Em
seu artigo publicado em 1981, "
The Laissez-Faire Radical: A Quest for the
Historical Mises", Murray Rothbard expressou sua insatisfação
com aquilo que ele entendia ser a interpretação predominante (e errada da obra
de Ludwig von Mises. Segundo Rothbard, seus
seguidores estavam fazendo com que Mises "parecesse um tipo de intelectual
adepto da [revista neoconservadora americana]
National Review e que se
concentrava nos aspectos livre-mercadistas do conservadorismo".
Embora
admitisse que "a imagem de Mises como sendo essencialmente um conservador seja
forçada", Rothbard ainda insistiu em afirmar que tal caracterização "ignorava
completamente os ricos aspectos do pensamento misesiano". E concluiu que Mises seria muito mais
acuradamente descrito como um radical em vez de como um conservador:
Mises era praticamente o oposto absoluto de
um conservador moderno. ... Analisando sua obra, encontramos em Mises as
seguintes visões políticas, as quais eram resolutamente defendidas: um
pacifista declarado, que atacava com vigor as guerras e o nacionalismo
belicista; um ácido crítico do imperialismo e do colonialismo ocidentais; um
defensor do não-intervencionismo no que dizia respeito à URSS; um vigoroso
proponente da autodeterminação e da autonomia dos povos, não apenas em nível
nacional, mas também e principalmente para seus subgrupos, chegando até o nível
de um vilarejo — e, em teoria, chegando até o direito da secessão do indivíduo em
relação ao governo sob o qual vive; alguém tão hostil às restrições
estatais sobre a imigração, que quase chegou ao ponto de endossar uma guerra
contra países como EUA e Austrália para forçar seus políticos a abrir suas
fronteiras; um adepto da importância do conflito de classes em relação ao
estado (isto é, entre
pagadores de impostos e recebedores de impostos); um cáustico crítico
racionalista do cristianismo e de todas as religiões; e um admirador da
Revolução Francesa.
Dez
anos após este ensaio de Rothbard, Jeffrey Tucker e Lew Rockwell, em seu artigo
"O pensamento cultural
de Ludwig von Mises", forneceram uma contra-partida e enfatizaram o lado
conservador das ideias de Mises. Embora
explicitamente reconhecessem a validade dos pontos de Rothbard, Tucker e
Rockwell observaram que:
Ludwig von Mises possuía várias posições
culturais típicas do conservadorismo tradicionalista. ... Ele defendia famílias
tradicionais organizadas de acordo com o princípio do patriarcado; ele via
instituições como a família e a fidelidade conjugal como arranjos naturais,
civilizados e altamente desejáveis; ele acreditava ser possível fazer
generalizações sobre raças e grupos étnicos; ele glorificava a civilização
ocidental como sendo superior a todas as outras; e criticava a cultura de
massa e os movimentos contra-culturais.
E
então? Seria Mises um radical ou não? Talvez, aliás, uma pergunta mais bem colocada
seria: como devemos entender a relação entre os aspectos aparentemente radicais
e os aparentemente não-radicais de seu pensamento?
O
termo radical é utilizado com pelo menos três sentidos, os quais, embora sejam
relacionados, são também ao mesmo tempo distintos. Em um primeiro sentido (vamos chamá-lo de
sentido de intensidade), ele é oposto
a moderado; neste caso, radical significa ser extremo ou profundo,
e está em oposição a indeciso.
Em
outro sentido (vamos chamar de sentido ideológico),
ele é oposto a conservador, tanto
política quanto culturalmente.
Obviamente, estes sentidos são distintos, uma vez que um conservador
extremamente reacionário seria classificado como radical no sentido de intensidade, mas não no ideológico.
No
terceiro e último sentido — vamos chamar de sentido dialético —, radical
pode significar uma orientação que considera fenômenos, não em isolamento, mas
sim com interconexões com outros elementos, tudo dentro uma totalidade
sistêmica. Embora este sentido seja
distinto dos outros dois, ele possui uma óbvia conexão com o sentido de intensidade, e também ligeiramente
com o sentido ideológico. Um radical dialético, dado seu enfoque no
contexto e na interdependência, irá naturalmente tender a ser cético quanto à
utilidade de soluções meramente locais para problemas sociais, insistindo que
uma reforma bem-sucedida deve recorrer a alterações no sistema como um todo; daí conclui-se que o
radical dialético tenderá também a ser um radical intenso, no sentido de clamar por mais — e mais extremas
— mudanças.
Nas
palavras
de Chris Sciabarra,
Ser
"radical" significa compreender as coisas em sua raiz. Mas, para examinar raízes e origens, para
incorrer em qualquer análise dos fundamentos, é necessário estar comprometido
com uma estratégia completa e abrangente.... Pois nenhum problema pode ser
compreendido ao ser totalmente abstraído e isolado de quaisquer outros
problemas similarmente constituídos. Olhar
para as relações entre os problemas sociais ajuda a elucidar suas interligações
lógicas e também a maneira como eles refletem e perpetuam o próprio sistema social em que estão inseridos. E se um indivíduo é um revolucionário ... é o sistema social vigente que tem de ser,
em última instância, modificado.
Abordemos
a seguir estas três formas de radicalismo, uma de cada vez.
1. Mises como um radical intenso?
Claramente,
Mises pode ser considerado um radical intenso,
pois o arranjo econômico e social que ele defendia era por ele proposto de
maneira extrema e profunda, e não de maneira moderada e diluída.
Metodologicamente,
embora Mises sempre insistisse, corretamente, em afirmar que o apriorismo praxeológico
era o método implícito utilizado pela maioria dos economistas que o antecederam
— e não algo que ele havia pessoalmente inventado —, Mises certamente foi o
economista que aderiu a este método da maneira mais aferrada e completa,
postura essa que chegou até mesmo a ser rotulada de "apriorismo extremo".
Quanto
à defesa da economia de livre mercado, embora muitos outros economistas tenham
aderido a essa posição de uma maneira ou de outra, o comprometimento de Mises
com a defesa do livre mercado foi notória e famosamente mais completo e
inflexível do que o de outros celebrados defensores do livre mercado, como
Milton Friedman — ao ponto de Mises dar-se ao luxo de rotular os ordoliberais alemães de
"ordo-intervencionistas", e referir-se desdenhosamente aos seus colegas da
Sociedade Mont Pèlerin como "um bando de socialistas".
No
entanto, a postura livre-mercadista de Mises não alcançou o ápice do
radicalismo possível. A biografia
de Hülsmann documenta a estupefação de Mises ao descobrir que, ao se mudar
da Europa para os EUA, ele deixou de ser o mais extremado livre-mercadista da
turma e passou a ser o objeto de críticas por sua supostamente excessiva
moderação. Dentre os críticos estavam
libertários anarquistas como Murray Rothbard, Rose Wilder Lane, and R.C.
Hoiles.
O
libertarianismo de Mises também parece ter passado a crescer de forma menos
intensamente radical ao longo do tempo; por exemplo, Mises condena o
recrutamento militar em suas primeiras obras — como Nation, State, and Economy e Intervencionismo — Uma análise
econômica —, mas o endossa nas edições posteriores de Ação Humana. Além destas tensões diacrônicas, há também
tensões sincrônicas: Mises endossa o direito à secessão até o nível individual;
porém, como documenta a biografia de Hülsmann, este engajamento descentralizador
coexiste de maneira incômoda com o entusiasmo de Mises pela imposição de
valores liberais, pelo governo central, sobre jurisdições locais.
2. Mises como um radical ideológico?
Para
determinar o quão radical era Mises — no sentido de analisar o quanto seu
radicalismo era oposto ao conservadorismo político e cultural —, é necessário
antes determinar qual é o oposto de conservadorismo. Comecemos com o conservadorismo
político. É comum pressupor que o
extremo oposto do conservadorismo político é o socialismo de estado. No entanto, em suas duas obras de 1965, Esquerda e direita - Perspectivas
para a liberdade e Liberty and
the New Left, Rothbard persuasivamente argumenta o oposto:
Os libertários de hoje estão habituados a pensar no
socialismo como diametralmente oposto ao credo libertário. Mas este é um
grave equívoco, responsável por séria desorientação ideológica dos libertários
no mundo atual.... [O] conservadorismo era o oposto absoluto da liberdade, e o
socialismo, embora à "esquerda" do conservadorismo, era essencialmente
um movimento confuso, de cunho centrista .... por tentar alcançar fins liberais
pelo uso de meios
conservadores. ... O socialismo, assim como o liberalismo e em oposição ao
conservadorismo, aceitou o sistema industrial e as metas liberais
de liberdade, da razão, da mobilidade, do progresso, e de padrões de vida mais
elevados para o povo, e um fim à teocracia e à guerra; no entanto, ele tentou
chegar a esses fins utilizando meios conservadores e incompatíveis: estatismo,
planejamento centralizado, comunitarismo etc.
Nesta
análise de Rothbard, o conservadorismo tradicionalista se situava na extrema
direita e o socialismo de estilo marxista ocupava o centro, ao passo que à
extrema esquerda, defendendo a liberdade tanto nos meios quanto nos fins, se
situavam o libertarianismo de livre mercado e a Nova Esquerda.
Isso
não significa que estes dois movimentos eram consistentemente "esquerdistas"
aos olhos de Rothbard; ele imaginava que os libertários eram propensos demais a
se deixarem levar rumo à direção conservadora, assumindo uma defesa do
militarismo e do corporativismo, ao passo que, da mesma maneira, a Nova
Esquerda era propensa demais a se deixar levar para a direção socialista,
perdendo-se no estatismo e no coletivismo.
Mas estes movimentos ao menos ocorriam na região esquerda do espectro
ideológico, e Rothbard tentou mover ambas as ideologias ainda mais para a
"esquerda" — ao menos no que diz respeito à terminologia que ele estava
utilizando à época.
Quanto
mais afastado do conservadorismo, mais radical se é no sentido ideológico. E se aceitarmos a análise de Rothbard, então
quanto mais libertário se é, mais distante se está do conservadorismo. Disso se conclui que, uma vez que Mises era
um radical intenso em seu
libertarianismo de livre mercado, ele podia ser contabilizado também como um
radical ideológico.
Entretanto,
até agora falamos apenas sobre a distância em relação ao conservadorismo político. Mas o que dizer a respeito da distância em
relação ao conservadorismo cultural? Por exemplo, os vários projetos e
empreendimentos culturais associados à Nova Esquerda deveriam ser vistos como algo
que torna alguém um radical no sentido ideológico? Qual é a relação entre estes valores
culturais e os projetos politicamente anti-militaristas e anti-estatistas dos
radicais ideológicos? Seria uma relação
de apoio mútuo, como alguns alegam? Seria uma relação contrária, como outros
afirmam? Ou seria uma relação
irrelevante, como outros juram?
Embora
eu creia que a resposta correta seja "apoio mútuo", não irei me estender neste
ponto — embora não possa deixar de observar que a maior parte destes valores
culturais também fazia parte da tradição libertária de antes século XX. Pode-se dizer que elas são ultrapaleolibertárias. Por exemplo, ao passo que Mises considera o
feminismo e o "amor livre" fenômenos socialistas, o fato é que foram
libertários que desbravaram o entendimento a respeito dos predominantes papeis
sociais dos gêneros — e não como uma expressão das inescapáveis realidades
biológicas, mas sim como um sistema de opressão que sustentava e era sustentado
pelos sistemas coercivos do estatismo e do militarismo.
E
quando estes libertários defendiam o "amor livre", sua intenção não era a
promiscuidade, mas sim o banimento de toda a coerção — governamental ou
privada — da esfera das relações sexuais.
Significativamente, no entanto, estes desenvolvimentos eram mais típicos
da variedade anglófona do que da variedade europeia de libertarianismo, de modo
que as posições tradicionalistas de Mises em relação a questões de gênero,
casamento e família não representam um desvio grande em relação à tradição
libertária europeia. O desvio seria
maior se levássemos em conta a tradição libertária da Grã-Bretanha ou dos EUA.
Deixando
de lado a questão a respeito de quais atitudes Mises poderia ter tomado em relação a tais assuntos, consideremos agora
as atitudes que ele de fato tomou. Quão culturalmente conservador ele era? O tradicionalismo de Mises em relação à
questão dos valores familiares é mais complicado do que pode parecer a
princípio. Para um conservador cultural,
a atitude de Mises em relação ao casamento era estranhamente ambígua, uma vez
que ele considerava
o casamento um tanto quanto incompatível com a criatividade do indivíduo.
[O] casamento é uma adaptação do indivíduo à
ordem social.... Indivíduos de naturezas excepcionais, cujas habilidades os
elevam para muito acima da média, não podem suportar a coerção que tal ajuste
ao modo de vida necessariamente envolve. ... Um homem genial ... não pode a
longo prazo sentir-se amarrado pelo casamento sem que isso viole o seu próprio
ego. O gênio não se permite ser impedido por qualquer tipo de comprometimento
matrimonial apenas para que isso gere conforto aos seus contemporâneos, mesmo
aos mais próximos dele. As amarras do
matrimônio se tornam intoleráveis laços dos quais o gênio tenta se livrar.
Esta
é uma posição anti-matrimonial bem mais extrema do que tudo que já foi
sonhado pelos adeptos do amor livre. A
criatividade tanto do homem quanto da mulher, insistiu Mises, é oprimida
pelo casamento; a mulher, todavia, não tem outra opção viável senão a de optar
pelo casamento e com isso acabar com sua criatividade, uma vez que ela é
impelida a isso — acredita Mises — por sua natureza biológica. Mas o homem tem a opção de declinar do
casamento, e Mises parece inferir que qualquer homem sensato — ou pelo menos
qualquer homem de grande talento — faria isso.
Isso certamente não é feminismo, mas também não representa exatamente um
conservadorismo cultural. (No entanto,
devo enfatizar que Mises escreveu estas palavras antes de ele próprio decidir se
casar).
Expandindo
nosso enfoque das questões de gênero para as questões étnicas, Mises afirmava
que as diferenças entre grupos étnicos poderiam
ter fundamentos biológicos, mas que ainda era impossível saber ao certo. No entanto, essa modéstia epistêmica relativa
à etnia está em franco contraste com suas afirmativas confiantes a respeito das
bases biológicas para as diferenças entre os gêneros. Dada a frequente insistência de Mises em
afirmar que ainda não sabemos de praticamente nada a respeito dos determinantes
físicos dos impulsos psicológicos, e que a temologia (psicologia
literária) deve ser hermenêutica em vez de físico-empírica, é difícil ver como
compatibilizar sua visão a respeito dos gêneros com suas próprias recomendações
metodológicas. Seria esse outro sinal de
tensão sincrônica?
No
geral, Mises não era nada simpático aos objetivos sociais da Nova
Esquerda. Comentando a respeito do
entusiasmo de Rothbard pelos estudantes radicais da década de 1960, Mises
escreveu: "É triste ver uma mente brilhante se arruinando desta maneira".[1]
Ainda
assim, Mises tinha mais simpatia por alguns objetivos específicos do que por
outros. A Nova Esquerda, assim como a
Velha, simpatizava com operários e camponeses em suas lutas contra patrões e
latifundiários. O entusiasmo de Mises
pela causa dos operários parece ter sido bem limitado, dado que ele os
descreveu como "fátuos beneficiários do sistema capitalista" que "se entregam à
gostosa ilusão de que é a sua consecução de trabalhos rotineiros o que cria
todas essas maravilhas".[2] A possibilidade de que a contribuição dos empregados
para alguns êxitos intelectuais e empreendedoriais de seus empregadores possa
ser algo não-desprezível não parece ter-lhe ocorrido.
Mises
também tinha poucas simpatias pelos sindicatos, os quais ele majoritariamente considerava como sendo cartéis que serviam para garantir preços monopolistas
para a mão-de-obra — caracterização essa que, diga-se de passagem, é mais
cabível aos sindicatos conservadores que conseguiram um tratamento privilegiado
dentro do establishment corporativista do que aos sindicatos mais radicais com
os quais os libertários mais antigos, bem como a Nova Esquerda, simpatizavam.
No
entanto, ainda segundo a biografia de Hulsmann, quando o aluno de Mises, Fritz
Machlup, expressou um desejo de tornar possível a proibição dos sindicatos —
ou ao menos a possibilidade de contornar a influência deles ao legalmente
proibir que os salários aumentassem a uma taxa maior do que 10% em três anos
—, Mises retrucou com aspereza: "Rejeito toda e qualquer tentativa de se
proibir ou limitar a liberdade de associação".[3]
Por
outro lado, as simpatias de Mises pela causa camponesa parecem mais fortes do
que suas simpatias pela causa dos operários industriais:
Em nenhum lugar e em nenhuma época a
propriedade de terras em larga escala — os latifúndios — foi estabelecida por
meio dos mecanismos das forças econômicas do mercado. Latifúndios sempre foram o resultado de
esforços políticos e militares. Foram
fundados na violência, e são mantidos pela violência e apenas pela
violência. Se os latifúndios forem
trazidos para a esfera das transações de mercado, eles se desmoronarão e, no
final, irão desaparecer completamente.
As forças do mercado não atuaram nem na formação e nem na manutenção
destes latifúndios. As grandes fortunas
fundiárias não surgiram por meio da superioridade econômica de uma propriedade
em larga escala, mas sim por meio de violentas anexações que obviamente
ocorreram fora do âmbito do mercado... As
origens não-econômicas das fortunas fundiárias são claramente reveladas pelo
fato de que, via de regra, a expropriação da qual elas se originaram de modo
algum alterou o método de produção. O
antigo proprietário permanece no terreno, mas agora com um outro título de propriedade,
e continua levando adiante produção.[4]
Donde
se conclui que a posição de Mises parece ser favorável ao objetivo da Nova
Esquerda de devolver grandes propriedades rurais aos camponeses — embora, ao contrário de
Rothbard, Mises aparentemente prefira fatiar os latifúndios colocando-os no
livre mercado e mantendo seus títulos de propriedade como estão, apenas deixando
que as forças de mercado se encarreguem da nova distribuição. Isso contrasta com a posição de Rothbard, que
defende recorrer a medidas judiciais de reparação como forma de redistribuir esses
títulos de propriedade.
Tampouco o entusiasmo de Mises por uma reforma agrária termina por aí. Parte da oposição de Mises às restrições à imigração é que elas impedem que imigrantes tenham acesso às terras não-cultivadas, fazendo com que tal acesso fosse um privilégio exclusivo dos cidadãos nacionais, desta maneira beneficiando esses nativos à custa de potenciais imigrantes. Países que restringem a imigração, diz Mises, "transformaram todos os seus cidadãos nativos em um casta privilegiada" com o intuito de "se fecharem contra imigrantes não-desejados" e de "se apropriarem de milhões de quilômetros quadrados das melhores terras como se fossem um parque privado."
Mises
também compartilhava da antipatia da Nova Esquerda em relação ao
colonialismo. Ao passo que alguns
pensadores simpáticos ao libertarianismo já elogiaram o colonialismo por este
ter levado o livre comércio e o estado de direito para os bárbaros ignorantes,
Mises escreveu
que:
A ideia básica da política colonial era
tirar vantagem da superioridade militar da raça branca em relação aos membros
as outras raças. Munidos de todas as armas e equipamentos que sua
civilização lhes deu, os europeus trataram de subjugar povos mais fracos para
lhes roubar a propriedade e para escravizá-los.
Dada
a extrema ambivalência da Nova Esquerda em relação à cultura de massa, também
não está claro quantos pontos na tabela do conservadorismo cultural Mises
ganharia em decorrência de seu aberto desdém pela cultura de massa.
Quanto
ao multiculturalismo, será que Mises ainda teria dito que "a ideia de liberdade
é e sempre foi peculiar ao Ocidente" ao passo que "os povos do Oriente jamais
conceberam a ideia de liberdade"[5]
caso ele estivesse mais familiarizado com as ideias radicalmente pró-mercado
dos confucianos?[6]
Mises
também compartilha, de certa forma, da preocupação da Nova Esquerda em relação
à democracia participativa, a qual Rothbard mais tarde viria a definir como o
sistema "que dá a cada indivíduo o direito de controlar totalmente as decisões
que afetam sua própria vida" em contraposição ao sistema democrático
tradicional que simplesmente permite que todos rabisquem uma cédula (ou apertem
números em uma máquina eletrônica) a cada dois anos — muito embora o formato
assumido pela preocupação de Mises seja um que a maioria dos adeptos da Nova
Esquerda não iria prontamente reconhecer:
Na sociedade capitalista, os homens
enriquecem ao servirem os consumidores em larga escala. Isso significa
que, em uma sociedade capitalista de livre mercado, os homens que se tornam
ricos são aqueles que estão servindo bem às pessoas. A economia de
mercado capitalista é uma democracia em que cada centavo constitui um
voto. Os consumidores, ao optarem por
comprar ou por se abster de comprar, estão elegendo aqueles empreendedores que
eles, os consumidores, consideram ser os que mais bem satisfazem suas
necessidades. Trata-se de um plebiscito que acontece diariamente.
Os consumidores determinam quem permanece na
ativa e quem vai à falência, quem deve gerenciar o capital e quem não deve, e
quanto cada empreendedor deve lucrar. A riqueza dos empreendedores
bem-sucedidos é resultado deste plebiscito dos consumidores. A riqueza,
uma vez adquirida, poderá ser preservada somente por aqueles que souberem
continuar ganhando-a novamente a cada dia, sempre satisfazendo os desejos dos
consumidores.
A ordem social capitalista, portanto, é uma
democracia econômica no sentido mais estrito da palavra. Em última
instância, todas as decisões dependem da vontade das pessoas como consumidoras.
Dada
a preferência da Nova Esquerda pelo "consenso unânime" em oposição ao mero
"voto da maioria", um plebiscito misesiano no qual aqueles que votam na Shakira
ganham Shakira e aqueles que votam na Beyoncé ganham Beyoncé parece bem mais em
linha com o espírito da Nova Esquerda do que a atual democracia política em que
vale o "mesmo resultado para todos", tão celebrada pelo establishment político
progressista.
Portanto,
mesmo que as preocupações sociais da Nova Esquerda — que vão além do mero
anti-estatismo e do anti-militarismo — sejam consideradas parte do radicalismo
ideológico, Mises ainda assim se sobressai como um pensador ainda mais
ideologicamente radical do que inicialmente parecia.
3. Mises como um radical dialético?
Quanto
ao radicalismo dialético, Mises não parece pontuar muito alto nesta
dimensão. Considere sua explicação com a
relação a por que colocar empreendedores no comando de empreendimentos
socialistas não irá conferir eficácia capitalista a estes empreendimentos:
Uma frase popular afirma que, se os
trabalhadores de empresas estatais pensarem menos burocraticamente e mais
comercialmente, tais empresas irão funcionar tão bem quanto empresas
privadas. Se os principais cargos forem ocupados por mercadores, a renda
crescerá aceleradamente. O problema é que "mentalidade
comercial" não é algo externo, algo que pode ser arbitrariamente
transferido. As qualidades de um comerciante não dependem de aptidões
inatas e nem são adquiridas por meio de estudos em uma escola de comércio ou
por meio do trabalho em um estabelecimento comercial. Tampouco dependem
de ele já ter sido um homem de negócios durante algum tempo. A atitude e
a vivacidade comercial de um empreendedor surgem de sua posição no processo
econômico; porém, ela é perdida quando ele sai desse ramo. ... Não é o
conhecimento de regras de contabilidade [ou] de organização empresarial ... que
fazem de um indivíduo um bom comerciante, mas sim sua posição representativa no
processo de produção....
Em
suma, o sucesso empreendedorial não surge unicamente das qualidades pessoais do
empreendedor, mas sim do local que estas qualidades ocupam em relação a um
sistema mais amplo. Altere as relações
sociais, as qualidades não terão efeito algum.
Sciabarra chega até mesmo a rotular Mises de "pensador orgânico"[7]
tomando por base passagens como a seguinte:
Seria absurdo considerar um determinado
preço como se fosse um fato isolado. Um preço expressa a importância que os
agentes homens atribuem a qualquer coisa no atual estágio de seus esforços com
vistas a diminuir o desconforto. Não indica uma relação com alguma coisa
imutável, mas simplesmente uma posição instantânea num conjunto que varia como
se fosse um caleidoscópio. Nesse conglomerado de coisas às quais os julgamentos
subjetivos das pessoas atribuem valor, a posição de cada partícula está
inter-relacionada com a das outras partículas. O que se denomina de preço é
sempre uma relação no interior de um sistema integrado que resulta das várias
relações humanas.
Mises
certamente via vários fenômenos sociais como estando interligados; sua análise
do intervencionismo, por exemplo, ilustra sua orientação dialeticamente
radical. O intervencionista vê um
problema específico — por exemplo, a manteiga está muito cara — e já introduz
uma medida: controle de preços. Mas essa
"solução" trata o preço da manteiga como um fenômeno isolado e ignora seu lugar
em meio a uma rede de ligações mais amplas; com efeito, o controle de preços
gera incentivos perversos que criam novos problemas econômicos, os quis clamam
por ainda mais intervenções, e por aí vai.
Outro
exemplo do radicalismo dialético de Mises era sua oposição à guerra. É claro que vários teóricos sempre foram
contra guerras, mas Mises atacava as guerras em sua
raiz ao desafiar a premissa fundamental por trás de todas as
guerras: a tese da inerente desarmonia dos interesses humanos. Entender os conceitos dos ganhos mútuos oriundos
do comércio e da Lei Ricardiana da Associação não é basta para fazer um
argumento contra os lamentáveis custos de uma determinada guerra; antes, mostra
a preferência
sistemática pela
cooperação e não pelo conflito.
Radicais
dialéticos, de qualquer persuasão política, frequentemente afirmam que a busca
de seus objetivos políticos deve ser integrada com a busca de objetivos sociais
e culturais mais elevados, com a justificativa de que os aspectos políticos e
não-políticos da sociedade são interligados, sendo que as relações de apoio recíproco
subsistem entre certos valores culturais e certas formas políticas — um ponto
que Sciabarra enfatiza em seu livro
Total
Freedom.
Para
radicais dialéticos de persuasão libertária, esse comprometimento assume a
forma não de estimular a promoção de valores relevantes por meios políticos,
mas sim de promover conjuntamente os objetivos políticos e culturais como parte
de um pacote comum. Esta é uma das
possíveis conexões entre o libertarianismo dialético e as questões
culturalmente de esquerda do radicalismo ideológico — embora, obviamente, nem
todos os radicais dialéticos sejam libertários e nem todas as questões
culturais dos libertários dialéticos sejam de esquerda. Ayn Rand, Hans Hoppe e Charles Johnson, por
exemplo, argumentam que uma ordem política e econômica libertária requer as
corretas normas culturais para ter as melhores chances de prosperidade. Mas além de certas generalidades haveria
pouco consenso entre os três sobre quais seriam as normas relevantes.
Até
que ponto Mises concordaria com esse libertarianismo dialético — ou, como
passou a ser chamado recentemente, libertarianismo denso? À primeira vista, a resposta parece ser: não
muito. Apesar de toda a sua antipatia
pelo positivismo, Mises foi positivista o bastante para crer que juízos de
valor não podem ter uma fundamentação objetiva ou científica. Ademais, dado que Mises acreditava que os
fins supremos estão além do âmbito da discussão puramente racional, ele
naturalmente duvidaria da possibilidade de se recorrer a qualquer argumentação
racional (em contrate com 'retoricamente manipulativa') para se promover
valores.
Em
seu livro Socialismo,
Mises considera uma versão de algo parecido com um libertarianismo denso — ele
chama isso de "solidarismo" — e o considera insatisfatório. De acordo com Mises, o solidarismo ensina que
"os interesses de todos os membros da sociedade harmonizam" e que "[a]
propriedade privada ... é do interesse de todos". Até aí, tudo bem. Mas, acordo com os proponentes do solidarismo,
a mera garantia de direitos de propriedade, embora necessária, não é suficiente
para a completa realização do "princípio da solidariedade social"; sendo assim,
forças de mercado devem ser suplementadas por "provisões especiais".
Para
aquilo que Mises chama de "a ala mais estatizante do Solidarismo", essas
"provisões especiais" envolvem "ação do estado", e por isso Mises, nada
surpreendentemente, rejeita essa versão do solidarismo. Mas Mises também rejeita a ala mais
voluntária do solidarismo, a qual busca assegurar essas provisões especiais
"não por meio de legislação estatal, mas por receitas morais". O solidarismo voluntário, como Mises o
descreve, parece uma versão do libertarianismo denso ou dialético; não há
interferência coercitiva nos mercados (logo, é libertário), mas como se imagina
que os mercados irão funcionar mais beneficamente se certos valores morais
forem inculcados e seguidos, tais valores são promovidos não-coercivamente
(logo, é denso).
No
entanto, Mises aparentemente considera até mesmo
o solidarismo voluntário uma forma condenável de socialismo, pois "coloca acima do proprietário uma autoridade —
não importa se a Lei e seu criador, o estado, ou a consciência e sua
conselheira, a Igreja — com o intuito de assegurar que o proprietário utilize
sua propriedade corretamente". Tão logo
o uso da propriedade por seu proprietário é colocado sob qualquer arranjo de normas sociais, até mesmo normas voluntárias, a
propriedade "deixa de ser um elemento básico e supremo na ordem social", e
consequentemente "a propriedade é abolida, dado que seu proprietário, ao
administrar sua propriedade, deve seguir os princípios outros que não aqueles
que são do seu interesse" — até mesmo, aparentemente, se a imposição foi feita
pelos poderes de persuasão moral da Igreja, mesmo sem coerção.
Essa
me parece uma posição muito estranha a ser tomada por um adepto do valor
subjetivo; se o capitalismo, como Mises o define, significa que os donos de
propriedade são livres para fazer qualquer uso pacífico e voluntário de sua
propriedade, e se a preferência subjetiva do proprietário é a de fazer uso de
sua propriedade de uma maneira que conforme com o código moral prevalecente ao
seu redor, não seria esse exatamente o interesse
do proprietário?
Ademais,
embora seja indubitavelmente verdade que, para qualquer arranjo de valores
culturais, uma sociedade que tenha esses valores estará em melhor situação caso
tenha mercados livres, não seria verdade que o mercado estaria em melhor
situação — bem como mais estáveis — com determinados valores culturais em vez
de outros? Por exemplo, uma sociedade em
que a desonestidade seja disseminada irá forçar os participantes do mercado a
pagarem custos adicionais para monitorar e impingir obediência aos contratos,
ao passo que, em uma sociedade em que a desonestidade seja menos comum, tais
custos serão menores e os mercados serão capazes de direcionar os recursos
relevantes para o atendimento de outras necessidades.
Em
todo caso, Mises não parece sempre ser tão inflexivelmente contra o
libertarianismo denso. Por exemplo, em
uma carta ao The New York Times, em 1943, Mises escreveu: "O nacionalismo econômico não
pode ser erradicado por medidas de caráter puramente institucional. O que é necessário é uma mudança radical nas
mentalidades política, social e econômica". (Essa observação poderia ter sido
feita por Sciabarra, cujos libertarianismo dialético estuda a interação entre
fatores estruturais, culturais e pessoais).
Considere
o livro de Mises,
A
Mentalidade Anticapitalista. Um
libertário dialético não precisa concordar com todas as explicações
psicológicas que o livro faz a respeito dos críticos do capitalismo — nem com
sua suposição de que o "capitalismo" que os críticos estão atacando sempre será
exatamente o mesmo "capitalismo" que Mises defende — para reconhecer que o
ímpeto básico do livro é de libertarianismo dialético: uma ordem de mercado
requer uma estrutura cultural que lhe dê apoio, pois se vários de seus
participantes forem adeptos de valores anti-mercado, tal ordem de mercado não
será duradoura. Daí o esforço de Mises
em desmascarar valores perniciosos como parte de seu objetivo de apresentar
argumentos em prol do livre mercado.
Portanto,
até que ponto Mises é um radical? Ele se
mostra bastante radical nos sentidos dialético e de intensidade, embora menos
do que alguns de seus sucessores. Com
relação ao radicalismo ideológico, ele pontua alto na dimensão política, mas
confessadamente pontua muito baixo — embora não tão baixo quanto inicialmente
poderia se supor — na dimensão sociocultural.
Concluo
que a orientação geral de Mises é muito mais radical do que moderada, e que seu
legado, consequentemente, é atraente e inspirador para aqueles que são radicais
em todos os três sentidos mencionados acima.
[1] Mises: Last Knight of Liberalism, p. 1030.
[2] Ultimate Foundation of Economic Science VI.5.
[3] Last
Knight, p. 861.
[4] Socialism III.ii.25.2.
[5] Money, Method, and the Market Process, ch. 21
[6] Long, "Austro-Libertarian Themes
in Early Confucianism"
[7] Total Freedom, p.
124.