segunda-feira, 11 0aio 2015
Um
recente
artigo publicado no jornal britânico
The
Telegraph, pelo colunista financeiro Jeremy Warner, vem recebendo
considerável atenção.
O
artigo aborda a questão das atuais taxas de juros negativas dos títulos dos
governos europeus. O autor corretamente
identifica esse fenômeno como sendo historicamente singular.
Eis
um trecho do artigo:
Aqui vai uma estatística estupefaciente:
mais de 30% de todos os títulos da dívida pública na zona do euro —
aproximadamente € 2 trilhões em títulos emitidos pelos governos — estão sendo
transacionados a taxas
de juros negativas.
Com o advento do programa de afrouxamento
quantitativo (quantitative easing) implementado pelo Banco Central Europeu,
aquilo que havia começado quatro meses atrás, quando os títulos de 10 anos do
governo suíço entraram em terreno negativo pela primeira vez na história,
transformou-se em uma bola de neve e em seguida em uma avalanche de taxas de
juros negativas, as quais estão hoje em todos os principais mercados de
títulos da dívida dos governos europeus.
Em sua busca por "ativos seguros", os
investidores abandonaram toda a cautela e coletivamente se tornaram determinados
a pagar aos governos pelo privilégio de emprestar a eles.
Pois
bem.
Há
quem diga que o fato de haver taxas de juros negativas é um fenômeno
"espantoso" e que refuta todas as teorias econômicas que afirmam que os juros
denotam uma preferência
temporal. Afinal, quem em sã
consciência irá voluntariamente emprestar dinheiro ao governo hoje e receber um
valor menor amanhã? Quem irá emprestar $
100 e receber apenas $ 95 daqui a 5-10 anos?
Muito melhor seria simplesmente deixar o dinheiro guardado embaixo do colchão.
O
problema dessa afirmação é que ela ignora o que realmente está
acontecendo. Se tudo se resumisse a
apenas "poder deixar o dinheiro guardado embaixo do colchão em vez de emprestá-lo", aí sim teríamos
um problema com a teoria. Só que a
realidade é outra. E um pouco mais
pavorosa.
Para
começar, não há nada de espantoso em relação a taxas de juros negativas. Em um sistema bancário que não operasse com
reservas fracionárias, qualquer banco que recebesse um depósito de um correntista
e que não aplicasse a esse depósito uma taxa de juros negativa seria
considerado fraudulento. Nesse mundo,
nada é de graça: se levarmos dinheiro — seja na forma de ouro, prata ou meros
dígitos eletrônicos — a um banco e pedirmos para o banco custodiar esse nosso
dinheiro, teremos de pagar por esse serviço.
Pessoas
que utilizam os cofres particulares dos bancos para guardar seus bens valiosos
pagam por esse serviço. Isso é uma taxa
de juros negativa. Se não houvesse a
prática das reservas fracionárias, isso seria o normal. A invenção das reservas fracionárias criou
juros positivos sobre os depósitos bancários; em troca, gerou também a contínua
inflação de preços e os ciclos econômicos.
Portanto,
taxas de juros negativas, por si sós, não são nada de excepcional. O que é realmente excepcional, e que nunca
havia acontecido antes na história do mundo é isso: os governos estão pagando taxas
de juros negativas.
O
jornalista do artigo acima está correto em sua explicação dos motivos que
levaram a isso: os investidores "coletivamente se tornaram determinados a pagar
aos governos pelo privilégio de emprestar a eles". O que está incorreto, no entanto, é sua afirmação
imediatamente anterior: "Em sua busca por "ativos seguros", os investidores abandonaram
toda a cautela. . . ." Ora, por que isso
seria abandonar toda a cautela? Ao menos
no que tange a títulos governamentais de curto prazo, essa é uma resposta
racional às atuais condições econômicas europeias.
A
zona do euro pode começar a se desfazer nos próximos quatro meses. De um jeito ou de outro, a Grécia vai
descarrilar o arranjo. Se o país
permanecer na zona do euro, ele só ficará por causa de um perdão de sua dívida,
a qual será ocultada por algum esquema de rolagem. Se a Grécia receber um empréstimo sob as
atuais condições, de modo que ela não mais terá de quitar sua dívida com os
bancos alemães, então os governos de Portugal, Espanha e Itália também quererão
o mesmo tratamento. E aí o que irá
acontecer com a estrutura bancária da Europa Ocidental?
Nesse
cenário, os investidores estão fazendo exatamente o que fazem em épocas de
grande incerteza. Eles tentam manter seu
principal. Eles querem receber de volta
o máximo possível do valor total de que eles inicialmente abriram mão em troca
de custódia.
E por que então eles simplesmente não
deixam o dinheiro embaixo do colchão em vez de aplicá-lo a juros negativos?
Essa
pergunta é típica de quem não conhece o atual sistema bancário. A esmagadora maioria do dinheiro (mais de
85%) está na forma de dígitos eletrônico; apenas uma quantia mínima (não mais
do que 10%) está na forma de cédulas e moedas metálicas.
Sendo
assim, simplesmente não há como investidores que gerenciam bilhões de euros —
ou até mesmo aqueles que gerenciam "apenas" milhões de euros — irem até o
banco da esquina e sacaram tudo em espécie. Os
bancos não restituem em espécie esses valores.
Eles são legalmente isentos, pelo governo, de fazerem isso. O dinheiro eletrônico está "preso" nos bancos
e não há como esses dígitos serem convertidos integralmente em cédulas e moedas
metálicas. Tudo o que os investidores
podem fazer é transferir dígitos eletrônicos de uma conta bancária para outra
conta bancária. E só.
O
Banco Central da Suíça, por exemplo, já anunciou que os bancos não mais têm de
fornecer cédulas para nenhum fundo de investimento que queira sacar dinheiro. Uma empresa de seguros tentou fazer isso, mas
o banco se recusou. O Banco Central da
Suíça, portanto, fez uma declaração ao mundo: ele deixou claro que não há como
fugir do dinheiro eletrônico digital.
E,
mesmo que fosse perfeitamente possível esses grandes investidores irem aos seus
bancos e sacar integralmente todos esses bilhões de euros e francos suíços em
espécie, eles ainda assim teriam de guardar todo esse montante em algum
cofre. Ou seja, eles pagariam por
isso. E essa não seria uma atitude muito
sensata ou segura. E se você fosse
assaltado quando estivesse levando os bilhões para um cofre?
Portanto,
dado que não há como fugir desse arranjo monetário e bancário, a única maneira
de grandes investidores preservarem seu principal é aplicando-o justamente
naquilo que é considerado essencialmente um ativo livre de riscos.
E
só há um ativo que seja oficialmente considerado livre de risco: títulos da
dívida de um governo considerado financeiramente sólido (alemães e suíços são
os que mais se destacam nesse quesito, mais ainda que os americanos). Quanto mais curto for o prazo do título da
dívida de um governo, mais livre de riscos ele se torna.
Adicionalmente,
como explicado em detalhes neste artigo, em uma
situação em que as taxas de juros estão em queda, é possível obter elevados
ganhos de capital ao se comprar títulos de longo prazo: à medida que os juros
vão caindo, os preços de mercado desses títulos vão subindo. Ou seja, se você comprar um título por $ 100,
e os juros caírem, você pode revender esse mesmo título por, digamos, $
102. Isso é uma taxa de retorno muito
positiva, e nada negativa.
As
pessoas acreditam quando os políticos e burocratas do governo afirmam que o
governo não irá jamais dar um calote em sua dívida. Praticamente todo mundo acredita nisso
atualmente. Toda a estrutura do mercado
mundial se baseia nessa premissa. Por
exemplo, mercado futuro de commodities utiliza como colateral (garantia) títulos
de 90 dias do governo americano (os chamados Treasury Bills ou T-Bills).
Sendo
assim, não faz sentido o jornalista dizer que "os investidores abandonaram toda
a cautela". Muito pelo contrário: eles estão abraçando totalmente a cautela, e
com os braços bem apertados. Eles
estão colocando seu dinheiro na única forma de investimento que hoje aparenta
gerar uma taxa de retorno positiva no futuro: títulos da dívida governamental
de longo prazo. Isso sim é ter cautela. Isso sim é ser sensato. Infelizmente, é assim que se ganha dinheiro
nas atuais economias do Ocidente quando há uma fuga de capital do setor privado
(totalmente deprimido na Europa) para o setor público.
Enquanto
isso, o Banco Central Europeu segue seu programa de comprar,
mensalmente, 60 bilhões de euro em títulos públicos e privados em posse do
sistema bancário. E, à medida que ele
compra títulos da dívida dos governos da zona do euro, os preços desses títulos
sobem. Isso significa que os juros
desses títulos caem. Trata-se de uma lei
econômica: aumento da demanda em face de uma oferta relativamente estável.
E
isso é especialmente válido para os títulos da dívida do governo alemão. O governo alemão está tendo um superávit
em seu orçamento, o que significa que oferta de títulos do governo alemão
não está aumentando.
Sendo
assim, se você quiser comprar o título mais seguro de todos, você terá de pagar
um prêmio por isso. E, dado que um
número cada vez maior de pessoas quer comprar
títulos do governo alemão em vez de vendê-los aos preços vigentes hoje, a
conseqüência é que o preço dos títulos alemães continua subindo. Ou, colocando de outra forma, a taxa de juros
dos títulos alemães continua caindo, e hoje está negativa.
Isso
é perfeitamente racional.
Quando
se considera essa louca corrida por ativos seguros, combinada à atual política
do Banco Central Europeu de irrigar o mercado de títulos com liquidez, e tudo
isso em conjunto com o fato de que é impossível os investidores converterem
seus dígitos eletrônicos em cédulas de dinheiro, a taxa de juros dos ativos
mais desejáveis e de risco praticamente zero tem de se tornar negativa.
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Para
ver as prováveis consequências desse arranjo, recomenda-se os seguintes
artigos:
A abolição da usura pelos
bancos centrais
A tempestade perfeita
criada pelo Banco Central Europeu
O que é e quais efeitos tem
um programa de "afrouxamento quantitativo"
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Autores:
Gary
North, ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros
sobre economia, ética e história.
Carmen Dorobat,
pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest
Academy of Economic Studies.
Leandro
Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.