segunda-feira, 31 ago 2015
O quase completo socialismo que impera na
Venezuela voltou ao noticiário.
Durante os últimos dois anos, a crise econômica
do país vem se
desenrolando a um ritmo crescentemente desastroso: à medida que a moeda foi se depreciando,
a carestia foi se acelerando de maneira galopante. Consequentemente, o governo decretou um
abrangente controle de preços, o que fez com que a
escassez de bens — inclusive alimentos e remédios — se intensificasse. A escassez, por conseguinte, empurrou as
pessoas para o mercado negro, o que elevou ainda mais os preços dos bens essenciais.
A lista de itens básicos ausente das
prateleiras dos supermercados, que
começou com papel higiênico — o que levou o governo a ocupar
uma fábrica de papel higiênico, com o uso maciço de força militar, para
garantir uma "distribuição justa" dos estoques disponíveis —, foi
gradualmente se expandindo para abranger
também absorventes, xampu, farinha, açúcar, detergente, óleo de cozinhar,
pilhas, baterias e caixões.
E, por causa do aparelhamento e da
subsequente destruição da estatal petrolífera PDVSA, bem como do racionamento
de preços da gasolina, a Venezuela, que é o quinto maior produtor de petróleo
do mundo, teve de se tornar
importadora de petróleo (outrora o principal item de exportação do país).
A escassez generalizada obrigou os
venezuelanos a, rotineiramente, terem de pedir permissão para faltar ao
trabalho e assim poderem ficar o dia inteiro em
longas filas nas portas dos poucos supermercados que ainda têm alguns
produtos à venda.
Além daqueles que se ausentam do trabalho,
também há aqueles que acordam de madrugada para ir para as filas. E há
aqueles que vão para as filas no horário do almoço. Os venezuelanos estão
o tempo todo enviando mensagens de texto no celular para dar informações sobre filas.
Eles se transformaram em especialistas em filas.
Nessa reportagem, um jornalista da BBC tenta
comprar apenas 8 itens básicos na Venezuela.
Ele só consegue comprar 3, tendo de recorrer ao mercado negro para
conseguir o resto; e só no dia seguinte.
A mais recente estimativa — mostrada no
vídeo acima — é a de que um venezuelano gasta, em média, 8 horas por semana na
fila de um supermercado para conseguir comprar itens essenciais.
Uma pesquisa
do Instituto Cendas, que é venezuelano, revelou que mais de um terço dos gêneros
alimentícios não mais são encontrados nas prateleiras de absolutamente nenhum
supermercado. Adicionalmente, os
vegetais encarecem a um ritmo de 32% ao mês,
as carnes sobem 22% também mensalmente, e o feijão dispara 130%, também a cada mês. Consequentemente, o prato básico do
venezuelano, contendo arroz e feijão, se tornou um luxo.
No entanto, o que está no noticiário
atualmente — e que é a raiz de todo o desarranjo da economia venezuelana — é
a moeda da Venezuela, o bolívar. O valor
do bolívar está desabando feito uma pedra. O gráfico a seguir,
elaborado pelo professor
Steve Hanke, da Johns Hopkins University, mostra a evolução da taxa de
câmbio do bolívar em relação ao dólar americano. A linha vermelha é a
taxa de câmbio oficial declarada pelo governo; a linha azul é a taxa de câmbio
no mercado paralelo.

Taxa
de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo (linha azul) versus taxa de câmbio
oficial declarada pelo governo (linha vermelha)
Vale
ressaltar que, como mostra o gráfico, em agosto do ano passado, um dólar
custava 100 bolívares no mercado paralelo.
Em maio desse ano, o bolívar já havia desabado acentuadamente, com um dólar
valendo 300 bolívares. Agora em agosto,
o dólar já está se aproximando dos 700 bolívares.
Isso
implica uma desvalorização da moeda nacional de 86% em apenas um ano.
O
Banco Central da Venezuela, obviamente, parou
de divulgar os valores oficiais da inflação ainda em dezembro de 2014,
quando a cifra calculada pelo próprio governo havia chegado a 68%.
Essa
desvalorização do bolívar está fazendo a carestia disparar na Venezuela. Para
economias altamente estatizadas, a desvalorização de uma moeda no mercado
paralelo — que é o único verdadeiro livre mercado operando nessas economias —
é o mensurador que melhor estima o real valor dessa moeda. O princípio da
paridade do poder de compra (PPP), o qual vincula alterações na taxa de câmbio
a alterações nos preços, permite estimativas confiáveis para a inflação de
preços.
O
gráfico a seguir, também do professor Hanke, mostra a evolução da verdadeira
inflação de preços que está ocorrendo na Venezuela:

Inflação
de preços oficial divulgada pelo governo (linha vermelha) versus inflação de
preços implícita (linha azul) acumuladas em 12 meses.
Ou
seja, a atual inflação de preços na Venezuela — a real, e não aquela divulgada
pelo governo — ultrapassou o estonteante valor de 800% ao ano, o que mostra
que o país está em hiperinflação.
Essa
combinação de hiperinflação e rígido controle de preços — recurso favorito dos
governos populistas — está gerando o supracitado desabastecimento
generalizado, esvaziando as prateleiras dos supermercados do país
Com
uma moeda inconversível e que ninguém quer portar — nenhum estrangeiro está
disposto a trocar sua moeda pelo bolívar, pois não há investimentos atrativos
na Venezuela —, nenhum empreendedor na Venezuela está tendo acesso a
dólares.
E,
sem acesso a dólares, todas as importações, mesmo a de produtos básicos e
essenciais, como remédios, estão praticamente paralisadas.
O
suprimento de remédios está
acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas
de pacientes estejam na fila de espera para cirurgias. Algumas clínicas
privadas são capazes de manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguem
contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano possa interceptar,
remédios essenciais.
Com
a falta de remédios, os venezuelanos estão tendo, humilhantemente, de recorrer
a medicamentos
para cachorro. Como consequência, os
próprios cachorros também começaram
a sofrer, já que esse aumento da demanda por medicamentos veterinários está
diminuindo a oferta disponível de remédios para serem usados nos próprios cachorros.
Está
havendo também uma escassez
de contraceptivos, o que vem aumentando a
taxa de gravidezes indesejadas no país.
Para piorar, também há escassez
de fraldas e leite, itens essenciais para os recém-nascidos.
A
revolta dessa venezuelana na fila do supermercado fala por si só:
A
inconversibilidade da moeda venezuelana está causando até mesmo o desaparecimento
da cerveja, uma vez que os produtores nacionais não mais estão conseguindo
importar a matéria-prima necessária — malte e cevada — para a fabricação da
bebida, pois não conseguem trocar bolívares por dólares.
A
única entidade na Venezuela que ainda tem dólares é o governo, e é ele quem
decide qual empresa pode receber dólares para importar bens. No momento,
por causa de sua escassez — e da acelerada
perda de reservas internacionais, causadas justamente pela necessidade de
importar itens básicos — a ração de dólares está suspensa.
Essa
situação de penúria gerada por uma moeda inconversível e por controles de
capital é fatal para todo o bem-estar de uma nação. O economista austríaco Friedrich Hayek já havia
alertado para isso. Em seu livro O Caminho da Servidão,
lançado no longínquo ano de 1944, ele alertou que:
Não há melhor exemplo prático de um abrangente
controle econômico sobre todos os outros aspectos da vida do que na área do
câmbio.
À primeira vista, nada parece afetar menos a
vida privada do que o controle estatal das transações em moeda estrangeira, e a
maior parte das pessoas olha com total indiferença para a introdução dessa
política. No entanto, a experiência de quase todos os países europeus
ensinou-nos a considerar essa medida um passo decisivo no caminho do
totalitarismo e da supressão da liberdade individual.
Ela constitui, com efeito, a sujeição completa do indivíduo à tirania do estado, a eliminação definitiva de todos os
meios de fuga — não somente para os ricos, mas para todos.
Quando o indivíduo já não tem liberdade nem de
viajar nem de comprar itens estrangeiros básicos, como livros e revistas, e
quando todos os meios de contato com o exterior se limitam aos aprovados [pelo
governo], o controle efetivo [sobre a população] torna-se muito maior do que o
exercido por qualquer governo absolutista dos séculos XVII e XVIII.
Já
Ludwig von Mises, em seu livro A Teoria da Moeda e do
Crédito, publicado originalmente em 1912, já alertava:
É impossível compreender totalmente a ideia
de uma moeda forte sem antes entender que a própria ideia de moeda forte foi
criada para ser um instrumento para a proteção das liberdades civis contra
investidas despóticas de governos. Ideologicamente, a moeda forte
pertence à mesma classe das Constituições e da Declaração dos Direitos dos
indivíduos.
Recentemente,
uma foto de um venezuelano utilizando uma cédula de 2 bolívares como guardanapo
para segurar uma empanada tornou-se
viral na internet. E o motivo é a
perfeita ilustração do que Mises disse acima: se a moeda é fraca, ela perde
toda a sua função de meio de troca, e passa a ser utilizada em aplicações mais
cotidianas.
Uma
cédula de 2 bolívares vale muito menos que US$ 0,01 (na prática, vale um terço
de um cent, ou US$ 0,003). Já um pacote
de guardanapos custa, atualmente, de 500 a 600 bolívares.
Essa
foto é pavorosamente parecida com as fotos oriundas do episódio da hiperinflação
alemã na época da República de Weimar, em que o índice da inflação de preços mensal saltou de 100% em julho de
1922 para 29.500% em novembro de 1923. A cédula de 100 trilhões de marcos foi
criada e as impressoras do Reichsbank passaram a imprimir dinheiro ao ritmo
recorde de 74 trilhões de cédulas de marcos por semana.
Como
consequência dessa inflação de dinheiro, os alemães passaram a utilizar as cédulas
como lenha para fogueiras e para fogões.
Por
ora, podemos apenas especular a extensão do estrago que esse episódio trará à poupança
dos venezuelanos. À medida que as
notícias sobre a economia do país vão sendo reveladas, é inevitável não ter
aquela sensação de horror.
Essencialmente,
todos os governos do mundo controlam suas moedas da mesma maneira que o governo
Maduro. Varia apenas a intensidade com
que cada governo destrói o poder de compra de suas respectivas moedas. Ao redor de todo o mundo, o que temos no âmbito
monetário é socialismo puro, de modo que todas as moedas nacionais estão sujeitas
unicamente ao poder político.
É
inevitável imaginar (e temer) quantos outros desastres econômicos terão de
ocorrer até que se torne claro que o socialismo — de todos os tipos, tamanhos
e graus de intensidade — é impraticável, intolerável e indesculpável.
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Carmen Dorobat,
pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest
Academy of Economic Studies.
Leandro
Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.