Este artigo é a última parte da série sobre
os pós-escolásticos. Leia a primeira e a segunda parte.
6.
Os últimos pós-escolásticos e o declínio do escolasticismo
Além
de Mariana, os historiadores costumam destacar mais dois escolásticos tardios
contemporâneos a ele: Leonardo Léssio (1554-1623) e Juan de Lugo (1583-1660).
Léssio,
jesuíta nascido na Bélgica, sustentava que o preço justo de qualquer bem era
aquele determinado pela estimativa comum de mercado. Embora admitisse que um
preço determinado pelo governo também pudesse ser justo, apontou diversos casos
em que o preço de mercado teria de ser escolhido em detrimento do preço legal.
Primeiro, quando o preço de mercado é menor e, segundo, quando, "na
alteração de circunstâncias de aumento ou diminuição da oferta e fatores
semelhantes, as autoridades forem negligentes em alterar o preço legal".
Ainda
mais fortemente, até mesmo um indivíduo poderia pedir um preço acima do teto
legal caso as autoridades estivessem "mal informadas sobre as
circunstâncias comerciais", o que, segundo ele, seria provável de
acontecer praticamente sempre. Para ele, a demanda do mercado era o fator
determinante dos preços e isso não dependia das despesas dos comerciantes: caso
essas despesas fossem maiores (ou menores) do que o preço de venda, os
comerciantes deveriam assumir os prejuízos (ou auferir os lucros).
Como
ressalta Jesús Huerta de Soto no livro editado por Holcombe, Léssio enxergou
com bastante clareza como os mercados econômicos estão inter-relacionados,
inclusive o mercado cambial. Aplicou a boa teoria econômica também no campo
monetário e no dos salários, que para ele deveriam ser determinados pelas leis
da demanda e oferta, tal como qualquer outro preço, o que configuraria a
existência de justiça. A respeito do que seria um "salário mínimo ideal", ele
percebeu que a simples existência de outra(s) pessoa(s) disposta(s) a executar
o mesmo trabalho recebendo aquele salário era um indicador de que esse salário
não poderia ser "injusto". Sustentava também o que chamava de "salário
psíquico": "Se a obra traz consigo status social e emolumentos, o
pagamento pode ser baixo porque o status e vantagens associados são, por assim
dizer, uma parte do salário".
Escreveu
também que os trabalhadores são contratados pelo empregador por causa dos
benefícios que aqueles lhes proporcionam, benefícios esses que devem refletir a
produtividade. Assim, Léssio estabeleceu um esboço muito bem elaborado da
teoria da produtividade marginal da demanda por mão de obra e,
consequentemente, uma teoria para explicar a determinação dos salários, bem
semelhante ao que foi estabelecido pelos austríacos e outros
economistas neoclássicos, no final do século XIX.
Enfatizou
ainda a importância do empreendedorismo na determinação do lucro: a qualidade
do empreendedor, a "indústria" de combinar eficientemente fatores de
produção, é escassa e, portanto, o empreendedor pode ganhar uma renda muito
maior do que os que não são aquinhoados com esse dom. Léssio também fornece uma
análise sofisticada da moeda, em que demonstra que seu valor depende de sua
oferta e de sua demanda. Quando há excesso de oferta de uma dada moeda, ela
valerá menos, tanto para a compra de bens como para a compra de moeda
estrangeira e, mutatis mutandis, uma escassez de moeda aumenta o
seu valor.
Contribuiu
também para o banimento da "lei da usura", com o argumento carentia
pecuniae, segundo o qual o credor sofre pela falta de sua liquidez durante
o prazo do empréstimo e que, portanto, ele tem o direito de cobrar juros por
esta perda. O tempo de renúncia à liquidez, dessa forma, é moralmente
justificável. Argumenta que letras de câmbio, ou quaisquer direitos a dinheiro
futuro, devem sempre ter um desconto, que é, naturalmente, a taxa de juros.
Assim, para Lessius, o preço a ser recebido pela renúncia ao dinheiro em que o
emprestador incorre durante o período do empréstimo deve ser estabelecido nos
mercados organizados de empréstimos, os"loanable funds markets".
Para
diversos estudiosos do escolasticismo, com a cláusula carentia pecuniae Leonard
Léssio contribuiu para acabar de uma vez por todas com a proibição da usura,
embora, formalmente, ainda tivesse mantido a proibição. Mas foi, sem dúvida, o
teólogo cujas visões sobre a usura mais decididamente marcaram a chegada de uma
nova era. Foi um precursor do mundo financeiro moderno.
O
derradeiro grande nome dos escolásticos tardios de Salamanca foi o cardeal
jesuíta Juan de Lugo, no século XVII, em que o poder da Espanha na Europa já
estava em
declínio. Estudou Direito e Teologia em Salamanca e em
seguida foi para Roma lecionar no colégio jesuíta da capital italiana. Depois
de ensinar Teologia em Roma por 22 anos, Lugo foi feito cardeal e tornou-se
membro de várias comissões influentes da Igreja em Roma. Um teórico bastante
respeitado, Lugo é considerado por muitos como o maior teólogo moral desde São
Tomás. Escreveu um livro sobre Psicologia e outro sobre Física e sua obra mais
importante sobre Direito e Economia foi a De Justitia et Jure,
publicado em 1642, livro que passou por várias edições.
Sua
Teoria do Valor é uma joia preciosa da Escola de Salamanca, que provê uma
explicação subjetiva e bastante avançada para a época a respeito da
determinação do valor. Os preços dos bens, observou, flutuam "por
conta de sua utilidade em relação à necessidade humana, e apenas por conta da
estimativa, pois as joias são muito menos úteis do que o milho, e ainda assim
seu preço é muito maior". É fácil perceber que essa afirmativa soa
como uma premonição da teoria subjetiva do valor de acordo com a utilidade
marginal e para destrinchar o "paradoxo do valor": o milho é mais abundante do
que as joias e, portanto, tem maior valor de uso, mas é mais barato no preço. A
resposta para o paradoxo é que as estimativas subjetivas ou avaliações diferem
do valor objetivo de uso, e este por sua vez é afetado pela escassez relativa.
Para
tornar essa explicação perfeita, faltou apenas a Lugo incluir o conceito de utilidade
marginal. A subjetividade de Lugo significa que as estimativas ou valorações
são feitas tanto por pessoas prudentes como também por pessoas imprudentes ou,
em linguagem moderna, de maneira racional ou não racional. Portanto, o preço
justo é o preço de mercado determinado pela demanda e valorização do consumidor
e, se os consumidores são tolos ou avaliarem tolamente, paciência, pois o preço
de mercado será um preço justo de qualquer forma.
Ao
abordar o comércio, Lugo acrescenta ao conceito de custo de oportunidade os
gastos mercantis. Um comerciante só vai continuar a fornecer um produto se o
preço cobrir suas despesas e a taxa de lucro que ele poderia ganhar caso
exercesse outras atividades.
Em
sua teoria monetária, Lugo é um autêntico escolástico tardio: o valor ou poder
de compra da moeda é determinado pela qualidade de seu conteúdo metálico, sua
oferta e sua demanda. E a moeda sempre se move da área onde seu valor é
inferior para onde seu valor é maior.
No
que diz respeito à usura ele não concorda com as implicações claras de Léssio e
outros de que a proibição da usura deve terminar. Por essa razão, ele se recusa
a aceitar o argumento de Léssio de que o credor tem o direito de cobrar pela
falta de seu dinheiro durante o período do empréstimo. Mas, por outro lado,
admite poderosas armas favoráveis à cobrança de juros, a saber, o risco e
o lucrum cessans. Chega a ampliar o conceito de risco
explicitamente e também amplia a cláusula do lucrum cessans, pois
permite que o credor inclua não apenas o lucro provável de seu empréstimo, mas
também a expectativa do lucro que poderia obter em uma aplicação alternativa.
Outro
autor importante desse mesmo período foi o filósofo e jurisconsulto genovês
Sigismundo Scaccia, cujo Tractatus de Commerciis et Cambiis foi publicado
em 1618 e reeditado com frequência na Itália, França e Alemanha, até cerca de
meados do século XVIII. O ensino de Scaccia é baseado principalmente no da
Escola de Salamanca e em Léssio, embora também muitas vezes ele se refira aos
escolásticos medievais. Sobre o valor dos bens, ele cita Covarrubias e
Azpilcueta no sentido de que as coisas valem menos quando são abundantes e mais
quando são escassas e argumenta que um artigo ser "abundante"
significa que muitas pessoas o ofertam para a venda para venda, e "escasso"
quando mais compradores de vendedores surgirem nos mercados. Em seu capítulo
sobre as bolsas estrangeiras, Scaccia menciona e endossa a explicação dada por
Soto para o prêmio cobrado sobre letras de câmbio negociadas na Antuérpia e em
Espanha e sustenta que a doutrina de Soto se aplica de uma forma muito lúcida
para as trocas entre França e Itália.
É
evidente que a teoria monetária da Escola de Salamanca espalhou-se por vários
países durante as décadas iniciais do século XVII e que continuou a ser
desenvolvida e aplicada nos principais tratados sobre Teologia e
Jurisprudência. Embora a maioria dos membros originais da Escola tenham sido
dominicanos, entre os escritores do século XVII que continuaram seu ensino
havia muitos jesuítas. Como moralistas práticos, os jesuítas eram muito
influentes naquele momento, uma vez que grande parte de seu trabalho estava no
confessionário. Assim, produziram um grande número de manuais para uso dos
confessores, em que muitas vezes discutiam problemas complicados de ética
comercial com linhas escolásticas.
Pode-se
supor que suas doutrinas tenham sido filtradas através dos leigos. Como
salienta Marjorie Grice-Hutchinson, "não
estou sugerindo que estes trabalhos tediosos constituíam a leitura favorita do
"honnête homm" e médio, mas só temos a quem recorrer em Pascal, em suas Cartas Provinciais,
para perceber como foi grande a influência dos teólogos jesuítas sobre a vida
comum e o pensamento na França naquele período".
Pascal
empregou toda a sua verve irônica atacando muitos dos escritores cuja obra
analisamos (ele dedica a Carta Oitava para impugnar a sua doutrina da
usura), e é evidente que, escrevendo em 1656, ele olhou para os nossos
escritores espanhóis e todas as suas obras como uma força viva e perigosa para
seus padrões. [pp. 160-163]
Por
sua vez, pensadores do calibre de Condillac, Turgot, Galiani e outros afirmaram
que sua própria ênfase na utilidade e raridade era uma novidade. Todos os três
escritores foram famosos por seu ensino, especialmente na Teologia e na
Jurisprudência e é difícil acreditar que não tinham lido nenhum dos
pós-escolásticos. Como filósofos do século XVIII, talvez tenham relutado em
reconhecer sua dívida para com os casuístas. Mas nenhuma relutância pode ser
estendida a Grotius, Pufendorf, ou Hutcheson. Pode-se supor, como Hutchinson,
que Galiani se deparou com os elementos essenciais da sua teoria do valor no
trabalho em alguns autores anteriores e que a inteligência e graça com que ele
expressa estas verdades antigas fez com que parecessem inovações para seus
contemporâneos. No entanto, a existência de uma teoria subjetiva do valor na
obra dos escolásticos tardios e seus sucessores pode ter pavimentado o caminho
para a recepção favorável concedida à grande obra de Galiani.
7.
A decadência do escolasticismo
Às
portas da Renascença, a Escolástica já se encontrava moribunda. Com o declínio
dos impérios português e espanhol, a filosofia medieval cristã praticamente
desapareceu, enquanto o cartesianismo, o positivismo e o agnosticismo kantiano
alcançavam o seu ápice.
O
chamado iluminismo, um movimento intelectual da elite
europeia do século XVIII, que procurou mobilizar o poder
da razão para reformar a sociedade e o conhecimento herdados da
tradição medieval, muitas vezes é apontado como sendo responsável pelo fim do
escolasticismo. O Iluminismo floresceu até cerca de 1790-1800, após o qual a
ênfase na razão deu lugar à ênfase na emoção e surgiu um movimento
contra-iluminista. No entanto, quando o movimento iluminista eclodiu,
praticamente já não existiam autores escolásticos. Apenas no final do século
XIX é que houve uma tentativa de resgatar o escolasticismo sob um prisma mais
moderno, principalmente com Jacques Maritain (1882-1973), um filósofo
francês de orientação católica e tomista, cujas obras influenciaram a
democracia cristã.
O
ataque fatal à Escolástica veio de dois campos contrastantes, um externo e o
outro interno, mas curiosamente aliados: o aumento dos grupos de protestantes
calvinistas e a Igreja, que a denunciou por sua suposta decadência e defeitos
de formação moral.
O
brilho dos argumentos pós-escolásticos para justificar a usura não impressionou
seus inimigos, nem mesmo com toda a escolástica jesuítica de "casuísmo", isto
é, de aplicar princípios morais, naturais e divinos para os problemas concretos
da vida quotidiana. Pode-se pensar que a tarefa da casuística deve ser
considerada importante e nobre, pois, se existem princípios morais gerais, por
que não deveriam ser aplicados à vida diária? Mas ambos os conjuntos de adversários
conseguiram rapidamente fazer da própria palavra "casuísmo" um termo
vulgarizado (o que acontece até hoje), a obediência estrita a rigorosos
preceitos morais e a imposição de dogmas ultrapassados e "reacionários".
Essa
dupla aliança externa e interna contra a Escolástica teve efeitos muito mais
profundos do que a discussão sobre a usura. Na raiz do catolicismo como
religião, Deus pode ser compreendido pelas faculdades do homem, ou seja, não
apenas por meio da fé, mas também pela razão e os sentidos. O protestantismo e,
especialmente, o calvinismo, coloca Deus severamente fora das faculdades do
homem e considera, por exemplo, modalidades sensoriais de amor do homem por
Deus, como pinturas ou esculturas, como constituindo atos de idolatria e
blasfêmia, que precisam ser eliminados para limpar o caminho para a única
comunicação adequada com Deus, que seria a pura fé na revelação. A ênfase
tomista na razão como meio de apreender a lei natural de Deus e até mesmo
aspectos da lei divina choca-se com a ênfase protestante na fé na vontade
arbitrária de Deus.
A
tendência protestante básica, com raras exceções, era opor-se a qualquer lei
natural para derivar Ética ou Filosofia Política a partir do uso da razão do
homem, pois o homem era muito pecaminoso e corrupto em sua razão e seus
sentidos, uma personificação da corrupção e, portanto, só a fé pura em comandos
arbitrários, e revelada por Deus, era aceita como base para a ética humana.
Essa descrença por parte dos protestantes na lei natural os impedia de criticar
as ações do Estado. Com efeito, o calvinismo e até o luteranismo foram
incapazes de contestar o Estado absolutista que floresceu em toda a Europa
durante o século XVI e triunfou no século XVII.
Como
explica Rothbard:
Se
o protestantismo abriu o caminho para o Estado absoluto, os secularistas dos
séculos XVI e XVII, o abraçaram. Despojado de leis naturais críticas do Estado,
os novos secularistas, como o francês Jean Bodin, adotaram o Direito Positivo
do Estado como o único critério possível para a política. Assim como os
protestantes antiescolásticos exaltaram a vontade arbitrária de Deus como
fundamento da ética, os novos secularistas levantaram a vontade arbitrária do
Estado ao status de "soberano" incontestável e absoluto. No nível
mais profundo da questão de como sabemos o que sabemos, ou
"epistemologia", tomismo e escolástica sofreram os assaltos
contrastantes, mas aliados, dos defensores da "razão" e do
"empirismo". No pensamento tomista, a razão e o empirismo não estão
separados, mas aliados e entrelaçados. A verdade é construída pela razão em uma
base sólida na realidade empiricamente conhecida. O racional e o empírico foram
integrados em um todo coerente.
Rothbard
prossegue sua excelente narrativa escrevendo que na primeira parte do século
XVII, dois filósofos contrastantes conseguiram fortalecer o racionalismo e o
empirismo, que continuam a assolar o método científico até os dias atuais.
Foram eles o inglês Francis Bacon (1561-1626) e o francês René Descartes
(1596-1650). Descartes foi o campeão de uma "razão" dissecada matematicamente e
divorciada da realidade empírica, enquanto que Bacon foi o defensor de peneirar
incessantemente os dados empíricos. Rothbard afirma enfaticamente:
Tanto
o ilustre advogado inglês, que passou a se tornar Lord Chancellor (Lord
Verulam), Visconde do reino e juiz corrupto e o aristocrata francês tímido e
errante, concordaram em um ponto crucial e destrutivo: o rompimento da razão e
do pensamento a partir de dados empíricos. Assim, a partir de Bacon surgiu a
tradição inglês "empirista", mergulhada sem pensar em dados incoerentes, e de
Descartes a tradição puramente dedutiva e, por vezes, a tradição matemática do
"racionalismo" continental.
O
resultado foi que a lei natural, que antes integrava o racional com o empírico,
foi vítima de um verdadeiro assalto, resultando em uma mudança drástica e
sistemática no pensamento europeu no período "pré-moderno" (séculos
XVI e XVII, especialmente), Ocorreu em razão disso uma mudança radical nas
universidades.
Os
teólogos e filósofos que escreveram e pensaram sobre Economia, Direito e outras
disciplinas da ação humana durante os períodos medieval e renascentista eram
professores universitários. Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca, Roma e muitas
outras universidades foram as arenas para a produção intelectual e de combate
durante séculos. E mesmo as universidades protestantes do início do período
moderno eram centros de ensino do Direito Natural.
Mas
dos grandes teóricos e escritores dos séculos XVII e XVIII quase nenhum foi um
professor. Eram panfletários, empresários, errantes aristocratas, como
Descartes, funcionários públicos menores, como John Locke, e clérigos como o
bispo George Berkeley. Essa mudança de foco foi muito facilitada pela
invenção da imprensa por Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg
(1398-1468), que tornou muito menos dispendiosa a publicação de livros e
escritos e criou um mercado muito mais amplo para a produção intelectual. A
impressão foi inventada em meados do século XV e no início do século XVI
tornou-se possível, pela primeira vez, ganhar a vida como escritor
independente, com a venda de livros.
Uma
das consequências dessas mudanças foi o esfacelamento da Escolástica e do
tomismo do pensamento ocidental, facilitado pela substituição do latim – que na
Idade Média era o idioma em que todos escreviam – para o vernáculo de cada
país. Esse fato contribuiu para desfazer uma comunidade intelectual que até
então tinha uma linguagem comum. Os protestantes tiveram papel decisivo nessa
alteração, pois julgavam que a Bíblia deveria ser lida e estudada por todos na
linguagem que dominavam.
Por
fim, houve um verdadeiro ataque contra a Cia. de Jesus, que despontou em França
com o manual Escobar. O assalto foi liderado por um grupo de cripto-calvinistas
influentes dentro da Igreja Católica francesa, que desfecharam forte ataque
sobre o que diziam ser a "suposta frouxidão moral da Ordem dos Jesuítas". Essa
guerra aos jesuítas e sobre sua devoção à razão e à liberdade da vontade tinha
começado na Bélgica e foi acelerada no final do século XVI por Michael Bay,
chanceler da grande Universidade de Louvain. O bayanismo atacou
Leonardo Léssio e os jesuítas na faculdade. No início do século XVII, dois
discípulos de Bay, ex-alunos dos jesuítas, tomaram a defesa de sua causa, sendo
o mais importante Cornelius Jansen, fundador do movimento neocalvinista
jansenista, que se tornou extremamente poderoso na França. Jansen, como muitos
teólogos protestantes, instou abertamente a volta à pureza moral de Santo
Agostinho e das doutrinas cristãs dos séculos IV e V.
O
filósofo e matemático francês Blaise Pascal assumiu a causa jansenista com um
ataque aos jesuítas, particularmente Escobar, por seu suposto fracasso moral em
ser condescendente com a usura. Pascal ainda inventou um novo termo
popular, "escobarderie", com o qual denunciou a disciplina
importante da casuística como sendo evasiva e repleta de tergiversações. Outra
vítima da caneta venenosa de Pascal foi o austero jesuíta francês Etienne Bauny
que, em Somme des Pechez (1639), estendeu o enfraquecimento da
proibição da usura, indo longe demais — segundo Pascal — para justificar
taxas de juros superiores à taxa máxima permitida por decreto real, com o
argumento de que "os devedores as aceitaram voluntariamente". Embora os
jansenistas tenham sido condenados pelo Papa, a agitação indecente de Pascal
contra os jesuítas produziu um efeito considerável para ajudar a acabar com a
primazia do pensamento escolástico, pelo menos na França.
Em
suma, a visão de mundo humanista sofreu diversos ataques, vindos de
vários fronts e um dos muitos efeitos perversos dessas
críticas foi o que denomino de "desumanização" da Economia e das demais
ciências da ação humana, fenômeno que foi aguçado na primeira metade do século
XIX com o advento do positivismo de Auguste Comte. Um estrago quase que
irreparável e que a Escola Austríaca até hoje tenta neutralizar.
8.
Conclusões
Podemos
extrair conclusões gerais a partir de nosso estudo da teoria econômica da
Escola de Salamanca. A principal é que algumas das principais ideias da teoria
econômica moderna têm uma história mais longa do que muitas vezes se supõe.
Creio que o leitor que tenha despendido tempo para estudar aqueles antigos
tratados não pode deixar de ficar impressionado com a grande medida de acordo
sobre os problemas fundamentais da teoria econômica, que uniram os homens de
todos os países e períodos, vivendo em vários sistemas religiosos, culturais,
sociais e econômicos. Hutchinson, a esse respeito, cita Marshall. "As novas doutrinas têm complementado o
velho, o estenderam, desenvolveram, e às vezes o corrigiram, e muitas vezes
lhes deram um tom diferente ou uma nova distribuição de ênfase, mas muito
raramente o subverteram". [pp 165-166]
Muitas
vezes somos advertidos contra o pecado de desejarmos ler nossas próprias ideias
em trabalhos de escritores mais velhos. Muitas vezes, de fato, a literatura
econômica antiga agora parece remota sob o ângulo de nossas próprias formas de
pensamento e por isso não nos desperta muito interesse. Com isso a história das
doutrinas econômicas passa a ser considerada como um luxo, como algo supérfluo,
já que os refinamentos – especialmente os modelos matemáticos com sua elegância
- da teoria moderna deixam menos tempo para isso. Os economistas nos últimos
120 anos vêm apresentando uma lamentável tendência de desprezar os autores do
passado e isso vem se acelerando a partir da segunda metade do século XX,
quando as técnicas econométricas se desenvolveram rapidamente e os computadores
foram popularizados.
Com
isso, infelizmente, a Economia, uma ciência que lida claramente com a ação
humana no processo de mercado em condições de incerteza genuína passou a
receber tratamento semelhante ao de uma ciência exata. Um desastre.
Desumanizaram algo que é humano, sob o pretexto de estarem produzindo "ciência".
Mas
há certos eventos na história do pensamento econômico que são familiares para a
maioria dos estudantes. Sabemos, por exemplo, que a Saxônia foi o cenário de
uma controvérsia monetária famosa no século XVI, que a Itália foi o país com a
melhor teoria monetária e a pior política monetária no século XVII, que os
fisiocratas inventaram um esquema elaborado chamado de Tableau
Économique. E os britânicos sentem orgulho de Adam Smith, David Ricardo e
Alfred Marshall.
No
entanto, a literatura econômica pós-escolástica, particularmente a do século
XVII e XVIII, em Espanha, Portugal e na Itália, é tão extensa e interessante
que exige que lhe façamos justiça. É uma tarefa, sem dúvida, que temos que
cumprir se quisermos de fato re-humanizar a Ciência Econômica.
Creio
que, depois de tudo o que foi abordado no artigo sobre as ideias econômicas dos
escolásticos tardios, desejo apenas, primeiro, enfatizar que suas doutrinas
econômicas eram compatíveis com a da Escola Austríaca e, segundo, reforçar —
já que demonstrá-lo demandaria substancial pesquisa adicional — que suas
ideias influenciaram importantíssimos pensadores não escolásticos, como Turgot,
Galeani, Condilac, Say, Bastiat, Molinari, Rocher e, por fim,
Carl Menger.
Espero
que este despretensioso artigo tenha servido para deixar claro que foi no
ambiente da "Escolástica Tardia" que se produziram muitas importantes
concepções do jus-naturalismo e da ideia de Direito Internacional, além dos
tratados de Economia que viriam a influenciar a escola marginalista e o
liberalismo da Escola Austríaca nos séc. XIX e XX.
Por
isso, posso encerrar com as palavras de meu amigo Alejandro Chafuen que, na
conclusão de seu famoso livro Economia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de
Mercado, escreve:
Es imposible probar que todos lós escritos
de la escolástica tardia favorecían el libre mercado. Tampoco podemos concluir
diciendo que para ser um buen Cristiano hay que creer em la economia libre. El
hecho de que gente santa defienda uma cierta teoria no es garantia de certeza.
El análisis de lós escritos de estos autores sugiere que lós economistas
modernos defensores de la libertad econômica tienen para com ellos uma deuda
mayor de la que se imaginan. Lo mismo podemos decir de la sociedad libre. [p. 201]
E as últimas palavras de sua conclusão
são:
"La propriedad privada está fundamentada
em la libertad humana, que a su vez se desprende de la naturaleza humana que,
como toda naturaleza, es creada por Dios. La propriedad privada es um prerrequisito
esencial para El respeto de las libertades econômicas. La misma seguirá siendo
amenazada desde vários frentes y su defensa dependerá de uma nueva
generación de escolásticos, hombres de buena formación em El campo de la
filosofía moral y de lãs ciências sociales". [p. 202,
negrito meu]
O
que posso acrescentar a essas palavras de Chafuen, a não ser um "é verdade"
repleto de esperança nos jovens que cada vez se interessam mais pela Escola
Austríaca, a mais condizente com os valores da ética e da liberdade individual
dentre todas as Escolas de Pensamento Econômico?
É
verdade, Alex! Como escreveu São Paulo aos coríntios (II Cor 3,17): "Ubi
autem Spiritus Domini, ibi libertas". Esta frase do apóstolo dos
gentios, que escolhi como lema para minha página na Internet, significa que
onde estiver o Espírito do Senhor, aí estará também a liberdade.
Referências
bibliográficas:
CALZADA,
Gabriel.Las Orígines de la Escuela Austriaca, palestra proferida em
24/1/ 2008 na Universidade Francisco Marroquin, encontrada em:
http://www.newmedia.ufm.edu
CATHARINO,
Alex. Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política
de Santo Tomás de Aquino, Centro Interdisciplinar de Ética e Economia
Personalista - Cieep, Rio de Janeiro, sem data.
CHAFUEN, Alejandro A. Economia y
Etica: Raices Cristianas de la
Economia de Libre Mercado,Rialp, Madrid, 1991
GRICE-HUTCHINSON, Marjorie. The
School of Salamanca, Oxford at Clarendon Press, London, 1952, disponível na forma de iBook
em: www.mises.org.br
HOLCOMBE, Randall G. "The Great
Austrian Economists." Ludwig von Mises Institute, 1999, iBook.
IORIO,
Ubiratan J. Economia e Liberdade: A Escola Austríaca e a Economia
Brasileira, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1997 (2ª ed.)
LAURES, John, S.J. The
Political Economy of Juan de Mariana, New Yoork, Fordham University
Press, 1928, disponível em: www.mises.org em pdf.
ROTHBARD, Murray. Economic
Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspectiveon the History of Economic
Tought, vol. I, Elgar, 1995
SANTOS,
Renan. Escolástica: A filosofia durante a Idade Média, em:http://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/escolastica-a-filosofia-durante-a-idade-media.htm
SOTO,
Jesus H. A Escola Austríaca, S. Paulo, Instituto Mises Brasil, 2ª
ed, 2010, cap. 3