quinta-feira, 10 dez 2015
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Indivíduos qualificados escolhidos pelo povo
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Sêneca,
o filósofo romano, relata a estória do assassinato de Calístenes por Alexandre,
o Grande como sendo o "crime eterno" do líder macedônio. Escreveu Sêneca em sua enciclopédia
Naturales Quaestiones:
Sempre que alguém disser que 'Alexandre
matou vários milhares de persas', a contra-resposta será: "E matou Calístenes
também". Quando alguém disser que
'Alexandre matou Dario, que possuía o maior reinado da época', a resposta será:
"E ele matou Calístenes também". Quando
alguém disser que 'Ele conquistou tudo o que havia sobre a terra até o
oceano... e estendeu seu império desde uma esquina de Trácia até as fronteiras
mais longínquas do Oriente', a resposta será: 'Mas ele matou Calístenes'. Embora ele tenha ido muito além das façanhas de
todos os generais e reis que o precederam, dentre todas as coisas que ele fez nada
será tão grande quanto esse seu crime.
Essa
anedota resume dramaticamente aquilo que já foi considerado a mais sublime
criação da Civilização Ocidental: o indivíduo aristocrata, celebrado desde os
filósofos romanos, passando pelos ingleses do século XVIII, como Gibbon, até chegar aos
americanos do século XIX, como Emerson.
Desde
o apogeu daquela visão prometéica sobre o imensurável potencial do indivíduo —
que fez de um Calístenes alguém mais importante do que todo um exército — até
chegarmos à visão degenerada do indivíduo como um ser inevitavelmente fraco,
cujo interesse próprio é quase sempre malévolo e cuja dignidade é
inevitavelmente desvalida, poucas ideias ocidentais foram mais aviltadas e
sujeitadas a uma implacável destruição do que a noção de indivíduo.
Com
efeito, nada é mais banal e clichê do que vituperar contra a noção de
individualismo, e caluniá-la como sendo algo inerentemente pecaminoso e
moralmente errado. O "si próprio" passou
a ser visto como um repositório de vergonha viva, culpa, ganância e atitudes
anti-sociais.
É
essa moderna e deturpada noção de "individual" que fez com que os problemas
maciços enfrentados por todas as democracias ocidentais deixassem de ser
fundamentalmente políticos e se tornassem majoritariamente filosóficos.
E
tal realidade, por sua vez, resultou de uma confusão acerca de dois conceitos
completamente distintos de democracia: há a democracia aristocrática — que foi
aquela que os Pais Fundadores dos EUA tinham em mente — e há a democracia
igualitária, que é justamente essa que criamos e na qual vivemos, e que está
nos colocando em perigo.
Foi
o próprio Thomas Jefferson quem disse que os cargos públicos deveriam ser
exercidos por "aristoi naturais" e que a educação em uma República
deveria ser "democrática e aristocrática".
Também é válido relembrar os receios quase obsessivos de James Madison e
Alexander Hamilton sobre uma "oclocracia",
bem como a repulsa de ambos à ideia de democracia direta. (Escreveu
John Randolph:
"Quando falo em povo, tenho em mente apenas a parte racional dele. Os ignorantes e vulgares são incapazes tanto
de julgar as modalidades de governo quanto de controlar suas rédeas").
Para
ficar bem claro: "igualitário" não significa igualdade; significa o menor
denominador comum tendo a maior influência política e cultural possível, seja
essa influência impulsionada pela elite ou pelas massas. E o termo "aristocrático" é aqui utilizado
não no sentido de baronatos, linhagens e fortificações muradas, mas sim em seu
original sentido filosófico, o qual foi muito bem resumido por ninguém menos
que o poeta Lord
Tennyson como significando "auto-respeito, auto-suficiência e
auto-perpetuação".
É
essa qualidade de pensar no longo prazo, algo inerente à perspectiva aristocrática,
que é o seu mais importante aspecto. É
isso o que faz com que a liberdade do indivíduo em uma sociedade democrática
seja duradoura e esteja ligada àquilo que o torna capaz de se sustentar e se manter
vivo: seus meios de produção, ou o capitalismo.
Isso
significa que uma democracia adequada — na qual o "auto-respeito e a
auto-perpetuação" necessários ao cidadão são preponderantes — tem
necessariamente de ser "devidamente" capitalista, pois apenas esse arranjo
permitirá ao cidadão sua "auto-perpetuação" no longo prazo.
O
futuro da democracia será decidido pela disputa entre visões de curto e de
longo prazo. Nas décadas vindouras, é
isso o que determinará se o Ocidente conseguirá ou não sair do seu declínio.
Em
suma: se as modernas democracias capitalistas ocidentais quiserem sobreviver,
elas terão de incorporar aquilo que sempre consideraram ser seu completo
oposto: características aristocráticas (a visão de longo prazo). Se, por outro lado, as coisas continuarem
como estão, a democracia irá cada vez mais assumir características totalitárias
e culminar naquilo que Thomas Jefferson rotulou de "despotismo eletivo", em que
uma suposta vontade popular será incorporada em um governante que, por sua vez,
irá subjugar completamente uma população impotente, indefesa e desarmada.
Uma
notável tendência intelectual e social que ilustra bem todos esses fatores — a
deturpação do conceito de indivíduos; a preferência maciça pelos apetites e
impulsos do presente; o moderno desprezo da sociedade pelo futuro e pelo
planejamento para o futuro — pode ser vista no relativamente recente modismo
de querer "transformar" o capitalismo em algo que ele não é e que jamais
deveria se tornar. A subversão está
ocorrendo justamente naquele ponto em que subversões tendem a ocorrer primeiro:
na linguagem.
Alterações
sutis na terminologia começaram a ganhar força desde o início da crise financeira, e só se
intensificaram de lá para cá. Hoje, é
corriqueiro vermos filósofos, sociólogos e até mesmo economistas clamando por
um "socialismo de mercado", ou por um "mercado socialmente regulado", ou por um
"capitalismo comunitário", ou por um "capitalismo social", ou por um
"empreendedorismo mais includente".
Igualmente comuns são os apelos para se acabar com algo que chamam de
"capitalismo excludente" ou "capitalismo selvagem".
Superficialmente,
tudo isso parece inofensivo, até mesmo positivo. Com efeito, para muitas pessoas, inclusive
líderes empresariais, essas novas categorias de pensamento representam um passo
inteligentemente progressista na direção correta, em que as finalidades
produtivas do capitalismo são respeitadas ao mesmo tempo em que alguns
elementos de fiscalização social são incluídos no arranjo. Como benefício adicional, dizem seus
defensores, a palavra 'capitalismo' fica purificada de suas conotações depreciativas.
Mas
é aí que jaz o perigo. Na raiz deste
linguajar sutil está a filosofia de que o cerne do sistema capitalista — o
indivíduo e seus ganhos individuais, sua busca pelo lucro, seu interesse
próprio, sua distinção pessoal e até mesmo a sua glória — é algo na melhor das
hipóteses reprovável; na pior, inerentemente e irremediavelmente criminoso e
corrupto.
Simultaneamente,
de acordo com tal pensamento, somente uma mentalidade grupal/comunal/social
possui um objetivo econômico legítimo e, por extensão, moralmente
superior. Esse modismo recorre ao truque
baixo de equiparar o genuíno capitalismo ao atual arranjo corporativista em que
uma pequena elite que
tem boas relações com políticos é beneficiada com subsídios, com políticas
protecionistas e com regulações específicas que lhe garantem reservas de
mercado. Recorre também ao truque baixo
de equiparar capitalismo com o gangsterismo de alguns bancos que, justamente por saberem que
serão socorridos pelo estado caso façam apostas mal sucedidas, fazem
lambança, se tornam insolventes e derrubam economias inteiras. O objetivo é solapar e difamar o conceito de capitalismo.
A
premissa do capitalismo é dessa maneira revertida: os fins passam a ser a
coletividade, e a redistribuição passa a ser uma ética suprema, mais importante
do que a proteção aos meios fundamentais de produção, que são o indivíduo, sua
mente e sua capacidade. O igualitário se
torna o objetivo a ser almejado ao passo que o aristocrático — os tradicionais
padrões éticos e morais, o planejamento de longo prazo e a perpetuação da
geração — se torna o objeto de desprezo.
Eric
Hoffer, em seu clássico The
True Believer, escreveu:
A razão por que elementos inferiores de uma
nação conseguem exercer uma grande influência sobre seu destino é que eles são
completamente destituídos de respeito e reverência pelo presente e pelo
futuro. Eles veem tanto suas vidas
quanto o mundo atual como tragédias sem solução, e, por isso, estão
permanentemente dispostos a desperdiçar e destruir ambos. Daí sua propensão ao caos e à desordem.
Este
é o caminho da autodestruição de um igualitário. Ele pensa apenas no curto prazo, pois o
presente é um martírio a ser superado, o passado é invariavelmente uma fonte de
tormentos, e o futuro está fora do seu controle e além de suas
preocupações. O curto prazo é o
conveniente, é o instantâneo, é o estimulador do apetite. Rapidamente, o curto prazo se torna não
apenas a mentalidade econômica escolhida, mas também a política, cultural e
social.
E
então tudo passa a ter um horizonte temporal curtíssimo. Todos visam apenas ao curto prazo em termos
financeiros, políticos, educacionais, amorosos, de relações humanas, de
durabilidade de um produto ou serviço, de comprometimentos, de concentração, de
esforço. Até mesmo a arte sofre uma
forte degradação: filmes, músicas e pinturas são reciclados, descartáveis e
esquecíveis. Tudo isso gerou a atual
safra de capital humano que temos hoje.
E então, a vox populi e seus
representantes políticos passam a deplorar esse capital humano como sendo
composto de indivíduos desgraçados, vorazes e exploradores, que fazem
maquinações e trapaças para conseguir o que querem da maneira mais rápida
possível. Ora, eles deveriam ter previsto
isso. Foram eles que criaram esse
"indivíduo".
Por
mais dramático que pareça, há um fim direto para tudo isso. Uma sociedade democrática que não exige
padrões éticos e morais mais elevados de seus indivíduos irá se tornar, por
total falta de opção, totalitária. Ou
seja, se nada for exigido do indivíduo, então nada poderá ser exigido das
massas, pois aquilo que não é exigido de uma pessoa não pode ser exigido de uma
manada. Com o tempo, surgirá um
indivíduo que incorporará a "vontade popular", e ele será investido da
responsabilidade de cuidar de todos, transformando-se em um déspota esclarecido
— o "déspota eleito", nas palavras de Thomas Jefferson.
No
mundo ocidental atual, há um capital humano que não está muito apto para uma
democracia aristocrática — certamente, não economicamente. O elemento aristocrático presente em uma
democracia é o que garantirá sua qualidade no longo prazo. A aristocracia é o instinto necessário que a
democracia terá de adquirir novamente se quiser sobreviver. E, para isso, o capitalismo — que fornece o
apoio prático a esse tipo de democracia — terá de se livrar de seus pretensos
modificadores (que vivem mortificados por uma espécie de culpa inconsciente) e
de rótulos apologéticos que lhe foram pregados.
Houve
uma época na Europa em que essa visão de mundo gerou grandes fortunas que foram
acumuladas com o intuito de sustentar gerações com um mesmo sobrenome. Nos EUA, esse arranjo europeu se tornou uma
inspiração para James Madison, John Adams e Thomas Jefferson, que seguidamente
enfatizavam a necessidade de "cidadãos valentes e nobres" para preservar seu
vasto e incrível experimento.
Essa
é a concepção do tipo de indivíduo que nenhuma grande força — imperadores,
exércitos, governos — é capaz de substituir.
É desse tipo de aristocracia que necessitamos urgentemente no mundo
ocidental.