segunda-feira, 23 set 2013
1.
Introdução
O
primeiro capítulo do excelente livro editado por Randall G. Holcombe, "The Great Austrian Economists" (Ludwig
von Mises Institute, 1999, iBooks), escrito por Jesús Huerta de Soto, começa
com a seguinte frase:
A pré-história da escola austríaca de economia pode ser
encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis, mais especificamente em seus
escritos no período conhecido como o "Século de Ouro espanhol", que
decorreu de meados do século XVI até o século XVII.
E
prossegue:
Quem eram estes precursores intelectuais espanhóis da
Escola Austríaca de Economia? A maioria deles era formada por escolásticos que
ensinavam moral e teologia na Universidade de Salamanca, cidade espanhola
medieval localizada a 150 km a noroeste de Madri, perto da fronteira da Espanha
com Portugal. Esses escolásticos, principalmente dominicanos e jesuítas,
articularam a tradição subjetivista, dinâmica e libertária a que, duzentos e
cinquenta anos depois, Carl Menger e seus seguidores iriam dedicar tanta
importância. Talvez o mais libertário de todos os escolásticos, especialmente
em seus últimos trabalhos, tenha sido o padre jesuíta Juan de
Mariana. [pp. 41-73]
Soto
tem razão: de fato, Juan de Mariana, para os padrões de seu tempo e levando em
conta que era um padre, um jesuíta, foi um autêntico revolucionário. Neste
artigo, farei um pequeno resumo das contribuições dos chamados pós-escolásticos
para a teoria econômica e enfatizarei as ideias de Mariana. Não tenho nem
longinquamente a pretensão de ser original ao escrevê-lo. Trata-se, na verdade,
de um survey de alguns dos melhores e mais conhecidos
trabalhos sobre o tema da Escolástica Tardia, acrescido de algum material que
encontrei na Internet e que julguei confiável e de algumas reflexões pessoais
oriundas do interesse pela tradição e os desenvolvimentos mais recentes da
Escola Austríaca, que tem direcionado meus trabalhos, pesquisas, aulas e
palestras ao longo das últimas duas décadas.
2.
Aspectos históricos
Infelizmente,
é um lugar comum, sempre que alguém se refere à Idade Média, se ouvir falar em
trevas e barbárie, quase sempre com uma expressão de escárnio e desprezo. Mas,
ao contrário do mau odor que exala este preconceito herdado dos iluministas,
tanto a Filosofia quanto a ciência moderna devem muito — muito mais do que se
pode imaginar! — à Idade Média e à sua monumental Escolástica.
Ao
final do século V, o que restava do outrora poderoso Império Romano era uma
multidão dispersa de povos bárbaros e alguns fragmentos da cultura clássica,
que só não desapareceram devido aos esforços dos monges copistas e de alguns
grandes pensadores. Os primeiros e conturbados séculos da Idade Média europeia
foram dominados pelo pensamento de Santo Agostinho de Hipona, responsável por
solidificar a fé cristã, calcado em elementos platônicos. O Bispo de Hipona
influenciou pensadores como Boécio, Dionísio, o Areopagita e Escoto Erigena.
Na
verdade, Dionísio usava este pseudônimo em alusão à vicissitude narrada por São
Lucas no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, onde escreveu que Paulo pregou em
Atenas, no Areópago, para uma elite do grande mundo intelectual grego, mas no
final a maior parte dos ouvintes mostrou-se desinteressada e afastou-se,
ridicularizando-o; todavia alguns, poucos, diz-nos São Lucas, aproximaram-se de
Paulo, abrindo-se à fé e entre estes poucos Lucas oferece-nos dois nomes:
Dionísio, membro do Areópago e uma mulher, Damaris.
No
século V, Pseudo-Dionísio — como também ficou conhecido — escreveu o Corpus
Areopagiticum, com o intuito de colocar a sabedoria grega ao serviço do
Evangelho e ajudar no encontro entre a cultura e a inteligência gregas e o
anúncio de Cristo, fazendo com que o pensamento grego se encontrasse com o
anúncio da Boa Nova de São Paulo. Já Escoto Erígena, nasceu na Irlanda em 810 e
foi um expoente do "renascimento carolíngio", bem como da tradição das artes
liberais que fundamentaram o ensino medieval e também concentrou seus estudos
nas relações entre a filosofia grega e os princípios
do Cristianismo.
A palavra
"escolástica" tem duplo significado. O primeiro, um tanto limitado,
quando se refere apenas às disciplinas ministradas
nas escolas medievais, a saber, o trívio, formado por
gramática, retórica e dialética e o quadrívio, composto por
aritmética, geometria, astronomia e música. E o segundo tem conotação mais
ampla, reportando-se à linha filosófica adotada pela Igreja na Idade Média.
Esta modalidade de pensamento era essencialmente cristã e procurava respostas
que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo clero, o depositário das
verdades espirituais e o orientador das ações humanas virtuosas.
O
dicionário Aurélio on line apresenta três acepções:
1.
Fil. Doutrina e filosofia cristã da Idade Média, que procurou combinar a
razão platônica e aristotélica com a fé e a revelação dos Evangelhos,
alcançando seu auge com Santo Tomás de Aquino; ESCOLASTICISMO.: "Cria...
uma Universidade de ciências maiores, pedindo ao Pe. Francisco de Borja que lhe
mande bons mestres para as cadeiras de teologia, escolástica, positiva,
moral..." (Antero de Figueiredo, D. Sebastião)
2. P.ext. Teol. Qualquer
doutrina ou filosofia fundamentadas a partir de uma crença religiosa
3. P.ext. Pej. Qualquer doutrina
que pregue o tradicionalismo ou o pensamento ortodoxo.
[F.:
Do lat. scholastica.]
É
difícil delimitar a origem da Escolástica porque ela nunca se estabeleceu como
uma doutrina filosófica restrita. Havia no ambiente católico uma divergência
muito viva em questões teológicas e foi esse espírito de debate que acabou
dando origem à corrente de atividades intelectuais, artísticas e filosóficas a
que se convencionou chamar de Escolástica.
No
século XII, essa valorização do saber refletiu-se na criação das universidades
e na ascensão de uma classe letrada e o monge agostiniano Santo Anselmo é
apontado como tendo sido o primeiro escolástico, seguido por Pedro Abelardo,
Pedro Lombardo e Hugo de São Vítor.
Na
segunda metade do século XII chegaram às universidades as traduções hispânicas
de versões árabes das obras de Aristóteles, um grande choque cultural que mudou
o rumo do Ocidente e que conduziu a Escolástica para a sua "Era de
Ouro", no século XIII, quando Santo Agostinho deixou de ser o eixo do pensamento
cristão e a Filosofia Natural aristotélica cresceu diante da Teologia.
Os
professores universitários passaram a ter fama e importância, os livros —
sempre escritos em latim — se multiplicaram e com isso o modelo de ciência
antiga começou a ser questionado e a desabar. Robert Grosseteste e seu
discípulo Roger Bacon lançaram as primeiras sementes da pesquisa científica,
idealizando experimentos. As universidades de Paris, Oxford e Colônia
testemunharam os grandes debates e o surgimento de obras gigantescas. É o século
do grande São Tomás de Aquino, de Alberto Magno, de São Boaventura e de Duns
Scotus.
A
grande contribuição da Escolástica à Filosofia foi sua preocupação com o rigor
metodológico e dialético. Os estudantes das principais universidades precisavam
passar por exames que envolviam disputas orais de argumentos, sempre regidas
pela aplicação da lógica formal e a supervisão rigorosa de um mestre.
Como
sugere Renan Santos,
Pedro Abelardo se inspirou nesse método dialético e o
aprofundou em sua obra Sic et Non, que virou referência para a resolução de
problemas a partir da sucessão de afirmações e negações sobre um mesmo tópico.
Para isso, era imprescindível uma definição satisfatória dos termos, que
evitasse ambiguidades. Tiveram muito sucesso nesse sentido os escolásticos,
chegando a criar palavras totalmente novas a partir das raízes do grego e do
latim, o que acabou resultando no latim escolástico. A própria evolução das
ciências se deve em grande parte ao desenvolvimento desse rigor terminológico.
Entre
os renascentistas e iluministas, criou-se a ideia de que a Escolástica havia se
submetido a Aristóteles como um servo feudal se curva ao seu mestre, o que os
estudos do século XX mostraram ser uma afirmação absurda. A verdade é que, com
a chegada da imensa obra de Aristóteles, foram surgindo naturalmente dois
partidos nas universidades: os tradicionais, agostinianos e platônicos, que não
admitiam a ideia de ciências autônomas em relação à teologia, e os
"modernos" aristotelistas, fascinados a tal ponto com a investigação
da Filosofia Natural que buscaram tornar as ciências independentes da Teologia.
Essa
discussão levou a grandes e memoráveis contendas acerca da relação entre fé e
razão, cuja ruptura definitiva ficaria a cargo do franciscano inglês Guilherme de
Ockam, no século XIV.
Na
assim denominada "querela dos universais", na esteira das traduções que
abalaram o Ocidente, encontrou-se a Isagoga, obra do filósofo
antigo Porfírio, expondo o problema dos universais em Aristóteles. Iniciava-se
assim um dos mais longos debates da história da Filosofia. Recorrendo ainda a
Santos:
Quando olhamos para duas maçãs, vemos algo de comum
entre elas? Ou elas são completamente diferentes? Há uma substância
"maçã" separada delas, ou ela está em cada uma das maçãs? Ou a substância
"maçã" não existe de forma alguma? Perguntas desse tipo é que
dirigiram o debate dos universais.
Os
ultrarrealistas, de índole platônica, como Santo Anselmo, Odo de Tournai e
Bernard de Chartres, diziam que sim, que há uma substância, um universal
"maçã" separado de todas as maçãs e que lhes serve de modelo. Os
realistas, moderados e mais aristotélicos, como Pedro Abelardo, João de
Salisbury e o grande Aquinate, afirmavam que o universal "maçã"
existe somente nas maçãs e nunca fora delas. Já os nominalistas, como Roscelin
e Guilherme de Ockham, negariam que houvesse qualquer universal, já que
"maçã" não seria nada mais que um simples nome. Esta discussão
ecoaria no confronto entre empiristas e racionalistas modernos.
Porém,
historicamente, podemos dividir a Escolástica em três períodos: Escolástica
Primitiva (sécs. IX ao XII); Escolástica Média (sécs. XII e XIII) e Escolástica
Tardia (sécs. XIV e XV e início do séc. XVI).
A
Escolástica Primitiva teve início com o renascimento carolíngio e com o ressurgimento
da escola que então se verificou e que desenvolveu um método de ensino que
posteriormente foi elaborado pormenorizadamente, formado pelas quaestiones (problemas
sujeitos a exame) e disputationes (exposição de argumentos a
favor ou contra). As grandes disputas centravam-se em torno de dois problemas
fundamentais: o problema da relação entre a fé e razão, ou seja, entre
dialéticos partidários da razão e antidialéticos, defensores da fé e o problema
da polêmica dos universais.
Na
Escolástica Média surgiram diversos tipos de escolas, incluindo as primeiras
universidades e iniciou-se um intenso trabalho de tradução, especialmente na
Península Ibérica, que possibilitou o conhecimento dos clássicos gregos e
latinos, a Filosofia Natural e a Metafísica de Aristóteles, bem como as obras
de seus estudiosos gregos e árabes.
No
século XIII, com a introdução, em Paris, da filosofia árabe, representada pela
contribuição de Averróis, um especialista em Aristóteles, iniciou-se uma
tendência denominada averroísmo latino, que preconizava a defesa da
tese da dupla verdade, isto é, de que fé e razão são verdades independentes e
igualmente legítimas. Com a criação das ordens franciscana e dominicana, a
Escolástica alcançou o seu ponto culminante com a obra de São Tomás de Aquino,
da escola dominicana, que adaptou, seguindo de perto Averróis, a filosofia de
Aristóteles ao pensamento cristão. De outra parte, a escola franciscana, de que
São Boaventura é o expoente maior, inspirou-se no neoplatonismo e na filosofia
de Santo Agostinho.
A
Escolástica Tardia (o período dos pós-escolásticos) começou no séc. XIV e se
caracterizou pela separação definitiva entre a Filosofia e a Teologia. A
Teologia manteve-se em vigor na escola franciscana, representada por Escoto e
Occam e a Filosofia concentrou-se no empírico, no particular e no sensível. A
Escolástica conheceu então um notável florescimento na Espanha e em Portugal,
comandado pelas ordens dominicana e jesuíta, orientadas para a nova
interpretação que se fez da teoria de São Tomás na Itália, especialmente por
Santo Antonino de Florença e São Bernardino de Siena. O dominicano Francisco de
Vitoria fundou uma escola em Salamanca, em que se formaram notáveis
teólogos tomistas que, juntamente com os jesuítas de Coimbra e
Francisco Suárez, em polêmica com o escotismo e o nominalismo, defenderam uma
síntese escolástica tradicional, porém de acordo com as novas tendências de
pensamento da época.
No
final desta série de artigos, você encontrará um apêndice mostrando o quadro
evolutivo da Filosofia Moral e Política da Idade Média, desde São Justino de
Cesareia, o Mártir (100-165) até nosso "herói" Juan de Mariana. O quadro foi
elaborado cuidadosamente por Alex Catharino para o II Ciclo sobre Pensamento
Ético, Político e Econômico, módulo I: Antiguidade e Idade Média, A Filosofia
Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, curso promovido pelo Centro
Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep, em parceria com a
Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.
3.
A Escola de Salamanca e os pós-escolásticos (ou escolásticos tardios)
Feita
essa pequena digressão histórica, imprescindível para os fins a que me proponho
neste artigo, posso agora ir ao em tema principal, a Escolástica Tardia, os
pós-escolásticos com destaque para Juan de Mariana e sua importância para a
Escola Austríaca de Economia.
Murray
Rothbard, em seu excepcional tratado de História do Pensamento Econômico, "Economic Thought Before Adam Smith - An
Austrian Perspective on the History of Economic Thought", dedica o
capítulo 4 do volume I a uma minuciosa descrição da importância daqueles
pensadores dos séculos XIV, XV e XVI. Inicia mostrando que a grande depressão de longo
prazo do século XIV e da primeira metade do século XV começou a dar lugar
para a recuperação econômica na segunda metade do século XV. Espanha e
Portugal, os exploradores líderes dos novos continentes, tornaram-se estados
nações dominantes e impérios no século XVI.
Lentamente,
porém inexoravelmente, as cidades-estados italianas, que representavam a
vanguarda do progresso econômico e da cultura no período do Renascimento,
começaram a ser deixadas para trás frente ao avanço do poder econômico e
político ibérico derivado da era dos grandes descobrimentos.
Mas,
junto com a expansão comercial veio a inflação, alimentada pelo aumento imenso
de ouro e prata levados para a Europa pelos espanhóis das minas
recém-descobertas do hemisfério ocidental. Uma triplicação aproximada do
estoque da espécie na Europa resultou em um século de inflação, com os preços
também triplicando durante o século XVI. O novo dinheiro fluiu pela primeira
vez no Velho Continente no principal porto espanhol de Sevilha e, em seguida,
espalhou-se para os outros países da Europa, e a geografia dos aumentos de
preços seguiu, naturalmente, em conformidade com essa expansão.
Inglaterra
e França cresceram em força junto com as outras nações atlânticas da Europa
ocidental, o que foi bastante facilitado pelo fim da Guerra dos Cem Anos entre
os dois países, que na verdade teve a duração de 116 anos, de 1337 a 1453. As
doutrinas do estado absoluto, anteriormente limitadas em grande parte aos
teóricos e governantes das cidades estados italianas, agora se espalhavam por
todos os estados e nações da Europa. O absolutismo triunfou em toda a Europa no
início do século XVII e Rothbard mostra que essa vitória foi alimentada pela
ascensão do protestantismo e, um pouco mais tarde, pelo secularismo, a partir
do século XVI.
Para
compreendermos mais precisamente o ethos dos pós-escolásticos,
é conveniente visualizarmos, na tabela seguinte, como evoluiu o pensamento
econômico desde os escolásticos medievais até os nossos dias.

O
nominalismo, derivado da Escolástica Medieval, consistia em uma abordagem
reducionista de problemas sobre a existência e natureza de entidades abstratas
e opunha-se ao platonismo e ao realismo. Enquanto o platônico defende um
enquadramento ontológico em que coisas como propriedades, gêneros, relações,
proposições, conjuntos e estados de coisas são assumidos como primitivos e
irredutíveis, o nominalista, por definição e maneira de enxergar o mundo, nega
a existência de entidades abstratas e procura mostrar que o discurso sobre
essas entidades é analisável em termos do discurso sobre concretos particulares
da experiência comum. Seus autores mais expressivos foram Guilherme de Ockam
(1290-1350), Jean Buridan de Bethune (1300-1358), Nicole Oresme (1325-1382) e
Heinrich von Langenstein (1325-1397).
Apesar
de influenciarem também o positivismo e François Quesnay (o fundador do fisiocratismo)
e de se oporem ao tomismo, os nominalistas contribuíram para o desenvolvimento
da Escolástica Tardia ao abordarem, principalmente, três temas: a teoria do
valor (dando a ela enfoque subjetivista); a defesa do livre comércio e a defesa
da propriedade privada (a defesa franciscana de que se deve abrir mão das
riquezas exige que se possuam essas riquezas, o que conduz à defesa do direito
de propriedade). Oresme defendeu também a conhecida "Lei de Gresham", segundo a
qual "a moeda má expulsa a moeda boa", bem como o padrão-metálico.
Vejamos
agora o quadro sinóptico que mostra as origens a as influências dos
escolásticos tardios, com alguns aspectos das ideias defendidas por seus
principais nomes. Trata-se de um quadro semelhante ao elaborado por Alejandro
Chafuen, em seu celebrado livro Economia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Libre
Mercado, de 1991.

Escolástica
Tardia na Itália
São
Bernardino de Siena (1380-1444), franciscano, sistematizou, na Toscana, a
herança intelectual econômica de São Tomás, sendo o primeiro teólogo, depois de
Olivi, a escrever um livro inteiro dedicado à teoria econômica escolástica. Os
pontos principais de sua doutrina foram a defesa da propriedade privada (embora
a considerasse artificial e não natural), a defesa do empreendedorismo, a
defesa do livre comércio, a legitimação dos lucros, a teoria do valor, em
que o "preço justo" é definido como sendo o preço de mercado e os perigos
da tributação excessiva.
Santo
Antonino de Florença (1389-1459), um discípulo de S. Bernardino, seguiu a mesma
análise de seu preceptor, mas enfatizou um ponto crucial da filosofia do
Aquinate, o de que qualquer transação no mercado traz benefícios mútuos para
ambas as partes, pois estas resultam melhores do que antes, em termos de
ficarem mais satisfeitas.
Ambos
foram contra a usura, contudo, o que contribuiu para manter esse aspecto da
teoria econômica obscuro, cercado de mistérios e quase que proibido.
Escolástica
Tardia na Espanha
Especialmente
em Salamanca, a partir dos sécs. XV e XVI, diversos autores, inicialmente
dominicanos e mais tarde jesuítas, abordaram temas ligados à teoria monetária,
propriedade privada, juros, inflação e tributação. Vejamos sucintamente (já que
nosso personagem principal neste artigo é Juan de Mariana) como avançaram.
Surge
a Escolástica Tardia em Espanha com Francisco de Vitoria (1495-1560), em
Salamanca, com seus escritos sobre Direito Internacional e suas explicações
morais e econômicas da Summa. Os principais pontos de Vitoria
são:o "preço justo" é o preço de mercado e a propriedade privada, a justiça e a
paz resultam de trocas voluntárias realizadas entre os agentes.
Martin
de Azpilcueta, o "Doutor Navarro" (1493-1586), também dominicano, professor em
Salamanca e Coimbra, desenvolveu as bases do conceito de "preferência
intertemporal" e da "Teoria Quantitativa da Moeda", defendeu preços livres da
interferência dos governos, alertou que emissões de moeda sem lastro provocam
distorções na economia e na sociedade e criticou o sistema de reservas
fracionárias dos bancos.
Diego
de Covarrubias y Leiva (1512-1577), Bispo de Segóvia, alertou para os efeitos
nocivos de diminuições no teor metálico das moedas, criticou o sistema de
reservas fracionárias dos bancos e chegou a esboçar uma teoria subjetiva do
valor.
Luís
Saravia de la Calle
(século XVI) defendeu, em seu Instrucción de Mercaderes, publicado
em 1544, as ações dos comerciantes como legítimas e antecipou o que Menger
escreveu em 1871, que não são os custos que determinam os preços, mas os preços
que determinam os custos:
Los que miden
el justo precio de la cosa según el trabajo, costas y peligros del que trata o
hace la mercadería yerran mucho; porque el justo precio nace de la abundancia o
falta de mercaderías, de mercaderes y dineros, y no de las costas, trabajos y
peligros.
Francisco
de García, em Tratado Utilíssimo de Todos los Contractos, Quantos
en los Negocios Humanos se Pueden Ofrecer, publicado em
Valência em 1583, sustentou que a utilidade marginal dos bens, inclusive a da
moeda, é decrescente.
Luís
de Molina (1531-1601) advogou a liberdade de preços, criticou as regulações
excessivas e as distorções provocadas pelas políticas de preços máximos e
mínimos, desenvolveu o conceito de lucros cessantes (lucros perdidos de
investimentos) e foi o primeiro a perceber, em 1597, que os depósitos bancários
fazem parte da oferta monetária.
Genónimo
Castillo de Bobadilla, em Politica para Corregidores y Señores de
Vassallos (Madri, 1597), defendeu a competição dinâmica como um
processo e não como o estudo de casos de equilíbrio, antecipando Menger, Mises,
Lachmann e Kirzner em 400/500 anos!
Juan
de Mariana (1535-1624), sobre o qual vamos escrever pormenorizadamente no
próximo artigo, jesuíta, "politicamente incorreto" e considerado por alguns
estudiosos como o mais importante dos escolásticos tardios, destacou que: a
propriedade privada é muito importante para o desenvolvimento econômico e
social; monopólios são como que impostos cobrados sem autorização, pois
distorcem os preços e empobrecem o povo; o orçamento público deve ser
equilibrado, já que os déficits orçamentários resultam em mais impostos ou em
emissão de moeda, com a consequente inflação; escreveu um tratado sobre a
inflação (atualíssimo), mostrando o que é, sua causa e suas consequências;
criticou o poder monopolístico de emitir moeda detido pelos governos; criticou
também as regulamentações de preços; argumentou que o intervencionismo viola a lei
natural e prejudica a coordenação do corpo social; antecipou Hayek em 400 anos,
ao sustentar que a informação é dispersa e subjetiva e que não se deve
centralizá-la, sob pena de perda da solidez da ordem social; e mostrou
que o valor da moeda depende de sua quantidade e de sua qualidade
Francisco
Suarez (1548-1617) e Juan de Salas (1553-1612) argumentaram sobre a
impossibilidade de modelos de equilíbrio: "el precio que habrá mañana
nel mercado solo Dios lo conosce".
E
Juan de Lugo (1583-1660) defendeu a natureza dinâmica dos mercados como
processos, criticando a visão teórica que os enxergava como algo estático e em
equilíbrio.
As
ideias desses e de outros autores espalharam-se pela Europa, especialmente, no
início, na Itália e em Portugal. Leonardo Léssio (1554-1623) recompilou
os escritos econômicos de Salamanca e os difundiu nos Países Baixos e Antonio
de Escobar y Mendoza (1589-1669) os difundiu em França.
A
Escolástica Tardia gerou dois ramos:
1. Ramo Norte (anglo-saxão)
2. Ramo Continental (menos conhecido)
Leonardo
Léssio (na Bélgica), Grocio e Pufendorf influenciaram John Locke, bem como
Hutchinson e, portanto, Adam Smith (este, com uma mescla de subjetivismo e
objetivismo) e, daí, a "mainstream economics".
Posteriormente,
a partir do século XVIII, foram publicados trabalhos muito importantes para a
genealogia da Escola Austríaca, dos quais podemos destacar os de:
Jacques
Turgot (1727-1781), teólogo, político e ministro, um subjetivista que defendeu
o livre comércio e mostrou que o papel do estado não deve ser o de controlar as
atividades econômicas; debuxou o princípio da utilidade marginal decrescente;
elaborou uma crítica aos modelos de equilíbrio e formulou uma Teoria do Capital
que antecipou o austríaco Eugene von Böhm-Bawerk em quase 200 anos.
Ferdinando
Galiani (1728-1787), que escreveu, aos 22 anos, o tratado Della
Moneta e resolveu o famoso "paradoxo da água e dos diamantes",
explicando-o com o conceito de escassez relativa.
Etienne
Bonnot, o Abade de Condillac (1714-1780), publicou La Commerce et
le Gouvernment - Considerés relativement l´Un à l´Autre,
em 1776 (mesmo ano de publicação de A Riqueza das Nações, de
Adam Smith), sob os auspícios de Turgot, que era então ministro. Condillac
antecedeu o que Bastiat escreveu na primeira metade do século seguinte, ao
analisar as diferenças entre os efeitos "que se veem" e os efeitos "que se
devem prever"
Esses
três autores possuem diversos pontos comuns: o indivíduo como eixo central; o
subjetivismo metodológico; o estudo da Teologia; a defesa do livre comércio e a
crítica aos "agregados econômicos" (que dois séculos depois ficariam conhecidos
como Macroeconomia).
Por
sua vez, Turgot, Galiani e Condillac influenciaram Jean Baptiste Say, Bastiat e
Molinari em França, bem como os autores alemães da Escola de Valor de
Uso, como Wilhelm Roscher, da Universidade de Leipzig, mestre de Carl
Menger (que dedicou o seu Princípios de Economia Política a
ele e o cita 17 vezes elogiosamente ao longo da obra, que sustentava que
os preços é que determinavam os custos (e não o oposto)
Parece
interessante, à guisa de parêntesis, observarmos as citações sobre diversos
autores de Menger, o fundador da Escola Austríaca de Economia: Hermann (outro
pensador alemão, 12 vezes, todas elogiosamente); Adam Smith (12 vezes,
11 para criticá-lo); Say (11 vezes, 10 para criticá-lo), bem como,
sempre elogiando, Condillac, Galeani e Covarrubia que, como vimos, eram
escolásticos tardios.
Observando
como evoluiu o pensamento econômico desde São Tomás e principalmente com os
escolásticos tardios, vemos claramente praticamente todas as características da
Escola Austríaca de Economia:
-
subjetivismo
-
individualismo
-
inflação e dos ciclos econômicos como fenômenos causados por distúrbios
monetários
-
propriedade privada
-
mercados como processos
-
princípio da ação humana
-
interdisciplinaridade
-
preferências intertemporais
-
união entre Ética, Política e Economia (interdisciplinaridade)
-
ordens espontâneas
-
liberdade de preços
-
livre comércio
-
informações insuficientes, dispersas e interpretadas subjetivamente
-
tempo real (não newtoniano)
Como
vemos, São Tomás é a origem de tudo e o mundo latino e católico não tem por que
padecer de qualquer complexo de inferioridade quando se trata de Teoria
Econômica.
No
próximo artigo: Juan de Mariana, um
austríaco politicamente incorreto