Artigo originalmente publicado em novembro de 2015
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Propriedade privada. E todo o resto deriva disso.
Se fosse possível escolher uma frase que resume toda
a teoria libertária, esta seria ela. É a
existência da propriedade privada, e é o respeito à propriedade privada, o que
gera todos os outros direitos do ser
humano.
A primeira e mais direta consequência de se
reconhecer a propriedade privada é que seu corpo se torna a primeira fronteira
inviolável. Sendo o seu corpo a sua
propriedade, ninguém pode agredi-lo. Consequentemente, ninguém pode tirar a sua vida.
A segunda consequência da inviolabilidade do corpo
humano é que a única maneira ética e moral de você conseguir bens é por meio de
transações voluntárias. Para que alguém
voluntariamente lhe forneça algo, você tem de voluntariamente fornecer outro
algo para esse alguém. Você não pode
coagir ninguém e nem ninguém pode lhe coagir.
É assim, por meio dessas transações voluntárias, que
surge o mercado. O mercado nada mais é
do que a arena em que ocorrem transações voluntárias. O mercado é consequência direta da
propriedade privada. Sem propriedade
privada não pode haver transações livres e voluntárias. Consequentemente, sem propriedade privada não
pode haver mercado.
A terceira consequência, que advém dessas duas
primeiras, é que, tudo o que você adquiriu honestamente, por meio de transações
voluntárias e as quais não agrediram terceiros inocentes (seja o seu salário,
seja o seu carro, seja a sua casa, seja a sua cerveja, seja o seu cigarro, seja
a sua arma), é sua propriedade e — por conseguinte — não pode ser confiscado
ou destruído.
Esse, em resumo, é o cerne da teoria libertária.
E
daí?
Tendo isto em mente, é fácil imaginar qual deve ser
a posição libertária quando uma empresa privada, como uma mineradora, faz uma
lambança e, em decorrência disso, pessoas morrem, outras perdem suas casas, e
outras ficam até mesmo sem água potável.
Na teoria libertária, se a barragem de rejeitos de
uma mineradora se rompe e toda a enxurrada de lama destrói a propriedade alheia
— casas, carros, escolas etc.—, então a mineradora não apenas tem de
pagar por todos os danos, como ainda tem de ressarcir por todos os transtornos
criados. Mais ainda: deve tentar
restaurar (o que nem sempre é possível) a situação para o momento de antes do
dano.
Isso se baseia no princípio universal (que não possui
tradução em português) do prayer for relief ou demand for relief, e é muito mais
antigo que qualquer sistema de justiça positivista. Toda ação (responsibility) ou tomada de risco (liability) que gere um dano acaba por
conceder um direito verdadeiro de reparação ao agredido, em uma tentativa de se
restabelecer a situação a nível mais próximo possível de como era
anteriormente.
Apesar de os manuais de Direito no Brasil doutrinarem
que se trata de um instituto de cunho legal e positivista, a ideia de reparação
civil está enraizada em todos os sistemas conhecidos que alcançaram o status de
civilização. Tanto no Ocidente quanto no Oriente.
Igualmente, se a barragem de rejeitos de uma
mineradora se rompe e toda a lama vai para um rio e torna a água deste rio
imprópria para ser captada para consumo — deixando seus moradores sem água e
os obrigando a pagar por caminhões-pipa —, então tanto os gastos adicionais
destes moradores quanto os transtornos gerados pela falta d'água têm de ser
integralmente arcados pela mineradora.
(As especificidades técnicas e jurídicas destes
procedimentos estão fora do escopo deste artigo, mas podem ser encontradas em detalhes
aqui).
Por fim, se a lama polui o rio, então a mineradora
tem de despoluir (técnicas modernas para isso é o que não faltam; ver aqui,
aqui
e aqui).
Não tem escapatória. Destruiu casas? Tem de
ressarcir e, adicionalmente, indenizar todas as outras perdas causadas. Inviabilizou
o consumo de água? Tem de ressarcir e
indenizar. Pessoas morreram? Homicídio culposo, o qual deve ser punido de
acordo.
E quem irá arcar com tudo isso? Em primeiro lugar, o patrimônio líquido da
empresa.
Caso não seja o suficiente, parte-se para os ativos. Também não sendo suficiente, os proprietários da
empresa terão de complementar os cheques.
No extremo, caso os custos com as reparações,
indenizações, ressarcimentos e despoluição sejam exorbitantes — de modo que os
dois procedimentos acima ainda não se revelem suficientes —, os acionistas ordinários (os proprietários) teriam de leiloar seus bens e propriedades.
Houve uma externalidade que afetou terceiros
inocentes, e a implicação disso é que se responsabilize pessoalmente os sócios
da sociedade empresária.
Quem destrói propriedade privada deve reparar,
ressarcir, indenizar e recuperar, nem que para isso tenham de penhorar todos os
ativos de cada acionista da empresa.
Essa é a abordagem libertária.
E quem faria os julgamentos? Em um cenário libertário completo, seriam
tribunais privados (cujo funcionamento foi resumido aqui e explicado de
maneira mais completa aqui
e aqui).
Já no cenário em que vivemos, tal feito ficaria a
cargo do judiciário estatal — o qual não
deveria, em hipótese alguma, aplicar multas apenas para direcionar este
dinheiro para o estado. A propriedade da
mineradora não deve ser transferida para políticos e burocratas, mas única e
exclusivamente para as pessoas cujas propriedades foram afetadas e destruídas pela
empresa, e para a recuperação do rio.
A
realidade é oposta
Agora, vamos à realidade brasileira:
a) As mineradoras brasileiras representam uma das
principais pautas de exportação da economia brasileira. Elas têm um grande peso
na balança comercial, com a qual o governo é obcecado (a Samarco é nada menos que a 10ª maior exportadora do Brasil);
b) logo, por serem majoritariamente exportadoras, as
mineradoras são o xodó dos governos desenvolvimentistas, como o atual;
c) adicionalmente, há o fato de que mineradoras não
apenas geram empregos para muitas pessoas, como ainda garantem fartas receitas
tributárias para governos municipais, estaduais e federal. Para se ter uma
ideia, os impostos pagos pela Samarco representam
80% da arrecadação de Mariana. Se a Samarco for punida, as receitas da prefeitura
da cidade desabarão (não foi à toa que o prefeito da cidade literalmente
enfartou);
d) o fato de serem queridas pelo estado, de serem
exportadoras, de gerarem empregos, e de garantirem uma fatia robusta das receitas
dos três níveis de governo permite que se tenha uma ideia de qual será o
tratamento que o governo dispensará às mineradoras: um pito público, algumas
exigências reparatórias (as quais serão devidamente reportadas pela
imprensa), discursos exaltados de alguns políticos (devidamente registrados
pelas câmeras e postado em seu Facebook) e uma multa ambiental (que irá
integralmente para o governo).
E ainda que alguma multa de rápida eficácia (aquela que
segue os princípios libertários) seja imposta à Samarco, o montante será
majoritariamente direcionado para o governo federal sob a justificativa de danos
"difusos ou coletivos", restando pouca, ou nenhuma, esperança para que as
verdadeiras vítimas recebam reparações no futuro próximo.
E, sendo o Brasil o Brasil, é até possível que a
empresa receba dinheiro público para amenizar os custos e ainda entre no Plano
de Proteção ao Emprego do governo federal.
e) Por fim, há também a ironia de que todos os órgãos
estatais que detinham o monopólio da fiscalização das barragens da empresa —
como o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), vinculado ao
Ministério de Minas e Energia, e a Superintendência Regional de Regularização
Ambiental — haviam garantido, ainda em julho, que tudo estava "em
totais condições de segurança". Qual
será a punição para esta falha estatal?
Conclusão
"Ah, mas essa 'punição libertária' faria com que a empresa falisse e que vários
empregos fossem destruídos!"
O libertarianismo, ao contrário do que muitos
acreditam, não é uma filosofia pró-empresa. E nem muito menos pró-empresário. O libertarianismo é uma filosofia que defende única e exclusivamente a
propriedade privada. Havendo propriedade
privada há transações livres e voluntárias. Havendo transações livres e voluntárias há livre mercado.
A defesa do livre mercado pelos libertários advém
diretamente da defesa da propriedade privada, que é o cerne da teoria
libertária.
Como consequência, se uma empresa destrói
propriedade privada — seja essa propriedade uma casa ou um rio —, então ela
tem de ser punida de acordo: ela tem de ressarcir as perdas e compensar todos
os custos gerados pelas perdas.
Tudo isso já nos permite concluir que, tanto em
termos éticos quanto em termos morais, é "preferível" que um desastre ambiental
seja causado por uma empresa privada do que por uma empresa estatal. Sendo uma empresa privada, os responsáveis
por arcar com os custos são única e exclusivamente os proprietários e
acionistas da empresa. Terceiros inocentes
são poupados. Já se a empresa for
estatal, todo o fardo recai sobre os pagadores de impostos inocentes, ficando
os burocratas do governo totalmente imunes.
E então, quem você prefere que lide com o caso da
Samarco: o governo ou libertários?