Aladdin
é um muçulmano que mora no Brasil há algum tempo e resolveu fazer a prova do
ENEM para ingressar em um curso superior, dando prosseguimento aos seus planos
pessoais.
Aladdin
possui muita facilidade com produções textuais, e tem boa capacidade para
construir redações e expor suas ideias de forma clara, objetiva e coerente,
respeitando todas as regras gramaticais do português.
Outra
característica marcante desse candidato é sua fé na religião islâmica e sua
devoção aos dogmas do Alcorão.
Ao
ser deparado com o tema da redação — a
persistência da violência contra a mulher no Brasil —, Aladdin utilizou
todas as suas capacidades de escrita e elaborou um texto formalmente
incontestável. O conteúdo do texto de Aladdin, embora expressasse algumas
preocupações com a crescente violência contra a mulher no Brasil, argumenta que,
em algumas situações nas quais as leis do islã são feridas, seria justo que as mulheres
fossem chicoteadas ou apedrejadas.
Eis
a pergunta: se você fosse o
avaliador da redação de Aladdin, qual nota daria para ele?
A
resposta para essa simples pergunta parece dizer um pouco sobre suas
verdadeiras convicções.
O problema com o relativismo moral
Pode-se
dizer em relação ao relativismo moral que:
Ele consiste em três proposições: que "certo"
significa (só pode ser coerentemente compreendido como) "certo para uma sociedade";
que "certo para uma sociedade" deve ser entendido num sentido funcionalista; e
que (portanto) é errado que as pessoas de uma sociedade interfiram, condenem
etc. os valores de outra sociedade. (Williams, 2005, p. 31-32)
Deixando-se
de lado os problemas lógicos do relativismo (um relativista não pode dizer que
é errado julgar outros valores), qualquer posição que abrace o relativismo
(mesmo em suas formas mais mitigadas) não é capaz de fornecer uma base razoável
e racional para a moralidade.
O
experimento mental envolvendo Aladdin serve para mostrar como o relativismo
moral (e até mesmo o relativismo cultural) é uma posição fraca e
epistemologicamente irrelevante para interpretar fenômenos sociais. A moralidade compartilhada por uma sociedade advém
de um acúmulo de conhecimento social, algo que é impossível de equacionar, como
o conhecimento científico, tecnológico, filosófico, artístico, religioso,
histórico e diversos outros desenvolvidos por determinada cultura.
(É
importante ressaltar que aqui não se pretende defender uma abordagem
naturalista da moralidade, a qual assume conclusões normativas com base em
premissas factuais; simplesmente se está assumindo que a evolução do
conhecimento natural [acerca dos fatos] juntamente com outros tipos de
conhecimento gera influências na moralidade compartilhada por determinada
sociedade.)
Voltando
ao caso de Aladdin, um relativista moral irá avaliar a redação desse candidato
com uma nota consideravelmente alta. A posição de Aladdin em relação à punição
de mulheres vem do fato de o candidato compartilhar valores culturais e morais
distintos daqueles que o avaliador relativista compartilha.
Já
outro avaliador que acredita que a moralidade islâmica é inferior à moralidade
brasileira pode, sem dor na consciência, zerar a nota da redação do candidato
muçulmano. Parece razoável aceitar que
valores morais devam ser objetivamente comparados e hierarquizados. Determinados valores morais podem
perfeitamente ser superiores a outros valores morais.
Contudo,
é interessante notar como várias pessoas que criticam a violência contra as
mulheres brasileiras não conseguem condenar a cultura islâmica pelo mesmo crime.
Ao contrário, muitas delas enaltecem
a cultura islâmica. Qual o problema em assumir que a moralidade islâmica é
atrasada, suas crenças são piores e seus valores são inferiores?
Perceba
que não se está defendendo a posição de que é possível estabelecer uma
moralidade absoluta e correta; apenas se está assumindo que é possível estabelecer
graus relativos de comparações morais[1].
Fazendo-se
um paralelo com o conhecimento científico, é razoável dizer que mesmo não
sabendo se a teoria X é absoluta e verdadeira, pode-se dizer que a teoria X é
muito melhor que a teoria Y[2].
A moralidade funciona da mesma maneira.
O
conhecimento moral compartilhado pela cultura que forma o Estado Islâmico, por
exemplo, é um conhecimento moral muito inferior ao compartilhado pela cultura
brasileira (mesmo a moralidade brasileira não sendo uma verdade absoluta). O conhecimento
moral não depende somente das religiões envolvidas; depende de uma variedade de
conhecimentos que opera sobre determinada sociedade.
No
Japão, por exemplo, a violência contra as mulheres também é condenada, assim
como em vários países do Ocidente, o que mostra que a religião não é aspecto
determinante para o conhecimento moral compartilhado. Parece razoável aceitar
que um conhecimento científico mais sofisticado tem influência sobre (mas não
determina) as regras morais compartilhadas.
Sendo
assim, pode-se dizer que a moralidade islâmica é atrasada, não somente pela sua
religião, mas pela falta de conhecimentos científico, tecnológico, histórico e
filosófico adequados.
Karl
Popper forneceu o diagnóstico de que "a principal enfermidade filosófica de
nosso tempo é um relativismo intelectual e moral, baseando-se este último no
primeiro, pelo menos em parte" (1998, p. 389).
Já
Friedrich Hayek diz que "na esfera da conduta individual, é inegável e
inevitável que os efeitos do coletivismo têm sido completamente destrutivos"
(2007, p. 217).
E
Popper, novamente, conclui que
Foram os intelectuais — "os
revendedores de idéias de segunda mão", como os chama F. A. Hayek - que
difundiram o relativismo, o niilismo e o desespero intelectual. Não há razão
para que alguns intelectuais — os mais esclarecidos — não venham a ter êxito
na difusão da boa nova de que a bulha niilista foi realmente para nada.
Tanto
Popper quanto Hayek, nessas duas obras, procuram mostrar como a moralidade
coletivista é pior do que a moralidade individualista. A valorização do
indivíduo em detrimento do coletivo parece ser fruto de sociedades que
desenvolveram um conhecimento científico e filosófico mais sofisticado,
independentemente da religião em questão. A moralidade coletivista (ou
tribalista, conforme Popper a descreve) só opera em sociedades fechadas, que não são abertas para o debate crítico e para a
eliminação do erro[3].
Se
as mulheres possuem mais liberdades em algumas sociedades, isso se deve ao fato
de que houve evolução e alteração de todos os conhecimentos que formam a base
da sociedade em questão. As sociedades mais evoluídas, e que possuem o
conhecimento científico mais difundido entre os indivíduos que a compõe, são as
sociedades onde as mulheres são mais respeitadas. As sociedades menos evoluídas,
e com conhecimento arcaico, são as que menos respeitam as mulheres e as que
mais violam os direitos individuais.
Uma
pequena inclinação para o relativismo epistêmico abre as portas não apenas para
o relativismo moral como também para algo bem pior: o irracionalismo. Tanto o relativismo moral quanto o
irracionalismo acabam por valorizar o coletivo em detrimento do indivíduo na esfera
social.
Regras
morais podem e dever ser objetivas, comparadas e hierarquizadas. O ataque ao
relativismo intelectual, cultural e moral representa a reivindicação do
racionalismo nas relações sociais, que é necessário para caminhar rumo à
verdadeira sociedade aberta.
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Referências:
HAYEK,
F. O caminho da servidão
Popper,
K. A sociedade
aberta e seus inimigos. Tomo 2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.
WILLIAMS,
B. Moral:
uma introdução à ética. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[1] Defender
esse ponto de vista não é o mesmo que defender o domínio de uma cultura sobre outra
com base na força. Somente pessoas intelectualmente desonestas concluiriam
coisas desse tipo com base nas premissas estabelecida.
[2] Novamente:
defender que a física de Newton é superior à física de Aristóteles não implica a
defesa de que os físicos newtonianos devam "converter" à força os físicos
aristotélicos. Seria um absurdo fazer essa relação.
[3] O que os
países como Brasil, Argentina e Japão estão fazendo, ao discutir o assunto
sobre a violência contra mulheres, é justamente promover eliminações de erros
na sociedade. As mulheres nesses países ainda sofrem com a violência, o que
mostra que ainda existem valores fracos e ruins difundidos que precisam ser
eliminados. Porém isso não exclui a possibilidade de comparação entre os
valores desses países com os de outros países mais atrasados.