quinta-feira, 28 nov 2013
Dois
anos atrás, alguns dias após a vitória de Cristina Fernández de Kirchner na
eleição presidencial da Argentina, o governo decidiu impor um novo sistema de
controle de capitais estrangeiros rotulado pela imprensa de "cepo"
De
início, a medida foi uma tentativa de combater a evasão fiscal. Com o tempo, as medidas foram se
intensificando e hoje já está claro que elas fazem parte de um grande esquema
intervencionista de controle cambial capitaneado pelo Banco Central argentino.
Em
um sistema de taxas de câmbio flexíveis, um Banco Central limita suas
atividades apenas ao controle da base monetária. Ele não se preocupa com a taxa de
câmbio. Consequentemente, os preços das
moedas estrangeiras atuam somente como um indicador da eficácia ou da
ineficácia da política monetária. Já
quando o Banco Central adota controle de capitais (não confundir controle de
capitais com câmbio fixo;
são arranjos completamente distintos), ele passa a atuar como um ente que faz
um "racionamento de divisas", vendendo dólares a preços arbitrários a
determinados grupos privilegiados escolhidos pelo governo.
No
caso específico do "cepo" argentino, o Banco Central proíbe a compra de dólares
por argentinos que querem manter sua poupança em moeda estrangeira, mas permite
que alguns importadores ou algumas pessoas que queiram viajar ao exterior
comprem dólares à taxa oficial de câmbio — mas sempre mantendo um controle estrito sobre a quantia
transacionada. Adicionalmente, o BC
argentino também vende dólares à taxa oficial àquelas pessoas que utilizam
cartões de crédito no exterior, embora lhes cobre um imposto que aumenta a taxa
de câmbio em 20%.
O
governo justificou a imposição do "cepo" sobre os argentinos alegando que se
tratava de uma tentativa de controlar o fluxo de dólares e de evitar uma
desvalorização. No entanto, após dois
anos, esse controle de capitais criou ainda mais problemas e não trouxe nenhuma
solução.
Para
começar, surgiu um mercado paralelo no qual dólares são transacionados a uma
taxa 65% maior do que a taxa de câmbio oficial — valor esse que está bem em
linha com a alta inflação de preços que está deteriorando o poder de compra do
peso. Estas transações ocorrem naquilo
que passou a ser prosaicamente chamado de mercado do "dólar azul". Adicionalmente, as reservas internacionais do
país já caíram mais de 30% desde outubro de 2011, sendo que, no resto do
continente latino, elas continuam crescendo em decorrência da frouxa política
monetária adotada pelo Fed. Finalmente,
a balança comercial do país foi reduzida graças ao colapso na taxa de
crescimento das exportações.
O
gráfico abaixo mostra a discrepância entre a taxa de câmbio oficial (linha
verde) e a taxa de câmbio no mercado paralelo (linha azul).

Mas,
então, por que o governo decidiu adotar uma política tão deletéria para a
sociedade argentina? Uma possível resposta
é que os burocratas se preocupam apenas com seus interesses de curto
prazo. Aliás, e curiosamente, quanto
mais um governo diz estar preocupado com o "bem comum", mais ele está pensando
apenas no bem de seus próprios integrantes.
Outra resposta, e essa assumidamente ingênua, é que os políticos
argentinos se esqueceram de ler o capítulo XXXI de Ação Humana,
de Ludwig von Mises.
A escassez de divisas estrangeiras
Repetidas
vezes, os burocratas da Argentina se referiram ao "cepo" como se fosse uma
ferramenta vital para "cuidar
dos dólares" ou para evitar a escassez
de divisas necessárias para investimentos de longo prazo. No entanto, se eles houvessem lido Mises,
eles saberiam que, em um livre mercado, não existe algo como escassez de
dólares:
Os governos que se queixam de uma escassez
de divisas têm na realidade outras preocupações. A escassez é o inevitável resultado de suas
políticas de controle de preços. Como o governo fixou para a sua moeda um valor
acima do mercado, a demanda por divisas excede a oferta.
A
redução de US$14 bilhões nas reservas internacionais do Banco Central argentino
pode ser explicada pelo simples conceito da oferta e demanda. À taxa de câmbio determinada pelo governo,
vários argentinos querem converter seus pesos em dólares, e poucos querem abrir
mão de seus dólares em troca de pesos.
Se um produto é vendido a um preço muito abaixo de seu real preço de
mercado, é muito fácil prever que seus estoques irão diminuir rapidamente a
menos que os preços subam. Com as
reservas estrangeiras, o princípio é idêntico.
O estrago às exportações
Antes
da imposição do controle de capitais estrangeiros, as exportações argentinas
cresciam a uma taxa anual de 27%. No
entanto, o ritmo foi reduzido a apenas 3% em setembro de 2013. Mises explicou por que essa queda iria
ocorrer:
Qualquer cidadão que adquirir divisas —
procedentes, por exemplo, de uma exportação — é obrigado a vendê-las ao
correspondente órgão central, pela taxa de câmbio oficial. Se essa estipulação,
que equivale a um imposto de exportação, for efetivamente aplicada, o comércio
exterior ou irá diminuir muito ou será completamente abolido.
Por
meio do Banco Central, o governo paga aos exportadores somente 60% do valor de
seus produtos vendidos para o exterior.
Se um exportador argentino vender um produto que custa US$100, o Banco
Central argentino irá lhe pagar somente $600 pesos quando ele for trocar os
dólares por pesos. No entanto, se o
Banco Central respeitasse o preço de mercado do dólar, ele deveria pagar ao
exportador $1.000 pesos. Logo, não
deveria ser nada surpreendente que os exportadores estejam sendo profundamente
afetados pelo "cepo".
Importações
Em
um discurso
à Universidade de Harvard, a presidente Cristina Kirchner negou a
existência do controle de capitais estrangeiros e, para exemplificar essa sua
negativa, ela sugeriu que havia "120 categorias que permitiam aos argentinos
adquirir dólares". Uma delas, alegou,
são as importações. Isso não
surpreenderia Mises, que escreveu que:
Por outro lado, o órgão central de controle
de câmbio, aferrando-se obstinadamente à ficção de que as taxas de câmbio
"na realidade" não subiram e que a taxa oficial de câmbio é uma taxa
real, vende divisas aos importadores pela taxa oficial.
Porém,
quando um importador paga 6 por algo pelo qual ele na realidade deveria pagar
10, ele está recebendo um considerável subsídio do governo, algo que
provavelmente fará as importações aumentarem ao ponto de ameaçar a tão
enaltecida "produção doméstica". E isso
é algo que nenhum governo (especialmente um governo intervencionista como o da
Argentina) irá tolerar. Mises observa que:
Consequentemente, as autoridades recorrem a
outros artifícios. Ou aumentam as tarifas de importação, ou estabelecem um
imposto especial sobre os importadores, ou oneram de alguma forma a compra de
divisas.
Caso
Mises mencionasse uma das malfadadas políticas do governo Kirchner, as Declaraciones
Juradas Anticipadas de Importación (DJAI — Declarações Juramentadas
Antecipadas para Importações, um novo obstáculo burocrático para os
importadores), poderíamos dar a ele o título de futurólogo.
A inflação é o problema
Como
última observação, vale dizer que o motivo para os controles de capitais — bem
como o motivo para todo e qualquer controle de preços — é a persistente
inflação de preços criada pela política monetária do Banco Central argentino,
algo que o governo faz de tudo para ignorar.
Em menos de 4 anos, a
oferta monetária quase triplicou.
Porém,
como Mises nunca se cansou de alertar, nenhuma intervenção pode acobertar ou
alterar "o fato de que uma moeda nacional perdeu parte do seu poder aquisitivo
em relação às divisas estrangeiras, ao ouro, e às mercadorias em geral."
Controles
de capitais apenas agregam mais problemas aos problemas já existentes. Se o governo argentino houvesse lido Mises
(ou ao menos não o ignorasse deliberadamente), ele veria o encarecimento do
dólar como um indicador dos excessos de sua política monetária. Como corolário, nós argentinos teríamos
evitado todos os efeitos distorcivos de um "cepo" e, principalmente, não
estaríamos hoje sofrendo com essa vergonhosa inflação de preços, a qual rouba dos
argentinos o poder de compra de seu dinheiro, o qual eles honestamente
adquiriram por meio de interações pacíficas e voluntárias no mercado.
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Leia também:
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A nova onda de controle de preços na América Latina