Algumas semanas são
especialmente pródigas em notícias ruins. Foi o que aconteceu semana passada sobre o
assunto neutralidade de rede.
Nos últimos anos,
diversos governos vêm impondo o conceito de rede neutra de cima para baixo, por
meio de leis e medidas regulatórias. Grosso
modo, neutralidade de rede significa que serviços, aplicações e o tráfego em
geral devem ter tratamento igualitário dentro de uma determinada rede de dados.
Tal comando não se
restringe aos aspectos técnicos da gestão da rede; abrange especialmente as
relações comerciais dos diferentes agentes da cadeia de negócios: dos
detentores de infra-estrutura de rede aos consumidores finais, passando por
geradores de conteúdo, aplicativos etc.
Para uma exposição mais
abrangente do problema, recomendo a leitura do artigo aqui linkado.
Sem surpresas, os
comandos legais já começam a mostrar seus resultados e a bloquear o processo de
mercado, cujas bases são o sistema de preços, a propriedade privada e a livre
concorrência. O foco do ataque tem sido
o chamado zero rating, a prática que
se caracteriza pelo oferecimento gratuito de certas aplicações por parte das
operadoras de rede, comumente as empresas de telefonia móvel.
Começando a semana
lúgubre, o órgão regulador da Eslovênia
ameaçou multar duas das principais empresas de telecomunicações do país por
quebra da neutralidade de rede. Uma por oferecer gratuitamente aplicativo de
música; a outra por não cobrar por serviços de back-up de dados de seus
usuários.
Na Holanda,
nação outrora admirada por ter sido um dos berços do capitalismo e
das liberdades individuais, KPN e Vodafone foram multadas por violar as leis de
neutralidade. A primeira por restringir
o acesso a determinados serviços em seus hotspots;
a segunda por ousar oferecer a seus clientes, sem custos, acesso ao aplicativo
de vídeos da HBO.
O governo canadense
também abriu sua caixa de ferramentas. Duas
operadoras de telefonia celular foram obrigadas a interromper o serviço
gratuito de mobile TV a seus
clientes. O ente regulador local decidiu
que o zero rating é ilegal por
constituir uma prática anti-competitiva, uma vez que isso "prejudica" outros
produtores de conteúdo na Internet.
O Brasil, sempre
antenado às grandes tendências internacionais, não poderia ficar de fora dessa
lista. Para relembrar, em abril de 2014
foi aprovado o Marco Civil da Internet sob aplausos de todo Congresso Nacional.
Dias depois, a Presidente da República
sancionou a lei durante a NetMundial, evento que contou com a presença de
representantes de diversas nações, inclusive China e Rússia, cujos governos são
notórios defensores do controle
estatal da Internet.
De acordo com o artigo
9º do Marco
Civil, "o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever
de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por
conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação." Para completar, as empresas devem "oferecer
serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar
condutas anticoncorrenciais."
Nesse contexto, quando,
na semana passada, o Ministério Público da Bahia instaurou
inquérito para investigar a operadora TIM por oferecer uso sem custos do
aplicativo WhatsApp, tal órgão não fez nada além de aplicar a letra da lei. E, como se vê nos parágrafos acima, não foi
nenhuma novidade em termos de prática internacional.
Não poderia deixar de
mencionar que o zero rating é
proibido no Chile
desde maio de 2014, que o Congresso
argentino aprovou nova lei de telecomunicações que incorpora o conceito de
neutralidade de rede, e que Obama tem esse tema como uma de suas principais
bandeiras políticas. Depois de uma série
de reveses nos tribunais, o foco do governo americano, neste exato momento, é
menor sobre a neutralidade de rede em sentido estrito. O objetivo agora é fazer com que a Federal Communications Commission (agência
governamental americana que regula as comunicações interestaduais via rádio, televisão,
satélite, e cabo) proceda à reclassificação
legal dos serviços de acesso à Internet, tornando-os uma espécie de
"utilidades públicas".
Isso traria respaldo
legal para diversas intervenções, incluindo aí a rede neutra e o direito de
acesso universal aos serviços. Trocando em miúdos, o acesso à rede teria
tratamento similar à água e à energia elétrica.
Esse rol de notícias
permite concluir que a era da Internet regulada começou. De partida, esses acontecimentos devem servir
de grande interesse para os familiarizados com a teoria austríaca do
intervencionismo. Dado que essa atividade
econômica desfrutava ampla liberdade, espera-se que as primeiras intervenções
provoquem desajustes no curto prazo.
O sistema de preços, que
transmitia informações de qualidade para os agentes, sofrerá perturbações. Tais distorções serão percebidas pela opinião
pública — e justificadas pelos economistas da corte — como sendo uma consequência
das "condutas danosas" das empresas, ou como problemas inerentes ao
capitalismo. Em suma, como "falhas de
mercado".
Essas distorções
servirão de argumento para novas intervenções, cujos efeitos nocivos se
juntarão aos primeiros.
Seguindo o raciocínio,
um tipo de espiral intervencionista tomará corpo, danificando todo o processo
de mercado que antes existia. Por
exemplo, nos EUA
as próprias relações contratuais entre as empresas geradoras de
conteúdo/tráfego e as detentoras de rede estão na mira do governo. Parece claro que a mera ameaça de regulação
dos contratos já é o suficiente para afetar as perspectivas de novos
investimentos, de modelos de negócio e de preços.
No final, é o consumidor
que sai prejudicado. Estaríamos nós presenciando o fim da Era de Ouro da
Internet, caracterizada pela inovação, redução dos preços e constante melhoria
dos serviços? O tempo dirá.
Mas é necessário,
também, vasculhar algumas das causas desse tipo de intervenção. Do ponto de vista da ciência econômica,
medidas como a neutralidade rede encontram fundamento na abordagem equivocada
que os adeptos da escola neoclássica — há muitos anos a mais influente na
academia e nos gabinetes de repartições públicas — têm sobre concorrência.
De forma sucinta, sob o
prisma neoclássico, determinado mercado apresenta maior nível competição quanto
mais intensos forem os fatores que caracterizam a chamada "concorrência perfeita".
Caso o mercado analisado
demonstre elevado número de empresas e consumidores, homogeneidade dos
produtos, plena informação aos agentes, inclusive nas condições contratuais, e
baixos custos de transação, então é possível afirmar que este setor tem elevado
grau de competição. Pouca atenção se dá
ao sistema de preços, à função (criatividade) empresarial e à importância da
propriedade privada. Quaisquer desvios
dos pré-requisitos listados aumentam as "imperfeições" do mercado, o que acaba
por fornecer os argumentos necessários para a regulação e a consequente
correção das "falhas".
Para a elucubração
acadêmica e para uma adequação a modelos matemáticos, tais pressupostos podem
até fazer algum sentido. No entanto, a
observação da realidade dos mercados mostra algo completamente diferente.
Percebe-se que a
concorrência não depende de variáveis objetivas, como o número de agentes
atuando, mas sim do grau de liberdade institucional, ou seja, ausência de
restrições extra-mercado. Em um ambiente
livre de empecilhos governamentais, as empresas sobrevivem convencendo os
consumidores a adquirir seus produtos. Com
o objetivo de fidelizar seus clientes, elas recorrem a inovações e
diferenciações de produtos. Os contratos
com fornecedores e consumidores geralmente não estão abertos ao público, pois
eles mesmos são fatores de diferenciação. As fusões e aquisições, nesse cenário, não
refletem um complô de empresários contra os consumidores, mas são reflexo da
própria pressão competitiva.
Pode-se dizer que essas
são formas perfeitamente legítimas e benéficas do "poder de mercado", que não
passa de uma forma um tanto jocosa de dizer que tal mercado é guiado
primordialmente pelos consumidores. Aqui o professor Jesús
Huerta de Soto esclarece de forma mais detalhada os graves problemas contidos
na definição neoclássica de concorrência.
Ora, somando-se aos
argumentos da economia convencional a vontade inata da classe política de
controlar o fluxo de informações presente na Internet, temos o ambiente
perfeito para o surgimento do conceito de neutralidade de rede. Sob essa ótica supostamente científica, a
prática, por exemplo, do zero rating deve
ser combatida com todos os instrumentos, uma vez que ele reflete o "poder de
mercado" das empresas. É uma ação
claramente "anticoncorrencial", irão dizer.
Para finalizar, é necessário
ressaltar que até hoje a Internet se desenvolveu sem a imposição de medidas
estatais para "beneficiar os consumidores" ou para "proteger a concorrência". Outra falácia amplamente trombeteada é que a
Internet é "terra de ninguém". Mentira. Uma constelação de organizações
não-governamentais propõe protocolos e procedimentos, que são acatados
livremente ou com reduzido nível de coerção. Sem falar dos vultosos montantes que são
investidos por empresas privadas, orientadas sim pelo lucro, mas também
responsáveis por inovações e melhorias jamais imaginadas.
Mas agora temos a
neutralidade de rede, a primeira grande medida dos governos sobre a Internet. Prometem-nos
uma rede livre, aberta e democrática. Prometem
também que estaremos protegidos dos interesses das grandes corporações. Argumentos que exalam cheiro de mofo.
Pois bem, a primeira
consequência concreta de tão excelsa e científica regulação é a proibição da
gratuidade de determinados serviços. Esperemos pelas próximas.
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Leia também:
Contra o Marco Civil e a
neutralidade de rede
Marco Civil da Internet:
cada vez mais contra
A não-neutralidade de redes
é uma prática corriqueira de mercado