quarta-feira, 24 set 2014
Fundado em 1694, o Banco da Inglaterra só não é mais antigo
que o Sveriges Riksbank, o Banco Central da Suécia. Considerando sua
experiência acumulada durante os últimos 320 anos, quando um banco central
dessa estatura fala algo, é interessante escutar. Podemos até não concordar,
mas é sempre válido ouvir atentamente ao que dizem.
Para nossa grata surpresa, em seu boletim
trimestral do 3º trimestre de 2014, o banco dedicou um espaço nobre e
considerável para tratar das moedas digitais em geral e do bitcoin em específico. Antes
de tudo, é preciso reconhecer: a iniciativa é louvável. Não me lembro de ter
visto nenhum banco central com tamanha relevância no sistema financeiro mundial
se esforçando de forma genuína para compreender o intrigante fenômeno das
criptomoedas e suas implicações na economia mundial.
Vale notar que o boletim do terceiro trimestre pode ser
visto como uma continuação do primeiro
boletim, publicado em 2014, que tratava da moeda na economia moderna e como
a criação de dinheiro ocorre hoje em dia ("Money
in the modern economy: an introduction" e "Money creation in the modern
economy") — ambas as leituras são fortemente recomendadas.
Dito isso, vamos ao que interessa: o que o Banco da
Inglaterra tem a dizer sobre as moedas digitais?
Separando a análise em dois artigos próprios, o banco concentrou-se
primeiramente em explicar o funcionamento das moedas digitais. Sob o título de "Inovações
em tecnologias de pagamento e o surgimento de moedas digitais", o texto
procura contrastar a forma centralizada dos sistemas de pagamentos atuais que
dependem de terceiros de confiança com a natureza descentralizada do sistema de
pagamentos das criptomoedas.
Diferentemente das moedas tradicionais, conclui o artigo, o
bitcoin é ao mesmo tempo uma moeda e um sistema de pagamentos.
O banco também reconhece que, apesar de o aspecto monetário
ter atraído mais atenção até o momento, a grande inovação jaz na tecnologia do
"registro contábil distribuído" (distributed
ledger), que poderá ser aplicada não somente ao dinheiro, mas também aos
mais diversos ativos e instrumentos financeiros do mundo moderno.
Mas a análise mais profunda e instigante está na segunda
parte, intitulada "A
economia das moedas digitais". Nela os autores exploram as propriedades das
moedas digitais sob a perspectiva das funções do dinheiro — reserva de valor,
meio de troca e unidade de conta –, comparando-as com as moedas fiduciárias —
a principal forma de dinheiro no mundo moderno.
Um fato desconhecido por muitos, mas perfeitamente
destacado no primeiro boletim trimestral de 2014, é que a nossa moeda
fiduciária nada mais é do que uma forma de dívida. Como a maior parte da massa
monetária em circulação é criada pelo sistema bancário, os depósitos dos
correntistas são uma obrigação do banco para com os clientes.
Na terminologia inglesa, depósitos são um IOU ("I owe you", em português "eu lhe devo")
que os bancos emitem em favor dos clientes. E as cédulas de dinheiro emitidas
pelo banco central são uma forma especial de obrigação não conversível, do
banco perante o portador — passivo da autoridade monetária, ativo do portador.
Em suma, nosso dinheiro hoje em dia é baseado em dívida —
contra os bancos e os bancos centrais. Essa é a natureza da moeda fiduciária.
Para saber mais, recomendo este artigo sobre o sistema
bancário.
Em total contraste — e como muito bem ressaltam os autores
do boletim —, as criptomoedas são uma "espécie de commodity". Mas, conclui o
artigo, "ao contrário das commodities físicas como o ouro, elas são ativos
intangíveis, ou commodities digitais".
Concordo plenamente. Inclusive dediquei um post especificamente à classificação
do bitcoin.
Entretanto, afirma o Banco da Inglaterra, o fato de "as
moedas digitais não serem um passivo do banco central (ou do governo) não
impede de serem usadas como dinheiro, embora marque uma diferença importante
entre elas e as moedas nacionais".
Portanto, seriam as moedas digitais dinheiro propriamente
dito?
Segundo os autores, "atualmente, elas preenchem o papel de
dinheiro apenas até certo ponto e para uma pequena porção de pessoas. E somente
servem todas as três funções da moeda talvez para alguns milhares de indivíduos
no mundo".
Em outras palavras, e o que já escrevi algures, o bitcoin pode
ser considerado dinheiro, sim, embora seja menos líquido do que as moedas
fiduciárias tradicionais.
Mas e como as moedas digitais desempenham as funções
clássicas do dinheiro? No quesito "reserva de valor" — conforme afirmo no meu
livro, reserva de valor é meramente um aspecto temporal da função primordial de
meio de troca —, apesar de a oferta ser autenticamente escassa, "as
perspectivas da demanda futura são bastante incertas".
Um dos motivos apontado pelos autores é a falta de qualquer
"demanda intrínseca", isto é, bitcoins, por exemplo, "não são usados como bens
de produção nem são consumidos". Esse argumento vai ao âmago da questão do
valor do bitcoin: "para o quê mais serve o bitcoin além de ser dinheiro? Qual a
sua utilidade?". Embora esse tema mereça um artigo exclusivo, é preciso
esclarecer alguns pontos.
Demanda intrínseca — ou valor intrínseco para alguns —
simplesmente inexiste. Os consumidores demandam bens pelo valor que lhe
atribuem subjetivamente, com a expectativa de que tais bens possam suprir-lhes
alguma necessidade. Existem, no entanto, propriedades
intrínsecas, o que não garante demanda ou valor algum a nenhuma mercadoria.
Outra forma de interpretar a "falta de demanda intrínseca"
é que não há uma demanda mínima para o bitcoin. Ao contrário do ouro, que pode
ser usado na indústria, e das moedas fiduciárias, que gozam do respaldo estatal
que lhe asseguram uma demanda mínima, o bitcoin é desprovido de qualquer outro
uso além de meio de troca. Segundo essa ótica, a demanda do bitcoin depende
unicamente da expectativa de que outras pessoas irão aceitá-lo no futuro, as
quais esperam que ainda outras pessoas o aceitarão, e assim por diante — por
isso alguns analistas, erroneamente, enxergam no bitcoin uma espécie de
pirâmide financeira.
Mas se entendemos que o bitcoin é ao mesmo tempo um sistema
de transferência de fundos global rápido e barato e que somente unidades
monetárias de bitcoins podem ser transferidas nessa plataforma, é possível que,
no fim das contas, haja algum valor de fato nesse arranjo. E se entendemos que
esse protocolo poderá ser usado para outros fins que nem possamos prever com
exatidão neste momento, é possível que haja ainda mais utilidade no Bitcoin.
Quão intensa será essa demanda no futuro? Quanto valor os
indivíduos atribuirão ao bitcoin em alguns anos? Não podemos precisar com
acurácia. Mas prevejo que será em algum lugar muito acima de zero.
Com relação à função de meio de troca, os economistas do
Banco da Inglaterra ressaltam que cada vez mais empresas estão aceitando a
moeda digital como forma de pagamento. Ainda que seja uma fração da economia
mundial, a tendência é sem dúvida de alta.
Entretanto, há poucos indícios de que o bitcoin ou outra
moeda digital estejam sendo usados como unidade de conta — a terceira função
do dinheiro. Não surpreende, pois realmente ainda falta algum tempo para o
bitcoin atingir a maturidade e o estágio avançado de liquidez a ponto de ser
usado para a precificação de bens e serviços em geral. É necessário muito menos
volatilidade, e muito mais volume e liquidez, para que esse dia chegue.
Vale destacar uma das seções mais importantes do texto —
sob o título de "Os problemas macroeconômicos de uma oferta monetária fixa: um
experimento mental de moeda digital" —, em que os autores se lançam a uma
análise hipotética das implicações para uma economia em que as transações
ocorrem majoritariamente com uma moeda digital semelhante ao bitcoin. Imaginem
uma economia em que o bitcoin seja a moeda corrente.
Para facilitar a crítica, destacarei alguns trechos do
texto em vermelho.
Segundo o artigo, "a teoria econômica sugere que o bem-estar social seria menor
em uma economia hipotética baseada em uma moeda digital do que em uma segunda
economia hipotética baseada no sistema de moeda fiduciária". Por
quê?
"Uma vez que a maioria das moedas digitais apresenta uma
oferta finita predeterminada, esse arranjo poderia contribuir para a deflação
nos preços dos bens e serviços. A inabilidade da oferta monetária de variar em
resposta à demanda provavelmente causaria uma volatilidade nos preços e na
atividade econômica, reduzindo o bem-estar social."
O argumento da deflação é uma das maiores falácias no campo
da ciência econômica, a qual é derivada de um errôneo entendimento do fenômeno.
No sentido correto do termo, deflação nada mais é do que uma contração da
oferta monetária — o oposto de inflação. Mas o termo é usado normalmente para
designar uma queda generalizada dos preços.
Preços em queda não são o problema. Uma economia pode
desenvolver-se por um longo período e muito bem mesmo com preços em queda ano
após ano. Isso significa apenas que a economia está mais produtiva e a oferta
monetária é relativamente inelástica — mais bens e serviços para uma oferta
monetária que cresce comedidamente.
A grande questão está em entender que há uma deflação boa e
uma ruim. A boa é a que acabamos de explicar: uma quantidade de dinheiro
inelástica em uma economia cada vez mais produtiva. A ruim é aquela gerada pela
expansão monetária prévia, como a que ocorreu durante a Grande Depressão.
Compreender o fenômeno da expansão monetária e os ciclos
econômicos é chave para identificar as relações de causa efeito entre o aumento
da atividade econômica insustentável e seu eventual colapso. Quando este chega,
ocorre uma forte contração monetária, isto é, a quantidade de moeda é reduzida
intensamente devido aos empréstimos devolvidos aos bancos e também pela
eliminação das dívidas não pagas do balanço. Essa contração monetária abrupta
tem como resultado uma forte queda nos preços dos ativos e dos bens em geral.
Tal deflação é ruim porque é precedida por uma expansão
monetária que contém as sementes da sua própria destruição — precisamente o
que ocorreu na década de 1920, levando à quebra da Bolsa norte-americana e à
Grande Depressão. Para entender com detalhes as etapas da expansão e contração
monetária, veja o
capítulo IV do livro de Jesús Huerta de Soto sobre ciclos econômicos.
Mas, de acordo com o artigo, a deflação é perigosa porque, "Quando os preços
dos bens e serviços estão caindo, as famílias têm um incentivo para postergar
ou até mesmo abandonar os planos de gastos. A teoria econômica, portanto, prevê
que tanto a demanda agregada quanto a produção potencial cairão e, se a
deflação for indefinida, que a taxa de desemprego será permanentemente mais
elevada".
Surpreende-nos que esse raciocínio até hoje perdure sem uma
análise mais rigorosa. Por mais que preços em queda possam desestimular um
indivíduo a gastar imediatamente, ninguém posterga compras necessárias
indefinidamente, muito menos as abandona por completo. Todos nós precisamos
consumir um mínimo para fazer frente às necessidades mais básicas da espécie
humana. E no caso de bens de capital ou produtos de maior valor agregado, cedo
ou tarde acabaremos gastando e adquirindo o que se deseja ou necessita.
Agora, se deflação ilimitada significa que os preços caem
ano após ano, isso em nada deve preocupar-nos. A indústria da computação
"sofre" de deflação ilimitada há décadas, e, apesar dela, as empresas prosperam
e os consumidores se esbanjam com a crescente quantidade e qualidade dos bens
produzidos.
Mas deflação ilimitada no sentido a que normalmente se
referem — uma queda de preços cada vez maior e sem fim — é uma quimera. Os
economistas apegam-se a essa noção de deflação provavelmente por causa da Grande
Depressão, quando houve uma forte contração monetária e uma queda
vertiginosa nos preços dos ativos no período de 1929 a 1933.
Mas pensemos bem, mesmo quando há uma contração monetária,
ela jamais será ilimitada. Mesmo que toda a oferta de dinheiro criada pelos
bancos seja extinta, ainda sobrarão as cédulas e moedas emitidas pelo Banco
Central. Nesse ponto cessará a contração monetária. Nesse ponto cessará a
deflação, e os preços não mais cairão em uma espécie de "espiral
deflacionária". Ilimitada, somente a inflação pode ser; a deflação, jamais.
E para remediar o suposto problema de uma massa monetária
fixa, os economistas do Banco da Inglaterra recomendam que seja adotada uma
regra diferente para a provisão de moeda.
"Um segundo problema deriva da inabilidade da oferta
predeterminda de responder à variação de demanda. A demanda agregada por moeda
é volátil, por razões que podem ser sazonais (como as compras de Natal),
cíclicas (como quando em recessões) ou estruturais (devido às melhorias
tecnológicas). Se a oferta de moeda não pode responder a essas variações,
volatilidade de preços será o resultado, causando volatilidade na atividade
econômica e destruição do bem-estar social."
Em primeiro lugar, não existe uma demanda agregada por
moeda. Existe apenas a demanda de cada indivíduo por moeda, em que cada agente
determina o quanto de dinheiro manter de encaixe.
A questão subjacente nesse trecho é a busca pela estabilidade
de preços — independentemente de como esta é definida, se por um aumento de
preços constante ao redor de 2% ou nenhum incremento —, algo que preocupa os
economistas há pelo menos um século. A teoria por trás dessa política monetária
deriva de um entendimento equivocado de que a estabilidade de preços é condição
para evitar os ciclos econômicos.
Ludwig von Mises há muito refutou os economistas que
defendiam uma política de estabilidade de poder de compra da moeda (para quem
quiser se aprofundar no assunto, recomendo este
livro), e não entediarei o leitor replicando todo o argumento neste espaço.
Mas é preciso fazer algumas considerações. Primeiro, um
aumento na demanda por moeda, isto é, um aumento no nível de encaixe, tende a
fazer com que o dinheiro ganhe poder de compra. Com menos dinheiro circulando,
os bens e serviços tendem a custar menos. Uma política de estabilização de
preços buscaria contrabalançar esse aumento da demanda por moeda provendo ao
mercado mais dinheiro — usando o jargão atual, "injetando liquidez no
sistema".
O resultado dessa política são as arbitrariedades
inevitáveis: em que setor da economia injetar liquidez? Por quanto tempo? Com
qual intensidade? Qual indicador sinaliza a necessidade de prover mais moeda ao
mercado? Como medir a perda do poder de compra da moeda com exatidão? Não
existem respostas científicas a essas perguntas, existem apenas decisões
políticas.
Em segundo lugar, uma injeção de moeda não é neutra na
economia. Aumentar a oferta de moeda acarreta distorções graves na cadeia
produtiva de um país, com efeitos nem sempre previsíveis, embora inexoráveis.
Na tentativa de corrigir uma suposta falha, geram-se outros desajustes.
Estabilidade de preços não é garantia de estabilidade
financeira. Estabilidade de preços não assegura a ausência de volatilidade da
atividade econômica. Mas a expansão artificial de moeda para remediar essa
falha imaginária causa, de fato, distorções e volatilidade na atividade
econômica.
Como afirmou Mises em referência à estabilidade de preços
durante o padrão-ouro: "A superioridade do padrão-ouro consiste no fato de que
o valor do ouro se desenvolve independente de ações políticas. É claro que seu
valor não é 'estável'. Não há, nem jamais poderá haver, tal coisa como a
estabilidade de valor".
O mesmo pode-se afirmar com relação às moedas digitais: o
grande mérito dessas novas formas de dinheiro está na independência política da
provisão de moeda. Em uma economia hipotética baseada em uma moeda digital, a
oferta fixa de moeda não impõe complicações do ponto de vista da teoria
econômica. Um aumento na demanda por moeda ou uma maior produtividade da
economia não precisam ser contrabalançadas por uma maior quantidade de
dinheiro. Os ajustes ocorrerão via preço, de forma natural, prescindindo de
qualquer intervenção estatal.
Essas ponderações podem nos levar à seguinte indagação:
afinal, qual a quantidade ideal de moeda para uma economia? A resposta é
simples: qualquer quantidade serve. Não importa se há um trilhão ou um bilhão
de dólares. Importa apenas que não haja alterações abruptas e intensas na
oferta de moeda.
Trazendo esse insight à realidade do bitcoin (ou outras moedas
digitais), é irrelevante se o limite de emissão de unidades de bitcoin seja 21
milhões ou 57 bilhões ou qualquer outro numerário. É preciso apenas que a
oferta de moeda não sofra surtos inflacionários ou deflacionários súbitos e
intensos. Considerando que há uma perfeita divisibilidade do bitcoin — há um
total de oito casas decimais para cada unidade, podendo ser aumentadas no
futuro —, uma economia hipotética baseada em uma moeda digital com oferta
monetária fixa não supõe problema algum.
Encerrando o tópico da provisão monetária e a discussão
sobre uma economia hipotética baseada em criptomoedas, o boletim do Banco da
Inglaterra aborda também as implicações das moedas digitais para a estabilidade
monetária e financeira no mundo de hoje.
Em suma, não há riscos relevantes no momento porque o
bitcoin e as demais criptomoedas constituem uma porção ínfima do sistema
financeiro mundial, podendo ser negligenciadas até então sob a perspectiva de
política monetária. Não discordaria dessa assertiva.
É interessante notar, também, o alerta do banco a um risco
específico restrito às moedas digitais — o ataque dos 51% —, o qual
constituiria uma espécie de "fraude generalizada do sistema". Curiosamente, há
quem alegue — incluindo este que vos escreve — que o nosso próprio sistema
monetário atual é em si uma espécie de fraude generalizada. Para tirar suas
próprias conclusões, recomendo assistir ao documentário abaixo sobre a crise de
2008 e o sistema bancário como um todo.
Ainda sob a perspectiva da estabilidade financeira, os
autores também chamam a atenção ao risco do surgimento da prática das reservas
fracionárias — embora ainda bastante improvável — com alguma moeda digital de
forma não regulada (fractional reserve banking in an
unregulated fashion).
Aqui, apenas um pequeno, mas fundamental, adendo. Reservas
fracionárias, reguladas ou não, são o
maior risco à estabilidade financeira de qualquer sistema. E diria mais,
reservas fracionárias reguladas são um risco maior ainda, pois quando há o
respaldo de um banco central e toda uma arquitetura bancária legal permitindo
essa prática, a magnitude com que o sistema bancário é capaz de expandir a
oferta de moeda é muito superior do que seria na ausência do amparo estatal.
Por fim, o maior risco hipotético à estabilidade monetária
apontado pelo banco é o caso de uma economia ser "bitcoinizada", isto é, uma
economia em que a maior parte das pessoas adota uma moeda alternativa para
realizar suas transações do cotidiano. Inegavelmente, a capacidade de qualquer
banco central de influenciar a atividade econômica e o nível geral de preços
nesse caso seria bastante reduzida ou até nula, uma vez que a demanda por moeda
nacional seria parca em comparação com a demanda por bitcoins.
Mas, segundo os autores, "esse cenário é extremamente improvável por
causa dos obstáculos a uma adoção difundida de uma moeda digital impostos pela própria
concepção desses esquemas, sendo implausível, salvo no caso de um colapso
severo da confiança na moeda fiduciária".
Por "concepção" ou "desenho" das moedas digitais,
entendemos a sua provisão de oferta monetária rígida predeterminada e,
essencialmente, imutável. No entanto, do ponto de vista puramente teórico — e
contrariando aquilo em que o Banco da Inglaterra acredita —, essas
características das moedas digitais não são um empecilho a uma maior adoção.
A grande verdade é que a teoria econômica moderna é incapaz
de compreender a ascensão do bitcoin porque até hoje ela não entendeu o
surgimento do dinheiro em
si. Segundo a teoria econômica mainstream, o bitcoin jamais teria sido valorado por qualquer
indivíduo, jamais teria deixado o posto de mero experimento de computação
fadado ao fracasso. Por isso as moedas digitais intrigam tanto.
Já ouvi dezenas de economistas prognosticando a morte do
bitcoin, o que é curioso, uma vez que nenhum deles nem sequer entende como o
bitcoin nasceu, pois, segundo suas teorias, jamais poderia ter nascido.
E isso diz muito sobre o atual estágio da ciência
econômica. Pensa-se apenas em "agregados", esquecendo-se, ou ignorando-se, que
existe somente a ação humana, as ações de bilhões de indivíduos trabalhando,
produzindo, vendendo e comprando, ofertando e demandando, formando os preços no
mercado e a própria noção de "economia" como a entendemos.
Políticas públicas com embasamento científico em agregados
econômicos estão condenadas a fracassar sempre. A "demanda agregada" não pode
ser estimulada porque não passa de uma construção abstrata. Assim, a "demanda
agregada por moeda" é uma noção ilusória e irreal, sem aplicação prática
alguma.
As moedas digitais não precisam adotar regras "mais inteligentes",
conforme sugerido pelos economistas do Banco da Inglaterra, para lograr uma
adoção mais ampla. Basta propiciar uma redução nos custos de transação, além de
outras vantagens frente às moedas tradicionais.
A priori, podemos
afirmar apenas que o ser humano prefere o melhor ao pior, mais a menos. Nesse
sentido, tendemos a preferir uma moeda que se aprecia ou mantém o poder de
compra a uma que é desvalorizada constantemente. Mas escassez relativa não é a
única característica que faz uma moeda ser escolhida pelo mercado.
Antes da era digital, uma mercadoria com elevada escassez
(diamantes, por exemplo) tinha poucas chances de preponderar no mercado como
dinheiro, porque sua divisibilidade era limitada — seria impossível separar um
diamante em microgramas, nanogramas, e assim por diante, até um yoctograma.
Nesse sentido, uma moeda com escassez elevada, mas divisibilidade restrita,
precisaria ver sua oferta aumentada para "suprir as necessidades de comércio" —
o ajuste unicamente via preço não bastaria.
Com a introdução das moedas digitais, há uma perfeita
divisibilidade, tornando a escassez elevada — no caso do bitcoin —
irrelevante para fins de uso como moeda corrente.
Se moeda boa expulsa moeda ruim, entendo que os indivíduos
de uma economia hipotética baseada em uma criptomoeda darão preferência a uma
moeda que se aprecia mais que as restantes. Se verificarmos a história milenar
do ouro como moeda corrente e levarmos em conta o pequeno crescimento anual da
sua oferta — ao redor de 2% —, podemos intuir também empiricamente que uma
massa monetária inelástica ou estática não seria um problema.
Depois de um século do mais puro socialismo aplicado ao
âmbito monetário, os economistas modernos são incapazes de sequer pensar na
possibilidade da ausência de inflação e de como uma economia com moeda forte
poderia funcionar. Mas graças ao bitcoin, estão todos sendo obrigados a
revisitar a teoria monetária.
Olhando por esse prisma, já considero o fenômeno das moedas
digitais um enorme sucesso, porque, indiretamente, trouxe de volta ao centro do
debate econômico o ideal de um dinheiro apolítico e os malefícios da política
de inflação e do planejamento central da moeda.