Se
o preço máximo da comida no Brasil fosse zero, quem ofertaria comida?
Ficaríamos todos na fila da caridade, morrendo de fome.
É
isso que acontece com a demanda por órgãos. É permitido transacionar órgãos e
sangue no Brasil, desde que o preço seja
zero. Ao mesmo tempo, as filas de doentes à espera de doadores demoram para
andar; pacientes morrem na espera. Não é coincidência.
Todo
mundo paga dinheiro para cortar cabelo; alguns vendem cabelo. Muitos furam suas
orelhas para pendurar adereços, ou injetam tinta sob a pele. Paga-se altas
somas para esticar superfícies, sugar gordura, implantar silicone, corrigir
narizes. Vende-se sexo e trabalho braçal. Por que o corpo pode ser objeto de
comércio para esses usos, e não quando vidas estão em jogo?
Imagine
se a necessidade de transplantes fosse tão universal quanto a de comida ou
água, e continuássemos com a nobre prática do preço zero, com a moralíssima
proibição de venda desse bem tão valioso. Comida e água também podem ser vistos
como sagrados, como diretamente ligados à vida; não seria também um sacrilégio
submetê-los ao sistema de preços? Pagaríamos a suposta pureza moral com a morte
de fome e sede.
Todo
mundo aceita que não há nada de errado em se tirar os órgãos de um morto para
salvar vidas. E muito embora doar órgãos depois de morto seja uma decisão sem
custos reais, mesmo assim muita gente não doa, por decisão própria ou da
família. Famílias que não se dão ao trabalho de permitir a doação interessariam
em permitir a venda.
A
mesma autonomia sobre si deveria valer para quem decide doar órgãos ainda vivo.
Já é permitido tirar órgãos não-vitais, desde que a preço zero. Por que não
permitir também a venda? Quem dá um órgão, vivo ou morto, dá um valor enorme a
quem o recebe. Não há nada de injusto que essa pessoa (ou seus herdeiros)
receba esse valor. Isso serviria até como um incentivo para as pessoas se
cuidarem. Sei que meus órgãos têm valor e que podem me render uma grana quando
eu precisar, e que serão parte do patrimônio deixado quando eu morrer; mais um
motivo para mantê-los em bom estado.
Com
o comércio legal de órgãos, teríamos mais doadores. Há uma demanda
consistentemente maior do que a oferta, que é mantida artificialmente baixa
graças à política do preço zero. Permita que os preços subam, que doadores
sejam recompensados pelo valor que ofertam, e mais vidas serão salvas.
Muita
gente é contra a ideia por se dizer preocupada com os pobres, que não teriam
dinheiro para comprar um órgão. Mas quem precisa de transplante e não tem
dinheiro continuaria na fila do SUS — agora mais curta —, que compraria os
órgãos e os repassaria de graça, como já faz com tantos outros tratamentos.
O
mercado de órgãos não elimina doação voluntária e nem o repasse gratuito, assim
como o mercado de comida não elimina a doação de comida. Há fundos de doação
para ajudar vítimas de desastres ou crianças com câncer; haverá fundos para
comprar órgãos para quem precisa.
A
lógica da fila, favorita de uma ética irracional e pouco preocupada com a
realidade, dará lugar à lógica do valor, sem por isso proibir a fila. O saldo
final é mais órgãos doados, e portanto mais vidas salvas.
Outros
olham para o lado da oferta: não seriam os mais pobres justamente os que teriam
mais incentivo para vender seus órgãos? Talvez. Agora eu é que pergunto: isso
seria ruim? Ao se permitir que a pessoa venda seus órgãos, não se a está
obrigando a nada; apenas dando-lhe mais uma opção para aliviar sua
pobreza.
É
ruim viver com um rim a menos. Pior ainda é morrer pela falta do transplante.
Se um lado quer o rim e tem o dinheiro, e o outro quer o dinheiro e está
disposto a ficar sem o rim, deixe que se ajudem.
Muitos
pobres venderiam seus órgãos? É possível. Mas se eles próprios preferem alguns
milhares de reais ao órgão funcionando (e aí cabe difundir a informação correta
sobre os efeitos futuros), é porque julgam que estão melhor assim. E não
precisamos ser tão radicais: muita gente gostaria, por exemplo, de dar sangue
periodicamente para complementar a renda. Privá-los de uma opção de ganhar
dinheiro não ajuda em nada; só agrava sua pobreza.
Cabe
lembrar que estamos falando de um mercado que já existe. O comércio de órgãos
opera ilegalmente e, como toda atividade que é empurrada para a ilegalidade,
tende para a violência e falta de informação. Legalizar o comércio é tirá-lo
das mãos de criminosos, de pessoas que são boas em coagir, defraudar e matar e
não em prestar serviços que atendam a necessidade de seus clientes.
Em
2012, um chinês pobre e menor de idade, do meio rural, vendeu um rim para
comprar um iPad. Péssimo negócio; talvez ele nem estivesse ciente do que estava
abrindo mão. Mesmo assim, mesmo com a insegurança do mercado atual, dado que a
venda voluntária é uma realidade difundida e duradoura, conclui-se que muitas
vezes ela beneficia o vendedor; são os milhões de casos que não viraram
notícia.
Se
um indivíduo em dificuldade pode melhorar de vida via transplante de uma parte
que não lhe é necessária, ou melhor, que vale menos para ele do que o dinheiro
a ser recebido, é ótimo que ela possa optar.
Por
fim, para você que permanece indignado com a ideia da venda de órgãos, que acha
que trocá-los por dinheiro viola a dignidade humana (embora dá-los de graça
seja legítimo e até admirável), e que tem certeza de que nada justifica essa
profanação do corpo, a solução é fácil: não venda. E quando você ou um ente
querido estiver na longa fila de doações, aguardando a morte chegar, não
compre.