrizante para quem possui o mínimo interesse em mercados
financeiros.
No entanto, a pergunta que nem A Grande Aposta e nem Margin Call - O Dia Antes do Fim
abordam é exatamente aquela que todos deveriam estar fazendo: como foi que
tantas pessoas espertas erraram de maneira tão fragorosa e
simultaneamente?
É aí que temos de lidar com o delicado sistema das
taxas de juros e com a maneira como os juros foram distorcidas por meio 1) das
políticas monetárias do Fed, 2) de empréstimos subsidiados pelo governo
americano, e 3) de atitudes temerárias de corretores que sabiam que, caso algo
desse errado, seus bancos certamente seriam socorridos pelo governo, pois eram
considerados "grandes demais para quebrar".
A
máquina de criar dinheiro
Para entender o que houve, o melhor documentário disponível
é Money for
Nothing: Inside the Federal Reserve [N. do E.: e o mais completo
artigo em língua portuguesa é este]. Esse documentário entrevista pessoas do alto escalão
do Fed. Ele acompanha a carreira de Alan
Greenspan e de Ben Bernanke, e como suas visões sobre a política monetária mais
adequada foram se alterando.
Neste documentário encontramos as evidências da real
causa do problema. Após os ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001, e em decorrência das guerras no
Afeganistão e no Iraque, o Fed embarcou em uma política monetária extremamente
expansionista. O Banco Central americano
derrubou as taxas de juros continuamente e o governo americano, se aproveitando
dos juros baixos, criou programas que subsidiavam empréstimos para a compra de imóveis,
gerando uma atmosfera de vale-tudo. Agências
para-estatais — Fannie Mae e Freddie Mac — foram estimuladas pelo governo a
financiar toda e qualquer hipoteca. A ideia
de se tornar proprietário de imóveis se tornou praticamente uma doutrina
religiosa, e todo o aparato regulatório, monetário e burocrático assumiu a função
de fazer tudo acontecer.
O resultado foi a formação de volumoso e amplo conjunto
de erros. E é exatamente isso que tem de
ser explicado. Sim, é claro que os
participantes do mercado cometem erros. Mas
como é que repentinamente todo mundo começa
a errar? Por que os erros dessas
pessoas se concentraram exclusivamente no mercado imobiliário e em nenhum outro
setor? E por que eles cometeram erros no
setor imobiliário neste período e não em períodos anteriores?
Qualquer explicação que não aborde diretamente essas
perguntas não está indo ao âmago do problema, e não pode ser considerada como
uma retratação realista do que ocorreu.
Dependendo do seu conhecimento prévio, o filme A Grande Aposta — por mais divertido
que seja — pode ser extremamente enganoso.
Não é que ele esteja totalmente errado; ele é apenas incompleto. Uma pessoa que tente vender uma explicação
para a crise financeira de 2008, e que não mencione as políticas monetárias do
Fed e nem as políticas do governo americano voltadas para o subsídio da compra
de imóveis, é tão confiável quanto um corretor que ofereceu um título podre como
sendo um ótimo investimento em 2007.
Por que devemos nos importar com como a crise de
2008 é interpretada? Porque, assim como
a crise de 1929, a história que contamos está diretamente relacionada com as políticas
que são posteriormente implantadas. Se a
crise de 2008 representou o fracasso do capitalismo, então novas e maciças regulamentações,
mais poderes dados a políticos e mais impostos talvez façam sentido. Agora, se a crise de 2008 decorreu de políticas
monetárias e governamentais ruins, então as políticas futuras a serem adotadas serão
bem distintas.
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Leituras
obrigatórias:
Como ocorreu a crise
financeira americana
Uma crítica chicaguista à
Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos