quarta-feira, 30 out 2013
Não
existe nada mais empolgante do que aquelas leituras, feitas aos vinte anos de
idade, que mudam o nosso modo de pensar para sempre. Essas leituras cruciais
fornecem o material que une o nosso conhecimento até então fragmentado em uma
visão de mundo coerente e ao mesmo tempo estimulam o senso crítico necessário
para o exame dos fragmentos incompatíveis com essa visão. Para o aluno, o
aspecto mais fascinante da educação universitária deveria ser a construção,
como uma espécie de "Lego intelectual", da própria visão de mundo, a
partir do encaixe ou rejeição crítica de cada um dos tijolos sugeridos pelos
textos.
Em
especial, o início do processo de construção de um edifício explanatório deve
ser recompensador, pois toda teoria apresenta algo como retornos decrescentes:
no início, somos expostos a vasto território inexplorado, ao passo que o
intelectual maduro é condenado a se repetir. O estudo da Economia, em
particular, deveria proporcionar essa sensação de descoberta, pois ele nos
fornece a chave para a compreensão da maioria dos erros que povoam o núcleo do
discurso dos políticos e fornece fascinantes teorias que abrem nossos olhos
para os reais fatores que geram prosperidade, sem a qual não seriam possíveis
todas as conquistas de nossa civilização.
O
estudante contemporâneo da teoria econômica, no entanto, raramente passa pela
experiência de abertura de olhos proporcionada pelo contato com o modo de
pensar dos economistas. Depois de aprender que preferências convexas são
garantidas pelo uso de funções utilidade estritamente quase côncavas, o
estudante raramente folheia um jornal e fica revoltado com a quantidade de
falácias econômicas que povoam suas páginas. O formalismo que domina o ensino
da economia moderna privilegia a solução de quebra-cabeças matemáticos em
modelos de brinquedo (toy models), em detrimento do exame das
consequências e aplicações mais amplas das teorias. Mas, por mais árido e
pausterizado que possa parecer um moderno manual de microeconomia, a teoria dos
preços lá exposta possui consequências cruciais para a discussão de questões
políticas fundamentais, que quase sempre escapam ao estudante.
Mesmo
nos cursos de Introdução à Economia, cujo propósito deveria ser exatamente
expor o núcleo da visão de mundo do economista, os alunos geralmente sabem
muito bem calcular elasticidades-preço da demanda, mas ignoram as implicações
dos conceitos de escassez e custo de oportunidade. Assim, não é à toa que os
cursos de economia não são muito populares nas universidades.
A
paixão (ou ódio) pelas teorias econômicas surge com toda a sua força, porém,
quando tais teorias são explicitamente associadas aos problemas políticos que
motivaram sua elaboração. No presente volume, efetuamos uma análise das
economias modernas a partir de um referencial explanatório fortemente calcado
na teoria econômica, mas que contempla também ideias filosóficas e políticas.
Essas ideias são combinadas em uma visão de mundo institucional: perguntaremos
quais conjuntos de regras resultam em prosperidade ou estagnação e investigaremos
quais regras são responsáveis pelos problemas econômicos atuais. Em especial,
examinaremos os papéis desempenhados pela liberdade econômica e pela
intervenção do estado na economia.
Para
que essa análise comparativa seja feita a contento, será antes necessário nos
livrarmos de noções que atrapalham essa tarefa. Em primeiro lugar, precisamos
abandonar a noção marxista de "capitalismo". Além de pertencer a uma
visão de mundo ultrapassada, associada a uma teoria econômica que foi
ultrapassada ainda no século XIX, a identificação automática da realidade com a
noção de capitalismo impede a comparação institucional que pretendemos, pois
todas as instituições vigentes, segundo essa visão, seriam capitalistas e todos
os males são atribuídos por definição a esse sistema, tornando impossível
discutir de forma útil o papel do estado na economia.
Em
segundo lugar, precisamos superar os defeitos inerentes ao formalismo que marca
a teoria econômica moderna. Ao valorizar apenas aquilo que pode ser
quantificado, a teoria econômica moderna tende a deixar de lado as
características institucionais que são as causas últimas das diferenças de
desempenho econômico dos países. Além disso, a recusa em abandonar a visão
romântica do estado como entidade incorpórea, preocupada apenas com o bem estar
coletivo, em favor de uma teoria que estude a ação estatal como algo exercido
por pessoas de carne e osso, impede que se faça uma análise da lógica das
intervenções na economia.
Rejeitadas
as teorias clássica, marxista e estritamente neoclássica como referencial
teórico, escolhemos a economia austríaca como base para nossa análise. Esse
referencial nos convidará a substituir a noção marxista de capitalismo pela
noção de sistema econômico intervencionista. Com isso, não mais será possível comparar
o capitalismo, identificado automaticamente com os males do mundo real, com o
socialismo, ideal abstrato e correto por definição. Do mesmo modo, não será
mais possível avaliar os mercados segundo o ideal inalcançável de eficiência
alocativa sem que ao mesmo tempo eles sejam comparados com a ação estatal.
Eliminados os conceitos que tornam a liberdade inferior por definição, podemos
efetuar uma análise econômica do sistema econômico intervencionista no qual
vivemos.
Essa
análise terá como base o pensamento dos dois economistas austríacos mais
conhecidos, Mises e Hayek. Do primeiro, extraímos os fundamentos da análise
austríaca dos mercados e o referencial básico de análise do socialismo e
intervencionismo. Do segundo, tomamos emprestada a crítica ao mau uso da noção
de equilíbrio, que fundamenta a análise austríaca moderna, a noção de ordem
espontânea e suas teses metodológicas. O leitor perceberá que, de fato, o
referencial teórico utilizado no presente volume é em larga medida hayekiano.
Além desses autores, a nossa leitura da realidade toma emprestadas teses de
diversos autores, como Popper, M. Polanyi, Bartley III, A. Smith, Bastiat,
Buchanan, Coase, Kirzner, entre outros.
Os
capítulos contidos em cada parte são textos originalmente escritos como artigos
independentes uns dos outros. Três anos atrás, fui convidado para escrever
artigos mensais para o sítio do Ordem Livre.
Nesse espaço, tive a liberdade para me dedicar a artigos mais acadêmicos e
gerais, em vez dos usuais textos sobre conjuntura de curto prazo normalmente
demandados dos economistas. Naquela ocasião, imaginei a estrutura do presente
livro, aceitando a oportunidade de escrevê-lo em 30 "prestações".
Aproveitei
essa liberdade para escrever artigos mais acadêmicos do que se espera desse
tipo de texto, utilizando extensivamente notas de rodapé com referências
bibliográficas, mas menos formais do que se espera de artigos acadêmicos. Com a
crescente especialização da academia, sobra cada vez menos espaço nessas
revistas para análises interdisciplinares, como a empreendida neste livro, que
trata de relações entre economia, filosofia e política. Menos espaço ainda
existe, sobretudo nas revistas brasileiras, para abordagens teóricas
minoritárias, como a austríaca. Porém, boa parte das teses aqui apresentadas
tem origem no trabalho acadêmico do autor, sujeito ao tipo de restrição
mencionada acima. Mas, com a liberdade proporcionada pela minha coluna, o
resultado que pode ser visto nas próximas páginas foi um conjunto de artigos
mais informal, que não foge de polêmicas ideológicas, mas que pretende levar a
sério o debate entre visões de mundo concorrentes.
Agradeço
ao Ordem Livre pela oportunidade de utilizar material publicado originalmente
no sítio daquela instituição e ao Instituto Mises Brasil (www.mises.org.br),
pelo mesmo motivo, no que diz respeito ao mais extenso ensaio aqui publicado,
sobre os irmãos von
Mises. Agradeço também a essas duas instituições pelos convites para
proferir palestras sobre economia austríaca e poder participar do
extraordinário movimento, em curso nos últimos anos, de divulgação das ideias
austríacas no Brasil.
_______________________
O
livro é dividido em três partes. Na primeira, reunimos artigos que discutem o
referencial teórico básico empregado no mesmo. Esse referencial utiliza
elementos da teoria econômica moderna, com ênfase no pensamento austríaco, em
especial no que diz respeito aos mercados vistos como ordens espontâneas
auto-organizadas. A liberdade, nessa visão hayekiana, é a única maneira de
contornar a limitação do conhecimento dos agentes diante da tarefa cada vez
mais complexa de coordenar as ações individuais. Depois de tratar da defesa da
liberdade e sistemas descentralizados, na segunda parte o mesmo referencial
teórico é empregado no exame dos sistemas econômicos comparados. Expomos a tese
austríaca sobre a impossibilidade do socialismo e apresentamos a tese misesiana
sobre a instabilidade do sistema econômico intervencionista. Na terceira parte,
essa mesma análise do intervencionismo é empregada como base para a crítica de
algumas políticas e tendências encontradas nas sociedades contemporâneas.
A
primeira parte inicia com um capítulo que expõe os principais fatores
institucionais relacionados ao crescimento econômico, fatores esses expostos
por economistas cujas ideias aparecerão incontáveis vezes no restante do livro.
No segundo capítulo, utilizamos o pensamento de Bastiat para mostrar que as
falácias econômicas são fruto da compreensão parcial do funcionamento das
ordens espontâneas. Praticamente toda falácia econômica tem origem em análises
que focam sua atenção em alguns mercados apenas, ignorando os custos de
oportunidade das políticas econômicas nos demais. O terceiro, o mais extenso,
utiliza a rivalidade entre os irmãos Mises para contrastar a metodologia da
economia dos austríacos e da teoria tradicional. Acreditamos que as diferenças
entre austríacos e neoclássicos repousa em última análise em diferenças
metodológicas: o positivismo que informa a última impede que se perceba a
importância dos fenômenos complexos enfatizados pela primeira escola, como a
noção de auto-organização.
Os
demais capítulos da primeira parte tratam da visão hayekiana da economia como
uma ordem complexa auto-organizada e dos aspectos metodológicos de uma teoria
que trata desse tipo de fenômeno. No quarto capítulo tratamos do problema da
coordenação das atividades individuais em uma economia com divisão do trabalho
cada vez mais detalhada. Nesse contexto, mostra-se como a liberdade é essencial
para que o conhecimento disperso dos agentes seja utilizado e corrigido ao
longo do tempo. No quinto e sexto capítulo, voltamos ao tema do terceiro
capítulo e exploramos os aspectos metodológicos do estudo de fenômenos
complexos. As teorias sobre esses fenômenos representam apenas certos
princípios de funcionamento da ordem espontânea, nunca fornecendo previsões
exatas sobre detalhes desses sistemas. Nos capítulos sete e oito, ilustramos
essas ideias metodológicas através do exame de teorias sobre ordens espontâneas
nos mercados e na natureza.
A
primeira parte conclui com um ensaio que compara Hayek com Marx no que diz
respeito ao papel do conhecimento limitado em ordens espontâneas e hierárquicas.
Na
segunda parte, passamos ao exame crítico de sistemas econômicos mais
hierarquizados. Nos capítulos dez e onze, visitamos a tese misesiana sobre a
impossibilidade do cálculo econômico no socialismo. O primeiro expõe a tese em
si e o segundo o debate entre austríacos e neoclássicos sobre o tema. Esse
debate clarifica as diferenças entre as duas abordagens, que transparecerão ao
longo de todo o livro. Os capítulos restantes dessa segunda parte tratam do
intervencionismo, visto como o sistema econômico vigente no mundo atual.
O
capítulo doze ilustra historicamente a análise do intervencionismo através do
exame da recaída
autoritária na última década na América Latina e o seguinte expõe a teoria austríaca sobre o
intervencionismo. Para essa teoria, as "contradições internas"
dos sistemas intervencionistas põem em marcha um processo que resulta em ciclos
de expansão e contração do estado.
Os
capítulos seguintes tratam de objeções a essa abordagem, oferecendo uma defesa
metodológica do núcleo comum da teoria compartilhada entre austríacos e
neoclássicos. O décimo quarto capítulo critica a tese historicista, defendida
pelos marxistas, segundo a qual a teoria econômica só seria válida no
capitalismo. O artigo mostra que, pelo contrário, qualquer sistema econômico
tem que lidar com o problema alocativo. Os dois capítulos seguintes desmontam a
crítica à teoria moderna segundo a qual esta dependeria da hipótese de agentes
egoístas. Esses capítulos mostram que a teoria requer apenas agentes que tenham
algum propósito, não importando a natureza dos mesmos e analisam o papel do
pressuposto de autointeresse empregado na teoria econômica.
Os
dois capítulos seguintes analisam os aspectos ideológicos da mentalidade
estatista. O capítulo dezessete indaga se os instintos coletivistas seriam
inerentes à natureza humana e o seguinte estuda as características da presente
ideologia dos defensores do intervencionismo. Esse estudo é importante para o
desenvolvimento da teoria no que diz respeito à fase do ciclo do intervencionismo
na qual ocorrem reformas liberalizantes. Os capítulos dezenove e vinte tratam
das dificuldades encontradas nessa fase de reformas. A expansão do estado faz
com que reformas contrariem interesses e causem crises no curto prazo, que
serão atribuídas não as distorções causadas pelas intervenções, mas as próprias
reformas adotadas para aliviar o problema. Quanto mais se avança em direção ao
controle central, por outro lado, mais difícil para as pessoas imaginarem
instituições alternativas, compatíveis com a liberdade.
O
penúltimo capítulo da segunda parte trata do final da fase de expansão do
estado na teoria do intervencionismo, mostrando a diminuição da margem de
manobras dos políticos nesse estágio. O capítulo final volta à ilustração da
teoria, defendendo um revisionismo histórico que rejeite ideias marxistas e
incorpore os resultados da teoria econômica moderna. Esse revisionismo traria
inúmeras ilustrações da nossa teoria do intervencionismo.
Na
terceira parte do livro discutimos aspectos políticos da batalha pela
liberdade. Nos capítulos 23 e 24, discutimos como o pensamento liberal em
economia é bloqueado respectivamente pela identificação da realidade com o
conceito de capitalismo e pela identificação do status quo com
situação desprovida de intervenções corretivas. Em nossa opinião, os grandes
problemas econômicos são falhas de governo, não falhas de mercado. No capítulo
25, examinaremos como a expansão do conceito de externalidade como
justificativa para intervenções estatais nos leva progressivamente ao abandono
das liberdades individuais. No capítulo seguinte, efetuamos uma crítica
austríaca de como o economista lida com os monopólios e na sequência mostramos
como a atividade empresarial é tratada de forma inadequada na visão ortodoxa
sobre o funcionamento da competição nos mercados.
No
capítulo 29, criticamos aqueles que veem nos preços as causas dos problemas
macroeconômicos: as análises corretas deveriam investigar os fundamentos que
fazem os preços se moverem. No capítulo 30, utilizamos a história infantil dos
três porquinhos para ilustrar a teoria austríaca dos ciclos econômicos, que
afirma que a expansão do crédito orquestrada pelos bancos centrais é a causa
principal das crises econômicas.
Nos
três capítulos seguintes, analisamos o mercado das ideias. No primeiro
examinamos as falsas analogias entre mercados e o sistema educacional. No
segundo e terceiro, argumentamos que a tentativa de estimular a competição
através de mecanismos de incentivos à produtividade acadêmica não funciona. O
argumento é baseado na tese da impossibilidade do cálculo econômico no
socialismo: preços artificiais são inerentemente diferentes de preços em
mercados reais. Argumentamos que a liberdade acadêmica é a principal vítima do
"produtivismo" acadêmico.
Nos
capítulos 33 e 34, mostramos que, sob o intervencionismo, opera um mecanismo
seletivo hayekiano segundo o qual os piores chegam ao poder e as alternativas
liberais tendem a desaparecer. Por fim, no último capítulo analisamos o
fenômeno do discurso politicamente correto, visto como uma das maiores ameaças
à liberdade.
Eis,
a seguir, os capítulos do livro. Basta clicar sobre cada um para lê-lo na íntegra
e gratuitamente.
Apresentação
Introdução
1. Seis Lições sobre
Prosperidade e Pobreza
2. Bastiat e as
Máquinas de Moto-Perpétuo Econômicas
3. Os Irmãos Mises:
o Positivismo e as Ciências Sociais
4. A Economia
Falibilista de Hayek
5. Hayek e o Uso
Circunspecto dos Modelos Econômicos
6. Pangloss versus
Procusto: um trade-off metodológico
7. Entre os
Chipanzés e os Cupins
8. O Ar Condicionado
Abstrato
9. Alienação: Marx e
Hayek
10. Da
Impossibilidade do Socialismo
11. O Socialismo de
Mercado e a Importância da Competição
12. A Maré Estatista
na América Latina e a Teoria do Intervencionismo
13. A Teoria
Austríaca do Intervencionismo
14. Intervencionismo
e Historicismo
15. Espantalhus
œconomicus
16. Autointeresse,
Instituições e Utopia
17. Arremesso de
Anões
18. Dogmatismo e
Ideologia Intervencionista
19. Chutando a Escada
para a Liberdade
20. Liberdade e
Custo de Oportunidade
21. Escassez de
Líderes?
22. História: mais
Bastiat e menos Marx
23. Abaixo o
Capitalismo!
24. Eficiência
Econômica e a Abordagem do Nirvana
25. Externalidades:
caixa de Edgeworth ou de Pandora?
26. Economista e o
Monopólio
27. Do Empresário
Herói ao Empresário Invisível
28. Os Preços e as
Causas dos Problemas Econômicos
29. Os Três
Porquinhos e os Ciclos Econômicos
30. As Escolas e os
Mercados
31. Mecanismos de
Incentivos, Produtividade Acadêmica e o "Mercado das Ideias"
32. Liberdade
Acadêmica
33. A Causa Traída:
por que os piores chegam ao poder
34. Eleições: o copo
meio cheio
35. O Moralismo
Social
Referências