Já
faz um bom tempo que a Polônia não frequenta os noticiários internacionais, e
isso é sinal de que as coisas estão calmas nesta nação do Leste Europeu. No entanto, durante toda a década de 1980, a
Polônia foi uma fábrica contínua de notícias.
Foi o país mais expressivo e agitado por trás da Cortina de Ferro.
Hoje
a Polônia é uma vibrante economia de mercado, cujas condições de vida não estão
distantes daquelas da Europa Ocidental.
Os supermercados e as lojas de departamentos, que estão em todos os
cantos, são repletos de bens variados e oriundos de todos os cantos do
mundo. As cidades ostentam grandiosas e
modernas edificações. Há até mesmo novas
igrejas sendo construídas — algo proibido sob o regime comunista. Todas as fachadas antigas e decrépitas da era
comunista foram renovadas, e aquele antigo e lúgubre cinza foi substituído por
cores mais vibrantes. Os problemas de transporte estão praticamente
resolvidos. As rodovias são novas
e modernas, e suplementam um excelente sistema ferroviário.
Restaurantes
sofisticados, cafés badalados, e restaurantes para almoços prosaicos estão por
todas as partes. Se há menos de 30 anos
turistas estrangeiros eram algo raro até mesmo na bela Cracóvia e seus locais
tombados pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, hoje você os vê
rotineiramente nas principais cidades do país.
Os
poloneses já se acostumaram a viver com todos os luxos que o capitalismo
pode oferecer, como apartamentos e imóveis prontamente disponíveis. Bens como automóveis, DVDs, Blu-rays,
televisores de plasma, smartphones, laptops etc estão disponíveis para todas as
classes sociais.
Porém,
as coisas eram totalmente distintas na década de 1980. Pronta disponibilidade de bens era algo
inimaginável. Fartura era algo
fictício. Penúria era a regra. Nestes tempos conturbados, vale a pena fazermos uma breve viagem no tempo e
voltarmos à Polônia da década de 80. A história não deve ser esquecida.
O cenário de fundo
Ao
final da década de 1970, a economia polonesa estava em convulsão. O governo estava
completamente endividado em decorrência de vários empréstimos externos, e,
tendo de arrecadar os fundos necessários para pagar os encargos de sua dívida,
ele optou por aumentar os preços de vários produtos. Isso foi o estopim para uma série de greves
de trabalhadores.
Um
pouco antes, em 1978, um papa polonês foi eleito em Roma.
Seria o primeiro papa não-italiano desde Adriano VI,
que morreu em 1523. Em junho de 1979, fez
sua primeira visita à Polônia já como sumo pontífice. Celebrou uma missa na Praça da Vitória
perante uma multidão
de 3 milhões de poloneses. Ali
estava um homem que havia sido criado sob um regime nazista e que havia
sobrevivido ao comunismo. Já não era
segredo para ninguém que aquele papa desprezava o comunismo e iria fazer de
tudo para solapar este regime na Polônia.
Esta
viagem à sua Polônia natal — um franco desafio ao regime comunista — elevou o
espírito da nação, algo que culminaria, no ano seguinte, na formação de um
movimento abertamente anticomunista formado por trabalhadores e operários.
Tudo
começou com uma greve geral em Lublin, em julho de 1980. Mas foi em meados de agosto que manifestações
no estaleiro de Gdansk deram origem a uma série de greves que praticamente
paralisaram toda a costa báltica. Pela
primeira vez na história, quase todas as minas de carvão da região da Silésia foram fechadas.
Os
representantes dos grevistas no estaleiro de Gdansk, liderados por um
eletricista chamado Lech
Walesa, assinaram o Acordo de Gdansk,
prometendo ao governo que acabariam com as greves se o governo comunista
garantisse o direito dos trabalhadores de formar sindicatos independentes e também
chancelasse o direito à greve.
Após
um bem-sucedido acordo — nesta que havia sido a maior confrontação trabalhista
da história da Polônia comunista —, movimentos sindicais organizados começaram
a ser formar ao longo de todo o país.
No
dia 17 de setembro de 1980, todos os sindicatos se reuniram em Gdansk e
decidiram formar uma única organização sindical nacional chamada de Solidariedade.
Tal
liberdade, obviamente, desagradou Moscou, que, em fevereiro de 1981, elevou o
general Wojciech Jaruzelski, então Ministro da Defesa,
ao cargo de primeiro-ministro. Veterano
da Segunda Guerra, sua prioridade era recorrer à força bruta para arrefecer as
manifestações que irrompiam por todos os cantos do país.
Já
em março de 1981, na cidade de Bydgoszcz,
três ativistas foram espancados pela polícia secreta. Como consequência, uma "greve de advertência"
comandada pelo Solidariedade — que a esta altura já era formado por 9,5
milhões de poloneses — voltou a paralisar todo o país, e com o apoio maciço da
população. Os soviéticos já estavam
perdendo a paciência.
Em
setembro de 1981, em Gdansk, o Solidariedade fez o seu primeiro congresso
nacional, e Walesa foi eleito líder nacional do movimento e imediatamente fez
um apelo a todos os outros países do Leste Europeu para que seguissem os mesmos
passos do Solidariedade. Para Moscou, o
congresso havia sido uma "uma
orgia anti-socialista e anti-soviética".
Os líderes comunistas da Polônia, comandados por Jaruzelski, estavam
prontos para utilizar de violência para conter o movimento.
Em
outubro, Jaruzelski foi nomeado Primeiro-Secretário do Partido Comunista, uma
ascensão atípica para um militar no mundo comunista. Jaruzelski exigiu que o parlamento proibisse
as greves e o concedesse poderes extraordinários.
Em
dezembro, o regime declarou lei marcial, e as
tropas paramilitares ZOMO foram
utilizadas para esmagar o Solidariedade.
Praticamente todos os líderes locais e vários intelectuais afiliados ao
movimento foram detidos e encarcerados.
Nove foram assassinados
na mina de Wujek. Após este ataque
do governo, os agitos no país diminuíram.
Embora reduzido a apenas alguns poucos milhares, o Solidariedade
continuou na ativa, só que agora clandestinamente.
A rotina dos poloneses
O
controle do Partido Comunista parecia inquebrável. Tudo indicava que a Polônia ainda teria de
viver sob este regime por vários anos vindouros.
Mas
como era a vida sob este regime? Quais
eram as características desta rotina que fizeram com que a população polonesa
ansiasse tanto por uma mudança?
O
padrão de vida geral da população era desolador, assim como nos outros países
sob a esfera soviética. A combinação
entre escassez geral de produtos e métodos de distribuição totalmente
ineficientes fazia com que o simples ato de ir às compras em busca de produtos
básicos fosse uma experiência agonizante — mesmo quando havia produtos nas
prateleiras.
Os
bens de consumo se limitavam quase que exclusivamente a produtos de baixa
qualidade fabricados no Leste Europeu. Simplesmente
não havia produtos ocidentais, exceto nas lojas especiais da Pewex, que aceitavam apenas dólar
ou marco alemão, e a preços muito acima das posses de um polonês médio.
Com
a imposição da Lei Marcial, as coisas pioraram bastante. Longas filas se formavam quando produtos
essenciais — como papel higiênico, xampu, lâmpadas, chá, café, utensílios
domésticos, queijo, guardanapos, sapatos e roupas íntimas — apareciam nas
lojas. O simples ato de fazer compras
era um exercício diário que envolvia perambular pela cidade à procura de alguma
loja que tivesse estoques e, caso a procura fosse bem-sucedida, entrar em uma
longa fila de espera. E dado que a
maioria das mulheres polonesas tinha um emprego, o fardo extra de ter de fazer
compras em tais condições era enorme, gerando uma grande taxa de absenteísmo e
significativas dificuldades em cuidar dos filhos e em dar conta das tarefas
domiciliares.
Um
polonês jamais saía de casa sem estar carregando uma sacola de compras. Vai que inesperadamente ele encontrasse uma
lojinha com produtos à venda e ele tivesse a rara oportunidade de poder comprar
alguma coisa...
Em
Varsóvia a situação era menos desesperadora.
Como o Partido Comunista tinha suas bases na capital, ele conseguia
manipular as coisas de modo a garantir um suprimento mais generoso para a
cidade. No entanto, em uma cidade mais
afastada — como Breslau (ou Wroclaw), que é grande e está localizada no
sudoeste da Polônia —, a situação era igual à do resto do país. Uma ida ao Centrum,
que então era a maior loja de departamentos da cidade, era algo que hoje parece
um pesadelo.
Havia
pouquíssimos produtos disponíveis e, mesmo assim, uma multidão de pessoas se
aglomerava nos corredores. Filas de
centenas de pessoas se formavam em frente aos poucos balcões que ainda tinham
produtos disponíveis. Aquilo que em
outras épocas foi a seção de tecidos da loja havia se transformado em um mar de
vazias e inúteis mesas de medidas. Seis
ou sete ternos amarfanhados estavam disponíveis na seção masculina em meio a
filas de cabides vazios. A seção de
esportes tinha apenas dois itens: pneus de bicicleta e botas de ski.
Cartazes
escritos à mão ao longo dos corredores da loja ilustravam a triste
situação. Na seção de sapatos
masculinos, onde em outras épocas havia centenas de diferentes pares e agora estava
sempre vazia, um cartaz dizia que "149 pares serão vendidos hoje". Outro cartaz anunciava que "Nenhum tapete
será vendido hoje". Em frente aos poucos
aspiradores de pó ainda disponíveis na seção de eletrodomésticos, um cartaz
dizia "Somente para Agricultores". O
governo vinha tentando motivar os agricultores a produzir mais comida, e
imaginou que poderia criar tal estímulo reservando somente para eles os bens de
consumo mais desejáveis.
Em
determinadas ocasiões, as pessoas eram obrigadas a efetuar grandes façanhas
para obter itens totalmente simples.
Quando alguma loja anunciava que estava vendendo máquinas de costura,
pessoas de todos os cantos de Breslau corriam para lá. De início, era necessário ficar um dia e meio
em pé na fila apenas para colocar seu nome em uma lista de compradores
interessados. Depois, durante três ou
quatro dias consecutivos, você tinha de ir à loja três vezes por dia apenas
para estar presente à chamada que os burocratas faziam para verificar os nomes
da lista. Cumprida esta tarefa, todos
eram instruídos a voltar dali a duas semanas, que seria quando as máquinas
estariam disponíveis — e ainda assim não havia nenhuma garantia de que as
pessoas na lista realmente conseguiriam uma máquina de costurar. Era comum alguns produtos irem parar nas mãos
de amigos do burocrata encarregado de administrar a loja. Ou nas mãos de alguns membros do Partido.
Porém,
dentre todos os martírios e provações que o consumidor polonês tinha de enfrentar,
a busca por comida certamente era o mais humilhante e deprimente de todos. Um popular supermercado de Breslau, que
gozava a reputação de estar sempre bem suprido, tinha em suas prateleiras pão, biscoito-de-água-e-sal,
dois tipos de pimenta, sal, farinha, macarrão, picles, açúcar, latas de
ervilha, e água mineral. A seção de
hortifruti tinha batatas, cebolas, beterrabas, cenouras, alho e alface
estragada. A seção de laticínios tinha
queijo branco e ovos. Carne era
disponibilizada apenas para quem apresentasse todos os devidos cartões de
racionamento. Este era todo o estoque do
supermercado.
Quando
chegava algum carregamento de coisas mais saborosas, como geléia, iogurte ou
pudim, tudo se esgotava em menos de uma hora.
Em determinadas ocasiões, se você madrugasse em frente à porta do
supermercado e estivesse com sorte, conseguiria comprar um pouco de leite.
Quem
tinha mais tempo disponível podia perambular pela cidade à procura de lojas
menores que porventura vendessem alguns itens adicionais. Havia pequenas feiras ao ar livre que vendiam
alguns vegetais. O difícil era conseguir
criar uma dieta mais apetitosa e variada tendo pouquíssimas opções. Frutas, em especial, eram um problema. As únicas que estavam sempre à venda eram as maçãs. De vez em quando, surgiam alguns limões. Laranjas e bananas eram importadas somente em
feriados.
Comprar
gasolina era outra dor de cabeça. Os
consumidores iam ao posto, passavam o dia todo dentro do carro esperando na
fila, deixavam o carro lá durante a noite, voltavam no dia seguinte e
continuavam na fila, até o momento em que conseguissem um pouco de
gasolina. E isso se o posto de gasolina
ainda estivesse operante no dia seguinte — era comum eles simplesmente
fecharem da noite para o dia e não mais abrirem.
A
opressão diária não terminava aí. A
escassez de apartamentos levava os jovens à beira do desespero, pois tinham de esperar
10 anos ou mais até o governo disponibilizar um mísero espaço em um apartamento
apertado. Casais de meia idade e com
filhos ainda moravam com os pais enquanto aguardavam seus nomes serem chamados
na lista de espera dos apartamentos. Por
outro lado, quem se filiava ao Partido rapidamente conseguia um alojamento.
As
construções eram uniformemente funcionais, cinzas, sombrias, monótonas e
repulsivas. Vários prédios começavam a
se esfacelar tão logo ficavam prontos. O
uso do carvão como fonte de energia jogava uma película escura sobre as
cidades, tornando-as ainda mais melancólicas.
O
transporte público era apenas utilizável, e isso já bastava para que ônibus,
bondes e trens estivessem sempre entupidos de gente. A lista de espera para comprar um carro
demorava anos e o automóvel quase sempre era um exíguo e fraco Fiat
polonês. Os limpadores de pára-brisa
tinham de ser trancados dentro do carro, pois eram o alvo preferencial dos
ladrões. Acessórios automotivos, por
serem muito raros, eram muito valiosos na Polônia.
Uma
coisa, no entanto, era verdade: os países do bloco soviético usufruíam pleno
emprego. Bom, "usufruíam" é um termo
incorreto. Quando você trabalha muito e
não pode comprar nada, ou não tem a liberdade de usar os proventos do seu
trabalho, você vive sob um regime de semi-escravidão. Na Polônia, o pleno emprego produzia apenas
um crônico excesso de mão-de-obra mal paga e pessimamente utilizada. Praticamente todos os empregos eram
enfadonhos e frustrantes.
Os
gerentes das lojas e as pessoas que trabalhavam em restaurantes e no sistema de
transporte simplesmente não tinham nenhum incentivo para serem solícitos ou
mesmo gentis com os clientes. O cliente
era apenas um estorvo, e eles não ganhavam nada nesta interação. O serviço prestado era ou ríspido ou
apático.
Profissionais
de todas as áreas tinham de lidar com a escassez de equipamentos. Professores da prestigiosa universidade
técnica de Breslau zombavam da ideia de que conseguiriam fazer alguma pesquisa
séria na Polônia. Eles passavam todo o
seu tempo livre escrevendo propostas para serem aceitos em universidades
ocidentais, onde havia ampla disponibilidade de materiais e equipamentos
sofisticados.
A
burocracia paralisava todas as transações, e impossibilitava até os mais
simples pedidos. Viajar para o exterior
era algo extremamente restringido. Televisão,
rádio e mídia impressa eram, obviamente, atividades efetuadas exclusivamente
por pessoas sob o controle do Partido, dentro da Polônia ou em algum outro
lugar dentro da esfera soviética.
A
lei marcial impôs restrições ainda maiores.
Os passaportes foram universalmente cancelados, de modo que nenhum
polonês podia viajar ao exterior.
Durante os primeiros meses da lei marcial, os poloneses não podiam nem
sequer viajar entre cidades da Polônia sem a devida autorização do
governo. Cartas sempre eram entregues
abertas, amassadas dentro de sacos plásticos e com um carimbo escrito
"Censurado". Quando você discava um
número no telefone, a primeira coisa que você ouvia era uma gravação repetindo
"conversa monitorada, conversa monitorada".

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Quem já experimentou traumatizou. Bandeira recentemente exibida em um jogo de futebol na Polônia. Clique na imagem para ver o vídeo.
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O
exército assumiu o controle de toda a radiodifusão, e a programação da TV se
resumia majoritariamente a filmes russos sobre a Segunda Guerra Mundial. Âncoras de jornais foram substituídos por
soldados uniformizados que mecanicamente liam as notícias diárias. E as notícias eram sempre as mesmas: o
Solidariedade havia destruído a economia; o exército estava se esforçando para
recolocar o país no lugar; as coisas estavam visivelmente melhorando. Obviamente, e ao contrário dos ocidentais de
hoje, ninguém acreditava em nada do que dizia a mídia.
A
vida só começou a melhorar ao final da década, quando os poloneses finalmente
conseguiram se libertar dos grilhões do socialismo soviético. Quando o Muro de Berlim desmoronou em 1989, as
coisas progrediram rapidamente na Polônia.
Os
acontecimentos imediatamente anteriores à queda do Muro, bem como a maneira
como os grupos clandestinos agitaram e se prepararam para o fim o comunismo,
serão abordados no próximo artigo.
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Participaram
deste artigo:
Jakub Bozydar Wisniewski é filósofo
graduado pela Universidade de Cambridge. Atualmente trabalha em seu PhD, experimentalmente
voltado para a teoria dos bens públicos de acordo com a Escola Austríaca de
Economia, na Queen Mary, University of London.
Mateusz Machaj é o fundador do Instituto Ludwig von Mises polonês.
Gary Dudney graduou-se na Universidade
do Kansas e trabalha na editora CTB/McGraw-Hill.