segunda-feira, 3 fev 2014
O
moderno sistema mundial de bancos centrais se sustenta sobre mitos. E, como vários mitos, eles contêm um elemento
de verdade que foi distorcido pelo exagero e pelo uso indevido.
Em dezembro de 2013, o Banco Central
americano, o Federal Reserve — aquela máquina que, ao inundar o mundo de
dólares, obriga os bancos centrais de outros países a adotarem a mesma política
monetária para evitar valorizações cambiais, e que, ao adotar a política inversa (aumento de juros), os obriga a seguir o mesmo padrão — completou seu 100º aniversário. A ocasião, portanto, é apropriada para se
desfazer alguns mitos persistentes.
O
primeiro mito é o de que bancos centrais são intrinsecamente necessários para o
funcionamento das economias de mercado.
Tanto a teoria quanto a história contrariam e desmentem isso. Peguemos os exemplos dos bancos centrais mais
famosos do mundo.
O
Federal Reserve só foi criado em 1913, o que significa que durante o período de maior enriquecimento
da história americana — 1865 a 1913 — não havia nenhum banco central. Mais ainda: quando foi criado, o Fed não
possuía a função de gerenciar a oferta monetária do país. Os EUA ainda operavam sob um padrão-ouro
clássico e, sendo assim, não havia necessidade de se ter um banco central para
controlar a oferta monetária. O uso do
ouro, ou de qualquer outra commodity, como moeda impõe uma limitação natural à
criação de dinheiro, limitação essa representada pelo custo de se extrair da
natureza quantidades adicionais desta commodity. É apenas quando se adota dinheiro de papel e
sem nenhum lastro em commodity (o chamado dinheiro fiduciário), que os bancos
centrais adquirem a função de controlar a oferta monetária. E é exatamente este gerenciamento da oferta
monetária — que leva a uma criação cíclica de dinheiro — o que gera os ciclos
econômicos que fustigam as economias de mercado.
O
Banco Central do Canadá só foi criado em 1935.
O sistema bancário canadense passou incólume à Grande Depressão, não
registrando nenhuma grande falência bancária.
Em contraste, milhares de bancos americanos quebraram, não obstante a
existência do Federal Reserve. Essas
falências bancárias em larga escala só acabaram porque Franklin Roosevelt
decretou feriado bancário e criou o FDIC, o seguro federal para depósitos (o
que fez com que as pessoas parassem de retirar seu dinheiro dos bancos). O Fed não deu qualquer contribuição para a
estabilidade bancária.
O
segundo mito é o de que bancos centrais são necessários como emprestadores de
última instância — isto é, para ofertar liquidez em épocas de tensão
financeira, quando o mercado de crédito interbancário fica paralisado. As operações de liquidez criadas pelo Federal
Reserve logo após o colapso do Lehman Brothers em 2008 vêm sendo usadas como o
mais recente exemplo prático desta função.
Mas o problema é que este argumento inverte causalidade e efeito.
Walter
Bagehot, o eminente jornalista financeiro britânico do século XIX, cunhou a
expressão "emprestador de última instância" em seu clássico livro "Lombard
Street". Ele disse que esta era uma
função essencial do Banco Central da Inglaterra.
No
entanto, o contexto em que ele disse isso quase nunca é mencionado. Bagehot sabia que um banco central impunha
que todos os bancos concentrassem nele suas reservas, automaticamente fazendo
com que ele se transformasse em um emprestador de última instância. Se uma instituição ordena que os bancos
repassem a ela parte do dinheiro que foi neles depositado, é óbvio que tal
instituição se torna uma "emprestadora de última instância". Mas Bagehot não
acreditava que um banco central era inevitável ou mesmo desejável.
Para
Bagehot, o "sistema natural" era aquele que "surgiria naturalmente caso o
governo não se intrometesse no sistema bancário". Haveria "vários bancos de tamanho semelhante
ou pelo menos muito parecidos". Ele
descreveu este arranjo como "o sistema de várias reservas", no qual cada banco
seria responsável por suas próprias reservas, o que levaria a um sistema
bancário mais robusto. No debate atual,
o celebrado "emprestador de última instância" de Bagehot é uma solução de
eficácia secundária — secundária a um arranjo de bancos operando concorrencialmente
em um sistema sem um banco central para protegê-los e socorrê-los.
Após
a Guerra Civil, o sistema bancário dos EUA não operou como o "sistema natural"
visionado por Bagehot. Regulamentações
governamentais concentraram as reservas bancárias nas principais cidades
americanas, com o previsível resultado de que a economia americana se tornou
sujeita a pânicos e corridas bancárias (as quais eram raras em outros países
que também ainda não tinham um banco central), culminando no famoso Pânico de
1907. Em vez de corrigir os problemas do
sistema bancário nacional, os legisladores, liderados por um presidente
progressista, Woodrow Wilson, criaram um banco central, o Federal Reserve
System.
Um
terceiro mito é o da independência do banco central. Isso varia de país para país, mas em todos o
banco central se submete aos caprichos do governo. Varia apenas a intensidade com que tal
sujeição é percebida. Nos EUA, o Federal
Reserve é visto como sendo uma entidade independente desde o Acordo de 1951
junto ao Tesouro. Após o acordo, o Fed
não mais tinha a obrigação de manter os preços dos títulos do Tesouro (o que, na prática,
significa fixar a taxa de juros). Tal
obrigação, oriunda das necessidades fiscais impostas pela Segunda Guerra
Mundial, havia impedido o Fed de combater a inflação de preços por meio da
elevação dos juros durante a Guerra da Coréia.
Desde
1951 não houve nenhuma alteração relevante no status legal do Fed. Ele atuou de forma independente durante
algumas épocas — porém, durante outras, suas ações foram completamente
submissas a outros setores do governo.
Durante
a década de 1950, quando o presidente do Fed era William McChesney Martin, a
inflação se manteve baixa. No entanto, isso pouco teve a ver
com Martin. O presidente Dwight
Eisenhower era resolutamente contra a inflação, e durante sua gestão o governo
federal praticamente não apresentou déficits orçamentários. Quando os presidentes Kennedy e Johnson
aceitaram o ativismo fiscal keynesiano, os déficits cresceram. Martin não demonstrou problema algum em
acomodar o aumento dos gastos do governo com inflação monetária. Ele não acreditava que a política monetária
poderia — ou deveria — operar de forma independente da política fiscal. O resultado foi a primeira contínua inflação
de preços da história americana em períodos de paz.
A
independência do Fed atingiu seu ponto mais baixo sob a gestão de Arthur
Burns. O diário que ele mantinha durante
os anos Nixon confirma que a política do Fed havia se tornado totalmente
submissa aos objetivos do governo e à campanha à reeleição de Nixon. Como ele escreveu certa vez em seu diário,
"Eu estava encarregado de cuidar da política monetária e ele [Nixon] não
precisava se preocupar quanto à possibilidade de o Federal Reserve restringir a
economia". O resultado desta postura foi
a grande inflação da década de 1970.
Paul
Volcker, que foi o presidente do Fed de 1979 a 1987, restaurou a reputação
anti-inflacionária da instituição. Sua
gestão é considerada até hoje o genuíno modelo de independência. E, verdade seja dita, havia vários políticos
no legislativo, bem como pessoas fora do governo, que criticavam asperamente
sua política de restrição monetária, a qual de fato domou a inflação e
estimulou o crescimento econômico americano da década de 1980. Não obstante essas reclamações, Volcker,
assim como seu antecessor Martin, tinha o apoio resoluto dos dois presidentes
americanos a cujas administrações ele serviu: Jimmy Carter e Ronald Reagan.
Na atualidade, foi difícil ver algum resquício de independência no comportamento do Fed sob Ben
Bernanke. Em 2011, por exemplo, o Fed comprou 77% dos
títulos da dívida que foram emitidos pelo Tesouro, um comportamento sem
precedentes. Com seu compromisso de
manter a taxa básica de juros em praticamente zero durante um longo prazo,
Bernanke vinculou a política monetária à política fiscal do governo Obama com o
objetivo de inflar artificialmente os preços dos ativos (imóveis e ações) da
economia americana. Isso é o oposto do
que deve fazer um banco central independente — e denota um Fed ainda mais
submisso a um presidente do que ele já havia sido durante a era Burns/Nixon.
A
lição de toda esta história é aquilo que chamo de "banco central sem romance",
parodiando um famoso artigo escrito pelo Nobel de economia James Buchanan
intitulado "Política sem Romance". Um
banco central é necessário apenas para uma economia que aceita que o governo
detenha o monopólio da produção de papel-moeda fiduciário. E, durante alguns períodos, ele de fato pode
se comportar de maneira independente — mas não quando o governo decide
incorrer em déficits orçamentários de larga escala, como os atuais que estão
ocorrendo nos EUA sob Obama.
Buscar
a estabilidade de preços é um objetivo que praticamente todos concordam ser a
responsabilidade de um banco central. No
entanto, foi exatamente neste objetivo que tanto o Fed quanto vários outros
bancos centrais do mundo fracassaram miseravelmente. Desde sua criação em 1913, os preços ao
consumidor americano aumentaram 2.326%.
Se
um governo conseguir acabar com seus déficits orçamentários, a estabilidade de
preços pode vir a ser um objetivo alcançável para seu banco central. Caso contrário, a existência de um banco
central não passa de pura mitologia.
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