segunda-feira, 14 dez 2015
O velho e apocalíptico temor marxista da crescente
desigualdade nas sociedades capitalistas não pára de aumentar. A elite capitalista, dizem eles, se beneficia
de uma dinâmica de infinita acumulação de riqueza e, com isso, brevemente será
capaz de comprar tudo e a todos, inclusive o governo.
Este temor de ilimitada acumulação de riqueza nas mãos
de poucos foi o principal tema do livro O Capital no Século XXI,
do francês Thomas Piketty, publicado em 2013.
Em seu livro, Piketty escreve:
Seria
um erro negligenciar a importância do princípio da escassez para a compreensão
da distribuição mundial da riqueza no século XXI — para se convencer disso,
basta substituir, no modelo de David Ricardo, o preço das terras agrícolas pelo
dos imóveis urbanos nas grandes capitais [...]
Sem
dúvida, existe um mecanismo econômico bem simples que permite equilibrar o
processo: o mecanismo da oferta e da demanda. Se a oferta de qualquer bem for
insuficiente e o preço estiver exageradamente elevado, a procura por esse bem
deve baixar, o que permitirá uma redução do preço. Em outras palavras, se os
preços dos imóveis nas grandes cidades ficarem muito altos e o custo do
petróleo aumentar, as pessoas podem decidir morar em áreas mais afastadas ou
até andar de bicicleta (ou, quem sabe, os dois ao mesmo tempo). No entanto,
além de desagradáveis e complicados, tais ajustes podem levar várias décadas
para ocorrer; nesse ínterim, os proprietários de imóveis e os donos dos poços
de petróleo podem acumular créditos tão volumosos em relação ao restante da
população que poderão facilmente vir a possuir tudo o que houver para possuir,
inclusive as terras no interior e as bicicletas. (Piketty
2013)
Deixemos de lado o tolo exemplo envolvendo uma
bicicleta como resposta de mercado para a escassez (tal exemplo implica um
choque tecnológico negativo, sendo que vivemos hoje em um mundo extremamente
inovador). O fato é que Piketty
realmente acredita que uma única pessoa ou entidade se tornando proprietária de
"tudo" é algo possível de ocorrer em um capitalismo de livre mercado. De acordo
com Piketty, se r > g (ou seja, se a taxa de retorno sobre o capital
investido é maior do que a taxa de crescimento econômico), haverá uma "infinita
espiral de desigualdade".
Se Piketty houvesse lido os economistas seguidores da
Escola Austríaca, e estivesse a par do debate sobre o cálculo econômico, ele já
teria percebido que, em um mercado livre e desimpedido [no qual não há privilégios
e subsídios
estatais, tarifas
protecionistas e agências
reguladoras protegendo empresas], não há como surgir uma situação de acumulação
de riqueza na qual há apenas um único indivíduo ou cartel dominando tudo. Com efeito, uma situação em que há um único e
poderoso cartel ou um único e poderoso proprietário é o equivalente a um
completo socialismo e, portanto, a uma situação em que uma alocação racional de
recursos seria impossível, como Mises explicou clara e
profundamente.
Foi
Murray Rothbard quem brilhantemente demonstrou que a capacidade do cálculo econômico
decresce à medida que aumenta o tamanho da empresa. Só que esse argumento pode ser igualmente
aplicado à concentração de propriedades nas mãos de um só indivíduo. Como demonstrou
Rothbard:
O
livre mercado impõe limites definidos sobre o tamanho da empresa, isto é,
determina os limites da possibilidade de cálculo no mercado. Para calcular os lucros e os prejuízos de
cada departamento, uma empresa tem de ser capaz de comparar suas operações internas
aos mercados externos para cada um dos vários fatores de produção e produtos intermediários. Se qualquer um desses mercados externos
desaparecer, pois todos foram absorvidos e se tornaram parte de uma única empresa,
a capacidade de cálculo econômico desaparece, e não mais há nenhuma maneira de
uma empresa racionalmente alocar fatores para aquela área específica. Quanto mais esses limites são transgredidos, maior
se torna a esfera da irracionalidade econômica, e mais difícil será evitar prejuízos. Um grande e único cartel não seria capaz de
alocar racionalmente fatores de produção, e isso faria com que fosse impossível
evitar prejuízo severos. Consequentemente,
tal arranjo jamais poderia realmente ser estabelecido; e, ainda que fosse,
jamais poderia ser mantido. Rapidamente
ele se desintegraria.
Logo, e contrariamente ao que Piketty e outros
defensores do igualitarismo pensam, uma ilimitada concentração de riqueza é
tecnicamente impossível em uma economia de mercado. É por essa razão que "um único e grande
cartel" controlando toda a economia jamais surgiu em um livre mercado, e é por
essa razão que a concentração de riqueza sempre será limitada.
A falta de rigor teórico no livro de Piketty é alarmante. Embora ele supostamente seja um estudioso da dinâmica
da desigualdade de renda nas sociedades capitalistas, Piketty praticamente não analisa
o papel do empreendedorismo; e, nas raras vezes em que o faz, não fornece
absolutamente nenhuma definição sobre o que seja empreendedorismo. Essa total falta de rigor o permite liderar
uma batalha ideológica contra os ricos, os quais ele considera serem "imerecedores". Similarmente, seja Piketty, seja Anthony Atkinson, nenhum desses modernos adeptos do
igualitarismo menciona o papel da divisão do trabalho na distribuição de
riqueza.
Mas sabemos, no entanto, que a divisão do trabalho é
uma característica crucial (e necessária) da economia de mercado. Com efeito, a própria existência de capitalistas
ricos não é uma questão de herança ou de sorte imerecida, mas sim o resultado
da "lei das vantagens comparativas". Um capitalista
é alguém que possui uma vantagem comparativa em alocar capital — ou seja, ele
tem uma capacidade superior aos outros neste quesito — e, consequentemente, é
especialista nesta tarefa. Em um mercado
livre e desimpedido, aqueles
que tendem a ser os mais ricos também tendem a ser os mais eficientes na alocação
do capital. Se sua capacidade de alocação
for ruim, então os consumidores irão puni-los.
Se sua capacidade de alocação for boa, os consumidores irão recompensá-los.
Frédéric
Bastiat, em seu leito de morte em Roma, e não obstante estar severamente
doente, deixou muito claro para o seu amigo Prosper
Paillottet que os economistas deveriam se concentrar
majoritariamente no consumidor. O consumidor,
disse ele, é a fonte primária de quaisquer fenômenos econômicos. A principal falha do livro de Piketty é que
ele explica a desigualdade começando não pelas escolhas dos consumidores, mas
sim pela propriedade do capital. Os proprietários
do capital, diz Piketty, se beneficiam de uma taxa de retorno sobre o capital
e, quando esta taxa é maior que a taxa de crescimento econômico, ela
intensifica as desigualdades de renda.
Para Piketty, a taxa de retorno sobre o capital é como
se fosse um mítico fluxo de renda que depende não da capacidade dos proprietários
do capital, mas sim de quanto capital você detém. Só que a distribuição de riqueza não é tão arbitrária
quanto Piketty gosta de imaginar. O consumidor
detém a palavra final na decisão sobre quem deve ser o proprietário dos fatores
de produção. Como explicou Mises em Ação Humana, os
ricos "não são livres para gastar um dinheiro que os consumidores não estão
dispostos a lhes fornecer continuamente ao pagarem mais pelos produtos".
No mercado livre e desimpedido, os ricos só
conseguem acumular mais riqueza se eles foram eficientes na tarefa de alocar
capital, para o benefício de todos os consuidores. Há de se admitir que não há nada de
moralmente errado nisso. Ao contrário: devemos aplaudir esse arranjo.
Dado que a teoria econômica que fundamenta a tese de
Piketty é fraca, suas explicações não batem com as evidências empíricas. Com efeito, o próprio Piketty
teve de admitir que "não vejo r > g como a única, ou mesmo a principal,
ferramenta para se considerar alterações
na renda e na riqueza no século XX, ou para prever o caminho da desigualdade no
século XXI". E, de fato, r > g não é
um ferramenta útil para a discussão sobre a crescente desigualdade na renda do
trabalho. Surpreendentemente, o próprio Piketty admitiu a debilidade de seu
modelo perante o fato de que o aumento da da renda dos mais ricos nos EUA
durante o período 1980—2010 deveu-se majoritariamente a uma crescente
desigualdade nos salários, e não à taxa de retorno do capital.
Adicionalmente, deve-se ressaltar que, tanto em
termos teóricos quanto empíricos, quanto mais rico é um indivíduo, mais volúvel
é a riqueza dele: todos
os bilionários da lista da Forbes da década de 1980 deixaram de sê-lo
atualmente. Sendo assim, se a
riqueza é tão instável para o 1% mais rico, podemos concluir que a infinita concentração
de riqueza é um mito que não ocorre em uma economia de mercado. Ao contrário, sociedades capitalistas são mais tendentes a uma
mobilidade inter-geracional, tanto para cima quanto para baixo.
Consequentemente, embora a desigualdade de renda, em
um determinado momento, em sociedades capitalistas possa ser maior do que em
economias mais socialistas, a economia de mercado pode perfeitamente oferecer mais igualdade se considerarmos a evolução
das disparidades de renda entre indivíduos ao longo de um grande período de tempo.
Mais de 100 anos atrás, um economista Frances publicou
um livro sobre desigualdade. Assim como
o livro de Piketty, aquele livro foi celebrado nos EUA. Porém, ao contrário de Piketty, Paul Leroy
Beaulieu tentou explicar em seu livro, Essai sur la Répartition des
Richesses (1881), por que ele acreditava que a desigualdade, sem ser
erradicada, diminuiria nas sociedades capitalistas. A radical diferença de tom entre os dois livros
é uma boa ilustração da falência intelectual tanto dos EUA quanto da França
desde a Belle époque. Do
liberalismo clássico, sucumbimos à ilusão do igualitarismo; e do otimismo
liberal quanto à ordem de livre mercado, degeneramos para o pessimismo
socialista e igualitário.
Atualmente, a grandes desigualdades econômicas se
devem à violenta intervenção do governo no mercado (ver aqui, aqui e aqui). Por isso, deveríamos repensar se não seria
mais sábio dar mais atenção a Paul Leroy Beaulieu do que a Thomas Piketty.
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Leia também:
Os
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Algumas
frases aterradoras contidas no livro de Thomas Piketty
Thomas
Piketty e seus dados improváveis
O
que houve com os ricaços da década de 1980?
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