Ao
longo da segunda metade do século XX, o Leste Europeu vivenciou várias
manifestações e atos de desobediência civil contra o regime soviético. Na Hungria,
em 1956; em Praga,
em 1968; e, especialmente, na Polônia ao longo das
décadas de 1970 e 1980, a resistência contra a tirania se inflamou. Mas todos os movimentos foram esmagados pelo
governo de Moscou, tanto por meio da imposição de leis marciais quanto pelo
recurso da intervenção militar direta.
No
entanto, no verão de 1989, os poloneses conseguiram realizar
eleições livres. Ativistas
anticomunistas (e, em vários casos, também anti-socialistas) surpreenderam seus
conterrâneos: eles conquistaram 99 das 100 cadeiras no Senado e absolutamente
todas as 161 cadeiras do Parlamento que o regime permitiu serem disputadas na
eleição. Isso essencialmente derrubou o
regime soviético na Polônia. Desta vez,
no entanto, em vez de enviarem tanques para esmagar os agitadores poloneses, a
URSS não fez nada.
Já
em novembro daquele ano, os dissidentes dos outros países ficaram animados ao
constatar a inação soviética na Polônia. Hungria e Tchecoslováquia arbitrariamente decidiram abrir suas
fronteiras, permitindo que os alemães orientais pudessem ira para a Áustria e,
dali, para a Alemanha Ocidental. Os
moradores da Berlim Oriental começaram a exigir livre trânsito para o
Ocidente. A "queda" do muro ocorreu logo em seguida.
Ao fim do ano, o ditador comunista da Romênia seria fuzilado com transmissão ao vivo na TV.
Muitos
americanos, e especialmente os conservadores, gostam de afirmar que o fim do
bloco soviético e da União Soviética foi um feito americano: a alegação é a de
que os oligarcas soviéticos não apenas não conseguiram acompanhar a escalada
armamentista americana, como também temiam o crescente e incontestável poderio
militar americano, e, por isso, simplesmente decidiram se render e permitir que
o regime acabasse naturalmente, como de fato ocorreu em 1991.
Essa
narrativa é ótima para fins de propaganda doméstica nos EUA, mas o fato de que
regimes tirânicos nunca simplesmente "se rendem" sem disparar um único tiro ao lidarem
com um poder externo ameaçador faz com que essa teoria seja bem improvável.
Uma
questão intelectualmente mais honesta seria, em vez de exaltar o poderio
militar americano, perguntar por que o estado soviético estava tão fraco na
década de 1980.
Afinal,
se os soviéticos haviam sido inquestionavelmente capazes de "manter a ordem" no
Leste Europeu durante as décadas de 1950, 60 e 70, por que eles repentinamente
perderam essa capacidade na década de 1980?
Partindo-se
dessa premissa, os fatos rapidamente nos levam a descobrir que, já na década de
1980, a economia soviética, bem como a maioria das economias do Leste Europeu, já
estava em
frangalhos. As
moradias eram decadentes e suas estruturas já estavam se esfacelando. Os automóveis e os aparelhos eletrodomésticos
eram inacreditavelmente antiquados e raramente funcionavam a contento. O padrão de vida dos cidadãos do Leste
Europeu havia caído para uma mera fração do padrão usufruído pelos seus
congêneres da Europa Ocidental. Itens básicos como
sabonete, ovos, leite e até meia-calça feminina eram luxo de poucos.
Em
outras palavras, as economias centralmente planejadas do bloco soviético
produziam muito pouca riqueza real, e seus regimes, para se sustentarem,
sugavam e consumiam uma quantia crescente dessa pouca riqueza que a população
ainda conseguia produzir. Como consequência
inevitável, tanto a população quanto os regimes empobreciam continuamente.
Essa
debilidade econômica significava que não apenas a legitimidade do regime estava
em risco, como também que os soviéticos não mais usufruíam um "excedente"
militar, ao qual eles podiam recorrer sempre que tinham de restabelecer a ordem
em algum país-satélite cuja população apresentava um princípio de rebelião.
Ou seja, a URSS estava pobre demais para conseguir pagar suas contas
políticas.
Mises e o problema do cálculo econômico
Nada
disso teria surpreendido Ludwig von Mises, caso vivo estivesse à época. Muito antes da derrocada soviética, Mises
havia demonstrado que, em uma economia socialista (com esse termo ele se
referia a uma 'economia centralmente planejada'), é praticamente impossível
saber qual bem deve ser produzido, como deve ser produzido, em que quantidade
deve ser produzido, com que qualidade deve ser produzido, para quem deve ser
produzido e quando deve ser produzido.
Ao
explicar isso, ainda em 1920, Mises provou que a União Soviética, não obstante
quaisquer vitórias que pudesse obter no campo da remodelagem da natureza
humana, era economicamente impossível. Como resumiu
Murray Rothbard:
Antes de Ludwig von Mises expor o problema do cálculo
econômico no socialismo, em seu celebrado artigo publicado em 1920,
socialistas e não-socialistas já haviam percebido que o socialismo sofria de um
grave problema de incentivos.
Se, por exemplo, todos os indivíduos em um
sistema socialista fossem receber uma mesma renda — ou, em sua variante, se
todos fossem produzir "de acordo com suas capacidades", mas recebessem "de
acordo com suas necessidades" —, então, parodiando aquela famosa pergunta:
quem, no socialismo, fará o trabalho de recolher o lixo? Ou seja, qual será o incentivo para se
efetuar os trabalhos sujos? Mais ainda,
quem fará esses trabalhos? Ainda pior:
qual será o incentivo para se trabalhar duro e ser produtivo em qualquer
emprego?
[...]
No entanto, a singularidade e a crucial
importância do desafio de Mises ao socialismo é que seu argumento estava
totalmente dissociado desse problema do incentivo. Mises, com efeito, disse: muito bem, vamos
supor que os socialistas tenham sido capazes de criar um poderoso exército de
cidadãos genuinamente ávidos para seguir todas as ordens de seus mestres, os
planejadores socialistas.
Fica a pergunta: o que exatamente esses
planejadores mandariam esse exército fazer? Como eles saberiam quais produtos seus escravos deveriam produzir? Em qual etapa da cadeia produtiva cada
exército deveria trabalhar? Quanto de
cada produto deve ser produzido em cada etapa da cadeia de produção? Quais técnicas ou quais matérias-primas devem
ser utilizadas na produção como um todo? Qual a quantidade de matérias-primas a ser utilizada? Onde especificamente fazer toda essa produção? Como eles saberiam seus custos operacionais
ou qual processo de produção é mais eficiente?
Mises demonstrou que, em qualquer arranjo
econômico que seja mais complexo do que o exemplo de Robinson Crusoé sozinho em
uma ilha, o comitê de planejadores socialistas simplesmente não teria como
saber o que fazer. E nem como
responder a essas perguntas vitais.
Ao explicitar esse poderoso conceito do
cálculo econômico, Mises demonstrou que o comitê de planejamento central não
tinha como responder a essas perguntas porque o socialismo não dispõe daquela
indispensável ferramenta que só existe em uma economia de mercado, e a qual
empreendedores utilizam para fazer cálculos e estimativas:
existência de preços livremente definidos no mercado.
Sob o socialismo, os meios de produção
(fábricas, máquinas e ferramentas) não possuem proprietários definidos (eles
pertencem ao estado). Se os meios de
produção pertencem exclusivamente ao estado, não há um genuíno mercado entre
eles. Se não há um mercado entre eles, é impossível haver a formação de
preços legítimos. Se não há preços, é impossível fazer qualquer cálculo
de preços. E sem esse cálculo de preços, é impossível haver qualquer
racionalidade econômica, o que significa que uma economia planejada é,
paradoxalmente, impossível de ser planejada.
Sem preços, não há cálculo de lucros e
prejuízos, e consequentemente não há como direcionar o uso de bens de capital
para atender às mais urgentes demandas dos consumidores da maneira menos
dispendiosa possível.
Dado que a própria essência do socialismo é a propriedade coletiva dos meios de produção, e dado que tal arranjo não permite
o surgimento de preços de mercado, e dado que sem preços não há o mecanismo de
lucros e prejuízos, que é o que traz racionalidade para qualquer processo
produtivo, o comitê de planejamento central não seria capaz nem de planejar nem
de tomar qualquer tipo de decisão econômica racional.
Suas decisões necessariamente teriam de ser
completamente arbitrárias e caóticas.
Consequentemente, a existência de uma economia socialista planejada é
literalmente "impossível" (para utilizar um termo que foi muito ridicularizado
pelos críticos de Mises).
Os
planejadores centrais soviéticos nunca responderam a esse desafio. Com efeito, a "resposta" deles só veio em
1991, quando a URSS foi finalmente abolida. E, imediatamente antes do colapso, ainda havia proeminentes economistas
keynesianos sem perceber o óbvio.
Não
há exemplo melhor deste auto-engano intelectual do que o de Paul Samuelson,
professor de economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o
primeiro americano a ganhar o Prêmio Nobel de economia (1970), ex-colunista da
revista Newsweek, e autor daquele que é, de longe, o mais
influente livro-texto
de economia do mundo pós-guerra: pelo menos 3 milhões de cópias
vendidas em 31 idiomas distintos.
Ele
escreveu na edição de 1989 de seu livro-texto: "A economia soviética é a
prova cabal de que, contrariamente àquilo em que muitos céticos haviam
prematuramente acreditado, uma economia planificada socialista pode não apenas
funcionar, como também prosperar."
Por que demorou tanto?
Em
resposta à afirmação de Mises sobre a impossibilidade do planejamento central, alguns
então perguntam: "Bom, se o planejamento central é impossível, então por que o
arranjo soviético se manteve por tanto tempo?"
A
resposta está no fato de que, mesmo em uma economia centralmente planejada, o
capital — ou seja, as riquezas existentes — não desaparece da noite para o
dia. Os planejadores soviéticos não
implantaram seu regime em um deserto. Eles não começaram do nada. Eles
tinham à sua disposição todo o capital que havia sido acumulado — durante
séculos de poupança e investimento — pelos russos, ucranianos, alemães,
poloneses, tchecos, húngaros e todos os outros sob seus domínios.
Sim,
é verdade que não era possível para os soviéticos planejar corretamente ou
determinar de maneira não-arbitrária quais bens deveriam ser produzidos. No entanto, eles ainda assim dispunham de uma
vasta quantidade de capital que havia sido acumulado ao longo de séculos pelos
seus novos súditos. E, ainda que esse
estado centralmente planejado produzisse zero de riqueza (o que não é necessariamente verdade, dado que até mesmo o estado soviético produzia algumas coisas que a população queria), ele ainda assim tinha à sua disposição uma farta quantidade de riqueza que podia ser consumida e redistribuída
até ser completamente exaurida.
Isso
pode ser observado de maneira ainda mais evidente em regimes que são apenas
parcialmente centralizados, como é o caso da Venezuela. Como explicado neste artigo:
[Se] um dos mais ricos e desenvolvidos
países do mundo adotasse, da noite para o dia, instituições cubanas ou
norte-coreanas . . . . sua riqueza e todo o seu capital acumulado não
desapareceriam em 24 horas. A dilapidação do capital, embora seja um
processo bem mais rápido do que sua acumulação, não se dá de imediato.
O país deixaria de continuar acumulando
capital e passaria meramente a consumir seu capital, mas poderia demorar
décadas para dilapidar toda a riqueza já construída.
Enquanto ainda houver riqueza, o governo
terá recursos para ... continuar usufruindo a riqueza, as rodovias, a
infraestrutura elétrica e as redes de comunicação já existentes, as quais foram
resultado das instituições mais pró-mercado que existiram no passado.
Com
o tempo, no entanto, esse "fundo de reservas", como Mises o rotulou, se
exaure:
Um ponto essencial na filosofia social do
intervencionismo é a pressuposição da existência de fundos inesgotáveis que
podem ser drenados permanentemente. O sistema intervencionista entra em colapso
quando essa fonte seca: desmorona o mito do Papai Noel econômico.
No
que mais, o regime soviético ganhava dinheiro vendendo petróleo (e outros bens)
no mercado internacional, e o alto preço do petróleo na década de 1970 ajudou a
prolongar a existência do regime. Não
fossem as vendas de petróleo no mercado internacional — vendas essas que
forneciam moeda forte ao regime soviético —, é bem possível que o regime
entrasse em colapso uma década antes.
Conclusão
É
sim possível que o programa militar americano e as relações internacionais do
país tenham sim tido algum efeito não-trivial sobre os regimes do Leste Europeu
(o papel do Papa João
Paulo II na derrocada do regime polonês é inquestionável).
Não
obstante, tais análises ignoram o ponto principal: a grande debilidade dos
regimes que se baseiam em um planejamento central e na redistribuição de
riqueza.
Sem
mercado e sem preços de mercado, é impossível haver qualquer tipo de
planejamento econômico; e sem planejamento, não há como haver criação de
riqueza e, em última instância, durabilidade política.
Os
bravos rebeldes e
manifestantes do Leste Europeu merecem enormes créditos por terem
corajosamente enfrentado uma máquina homicida. Porém, no final, eles foram bem-sucedidos porque foram imensamente
ajudados pela escolha do momento certo e pelas decisões econômicas ruins dos
burocratas.