O
principal trabalho teórico de Marx é sua grande obra em três volumes, sobre o
capital. Os fundamentos de sua teoria da exploração estão expostos no primeiro
destes volumes, o único a ser publicado em vida do autor em 1867. O segundo, editado postumamente por Engels, em
1885, está em total harmonia com o primeiro, quanto ao conteúdo. Menos
harmônico é sabidamente o terceiro volume, publicado novamente após um intervalo
de vários anos, em 1894. Muitas pessoas, entre elas o autor destas linhas,
acreditam que o conteúdo do terceiro volume seja incompatível com o do
primeiro, e vice-versa. Mas, como o próprio Marx não admitiu isso e, ao contrário,
também no terceiro volume exigiu que se considerassem totalmente válidas as
doutrinas do primeiro, a crítica deve considerar as teses expostas nesse
primeiro livro expressão da verdadeira e permanente opinião de Marx. Mas é
igualmente válido — e necessário — abordar no momento adequado as doutrinas
do terceiro volume, como ilustração e crítica.
A
teoria de Marx sobre o valor
Marx
parte do principio de que o valor de toda mercadoria depende unicamente da
quantidade de trabalho empregada em sua produção. Marx coloca este princípio no ápice de sua
teoria, dedicando-lhe uma explicação extensa e fundamentada.
O
campo de pesquisa que Marx se propõe a examinar para entender a origem do valor
dos bens fica limitado originalmente às mercadorias, o que, para Marx, não
significa todos os bens econômicos, mas apenas os produtos de trabalho criados
para o mercado. Ele começa
com uma análise da mercadoria. A
mercadoria é, por um lado, uma coisa útil cujas qualidades satisfazem algum
tipo de necessidade humana, um valor de uso; por outro, constitui o suporte
material do valor de troca. A análise
passa agora para este último.
O valor de troca aparece de imediato como a relação
quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo se trocam com
valores de uso de outro tipo, relação essa que muda constantemente, conforme
tempo e lugar.
Portanto,
parece ser algo casual. Mas nessa troca deveria haver algo de permanente, que
Marx trata de pesquisar. E faz isso na sua conhecida maneira dialética:
Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Seja
qual for a sua relação de troca, pode-se representá-la sempre numa equação
segundo a qual uma quantidade dada de trigo é igualada a uma quantidade de
ferro, p. ex., um moio de trigo x quintais de ferro. O que significa essa
equação? Que existe algo de comum, do mesmo tamanho, em duas coisas diferentes,
ou seja, em um moio de trigo e x quintais de ferro. Portanto, as duas coisas se
equiparam a uma terceira, que em si não é nem uma nem outra. Cada uma das duas,
portanto, na medida em que tem valor de troca, deve ser reduzível a essa
terceira.
Dialética
do valor em Marx
Esse elemento comum não pode ser uma característica
métrica, física, química, ou outra característica natural das mercadorias. Suas
características corporais, aliás, só entram em consideração na medida em que as
tornam úteis, e são, portanto, valores de uso. Mas, por outro lado, a relação
de troca das mercadorias aparentemente se caracteriza por se abstrair dos
valores de uso dessas mercadorias. Segundo ela, o valor de uso vale tanto
quanto qualquer outro, desde que apareça na proporção adequada. Ou, como diz o
velho Barbon: "... Um tipo de mercadoria é tão bom quanto outro, quando seu
valor de troca for igual. Não existe distinção entre coisas do mesmo valor de
troca.' Como valores de uso, as mercadorias são principalmente de qualidades
diferentes, como valores de troca só podem ser de quantidades diferentes e,
portanto, não contêm um átomo sequer de valor de uso.
Abstraindo o valor de uso das mercadorias, elas guardam
ainda uma característica, a de serem produtos de trabalho. No entanto, também o
produto de trabalho já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos o seu
valor de uso, também estaremos abstraindo os elementos e formas corporais que o
tornam valor de uso. Não se trata mais de mesa, ou casa, ou fio, ou outra coisa
útil. Todas as suas características sensoriais estão apagadas. Ele também já
não é o produto da marcenaria, ou da construção, ou da tecelagem, ou de
qualquer trabalho produtivo. Com o caráter utilitário dos produtos de trabalho,
desaparece o caráter utilitário dos trabalhos neles efetuados, e somem também
as diversas formas concretas desses trabalhos. Eles já não se distinguem entre
si [p.283]: reduziram-se todos ao mesmo trabalho humano, trabalho humano
abstrato.
Consideremos agora o que restou dos produtos de trabalho.
Nada resta deles senão aquela mesma objetualidade espectral, mera gelatina de
trabalho humano indistinto, ou seja, o gasto de forças de trabalho humanas sem
consideração pela forma desse dispêndio. Essas coisas apenas nos dizem que na
sua produção se gastou força de trabalho humano, se acumulou trabalho humano.
Como cristais dessa substancia social comum, eles são valores.
Assim
se define e se determine o conceito de valor. Segundo a teoria dialética, ele não é idêntico
ao valor de troca, mas relaciona-se com ele de maneira íntima e inseparável:
ele é uma espécie de destilado conceitual do valor de troca. Para usar as
palavras do próprio Marx, ele é "a parte comum que aparece na relação de
troca ou valor de troca das mercadorias". O reverso é igualmente válido: "o valor
de troca é a expressão necessária ou a manifestação do valor".
O
"tempo de trabalho socialmente necessário" de Marx
Marx
passa da determinação do conceito de valor para a exposição de sua medida e
grandeza. Como o trabalho é a substância
do valor, consequentemente a grandeza do valor de todos os bens se mede pela
quantidade de trabalho neles contido, ou seja, pelo tempo de trabalho. Mas não aquele tempo de trabalho individual,
que aquele indivíduos que produziu o bem casualmente precisou gastar, mas o
"tempo de trabalho necessário para produzir um valor de uso, nas condições
sociais normais de produção disponíveis, e com o grau de habilidade e intensidade
do trabalho possíveis nessa sociedade".
Só a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o
tempo de trabalho socialmente necessário para produzir um valor de uso é que
determina o seu valor. A mercadoria isolada vale aqui como exemplo médio da sua
espécie. Mercadorias contendo igual quantidade de trabalho, ou que podem ser
produzidas no mesmo tempo de trabalho, têm por isso o mesmo valor. O valor de
uma mercadoria relaciona-se com o valor de outra mercadoria, da mesma forma que
o tempo de trabalho necessário para a produção de uma delas se relaciona com o
tempo de trabalho necessário para a produção da outra. Como valores, todas as
mercadorias são apenas medidas de tempo de trabalho cristalizado.
A
"lei do valor" de Marx
De
tudo isso, deduz-se o conteúdo da grande "lei de valor", que é
"imanente à troca de mercadorias" e que domina as condições de troca.
Essa lei significa — e só pode
significar — que as mercadorias se trocam entre si segundo as condições de
trabalho médio, socialmente necessário, incorporado nelas. Há outras formas de expressão da mesma lei: nas
palavras de Marx, as mercadorias "se trocam entre si conforme seus
valores" ou "equivalente se troca com equivalente".
É
verdade que, em casos isolados, segundo oscilações momentâneas de oferta e
procura, também aparecem preços que estão acima ou abaixo do valor. Só que essas "constantes oscilações dos
preços de mercado (...) se compensam, se equilibram mutuamente e se reduzem ao
preço médio, que é sua regra interna".
Porém, no longo prazo, "nas relações de troca casuais e sempre
variáveis", "o tempo de trabalho socialmente necessário acaba sempre
se impondo à força, como lei natural imperante".
Marx
considera essa lei como sendo a "eterna lei de troca de mercadorias",
como "racional", como "a lei natural do equilíbrio". Os casos eventuais em que mercadorias são
trocadas a preços que se desviam do seu valor são considerados
"casuais" em relação à regra, e os próprios desvios devem ser vistos
como "infração da lei de troca de mercadorias".
A
"mais-valia" de Marx
Sobre
essa base da teoria do valor, Marx ergue a segunda parte de sua doutrina, a sua
famosa doutrina da mais-valia. Ele
examina a origem dos ganhos extraídos pelos capitalistas dos seus capitais. Os capitalistas tomam determinada soma em
dinheiro, transformam-na em mercadorias, e, por meio da venda, transformam as
mercadorias em mais dinheiro — com ou sem um processo intermediário de
produção. De onde vem esse incremento,
esse excedente da soma de dinheiro obtida em relação à soma originalmente
aplicada, ou, como diz Marx, essa mais-valia"?
Marx
começa limitando as condições do problema, na sua peculiar maneira de exclusão
dialética. Primeiro, ele explica que a
mais-valia não pode vir do fato de que o capitalista, como comprador, compra as
mercadorias regularmente abaixo do seu valor e, como vendedor, regularmente as
vende acima do seu valor. Portanto, o
problema é o seguinte: "Nosso ( ... ) dono do dinheiro tem de comprar as
mercadorias pelo seu valor, e vendê-las pelo seu valor, mas, mesmo assim, no
fim do processo, tem de extrair delas um valor mais alto do que o que nelas
aplicou. . . Essas são as condições do
problema. Hic Rhodus, hic salta!" [Aqui é
Rodes, então salte aqui!" (N. do T.)]
Marx
encontra a solução dizendo que existe uma mercadoria cujo valor de uso tem a
singular faculdade de ser uma fonte de valor de troca. Essa mercadoria é a 'capacidade de trabalho',
ou seja, a força de trabalho. Ela é
posta à venda no mercado sob dupla condição: a primeira, de que o trabalhador
seja pessoalmente livre — caso contrário não seria a força de trabalho o que
ele estaria vendendo, mas ele próprio, sua pessoa, como escravo; e a segunda,
de que o trabalhador seja destituído "de todas as coisas necessárias para
a realização de sua força de trabalho", pois, se delas dispusesse, ele
preferiria produzir por conta própria, pondo à venda seus produtos, em vez de
sua força de trabalho.
Pela
negociação com essa mercadoria, o capitalista obtém a mais-valia. O processo se
dá da seguinte forma:
O
valor da mercadoria "força de trabalho" depende, como o de qualquer
outra mercadoria, do tempo de trabalho necessário para sua produção, o que,
nesse caso, significa que depende do tempo de trabalho necessário para produzir
todos os alimentos que são indispensáveis à subsistência do trabalhador. Se, por exemplo, para os alimentos necessários
para um dia for preciso um tempo de trabalho de seis horas, e se esse tempo de
trabalho corporificar três moedas de ouro, a força de trabalho de um dia poderia
ser comprada por três moedas de ouro. Caso o capitalista tenha efetuado essa compra,
o valor de uso da força de trabalho lhe pertence, e ele a concretiza fazendo o
trabalhador trabalhar para ele. Se o
fizesse trabalhar apenas as horas diárias corporificadas na força de trabalho
pelas quais ele teve de pagar quando comprou essa força de trabalho (seis
horas), não existiria a mais-valia.
Ou
seja, as seis horas de trabalho não podem atribuir ao produto em que elas se
corporificam mais do que três moedas, uma vez que foi isso que o capitalista
pagou como salário. Contudo, os
capitalistas não agem dessa maneira. Mesmo
que tenham comprado a força de trabalho por um preço que corresponde só a seis
horas de trabalho, fazem o trabalhador trabalhar o dia todo. Então, no produto criado durante esse dia, se
corporificam mais horas de trabalho do que as que o capitalista pagou, o que
faz o produto ter valor mais elevado do que o salário pago. A diferença é a
"mais-valia", que fica para o capitalista.
Tomemos
um exemplo: suponhamos que um trabalhador possa tecer em seis horas cinco
quilos de algodão em fio, com o valor de três moedas. Suponhamos, também, que esse algodão tenha
custado vinte horas de trabalho para ser produzido e que, por isso, tem um
valor de dez moedas; suponhamos, ainda, que o capitalista tenha despendido, por
meio de sua máquina de tecer utilizada para estas seis horas de tecelagem, o
correspondente a quatro horas de trabalho, que representam um valor de duas moedas.
Assim, o valor total dos meios de produção consumidos na tecelagem (algodão +
máquina de tecer) equivalerá a doze moedas, correspondentes a vinte e quatro
horas de trabalho. Se acrescentarmos a
isso as seis horas do trabalho de tecelagem, o tecido pronto será pois, no
total, produto de trinta horas de trabalho, e terá, por isso, valor de quinze moedas.
Se o capitalista deixar o trabalhador
trabalhar apenas seis horas por dia, a produção do fio vai custar-lhe 15 moedas:
10 pelo algodão, 2 pelo gasto dos instrumentos, 3 em salário. Não existe mais-valia.
Muito
diferente seriam as circunstâncias se este mesmo capitalista fizesse o
trabalhador cumprir 12 horas diárias. Nestas 12 horas, o trabalhador
processaria 10 quilos de algodão, nos quais já teriam sido corporificadas,
anteriormente, 40 horas de trabalho, com um valor de 20 moedas. Os instrumentos teriam consumido o produto de
8 horas de trabalho, no valor de 4 moedas, mas o trabalhador acrescentaria ao
material bruto um dia de 12 horas de trabalho, ou seja, faria surgir um valor
adicional de 6 moedas. As despesas do
capitalista — 20 moedas pelo algodão, 4 moedas pelo gasto dos instrumentos, e
3 pelo salário — somariam apenas 27 moedas. Iria, então, sobrar uma "mais-valia"
de 3 moedas.
Portanto,
para Marx, a mais-valia é uma consequência do fato de o capitalista fazer o
trabalhador trabalhar para ele sem pagamento durante uma parte do dia. O dia de trabalho se divide, assim, em duas
partes: na primeira, o "tempo de trabalho necessário", o trabalhador
produz seu próprio sustento, ou o valor deste; por essa parte do trabalho, ele
recebe o equivalente em forma de salário. Durante a segunda parte, o "superávit em
tempo de trabalho", ele é "explorado", e produz a
"mais-valia", sem receber qualquer equivalente por ela.
Portanto, o capital não é apenas controle sobre o trabalho,
como diz Adam Smith. É essencialmente
controle sobre o trabalho não-pago. Toda
a mais-valia, seja qual for a forma em que vá se cristalizar mais tarde —
lucro, juro, renda etc. — é, substancialmente, materialização de trabalho não pago.
O segredo da autovalorização do capital
reside no controle que exerce sobre determinada quantidade de trabalho alheio
não pago.
Marx
escolheu um método de análise defeituoso
Alguém
que busque uma verdadeira fundamentação da tese em questão poderá encontrá-la por
meio de dois caminhos naturais: o empírico e o psicológico. O primeiro caminho nos leva a simplesmente
examinar as condições de troca entre mercadorias, procurando ver se nelas se
espelha uma harmonia empírica entre valor de troca e gasto de trabalho. O outro — com uma mistura de indução e
dedução muito usada em nossa ciência — nos leva a analisar os motivos
psicológicos que norteiam as pessoas nas trocas e na determinação de preços, ou
em sua participação na produção. Da
natureza dessas condições de troca poderíamos tirar conclusões sobre o
comportamento típico das pessoas. Assim,
descobriríamos, também, uma relação entre preços regularmente pedidos e
aceitos, de um lado, e a quantidade de trabalho necessária para produzir
mercadorias de outro. Mas Marx não
adotou nenhum desses dois métodos naturais de investigação. É muito interessante constatar, em seu
terceiro volume, que ele próprio sabia muito bem que nem a comprovação dos
fatos nem a análise dos impulsos psicológicos que agem na
"concorrência" teriam bom resultado para a comprovação de sua tese.
Marx
opta por um terceiro caminho de comprovação, aliás, um caminho bastante
singular para esse tipo de assunto: a prova puramente lógica, uma dedução
dialética tirada da essência da troca.
Marx
já havia encontrado no velho Aristóteles que "a troca não pode existir sem
igualdade, e a igualdade não pode existir sem a comensurabilidade". Marx adota esse pensamento. Ele imagina a troca de duas mercadorias na
forma de uma equação, deduz que nas duas coisas trocadas — portanto igualadas
— tem de existir "algo comum da mesma grandeza", e conclui
propondo-se a descobrir o que é essa coisa em comum, à qual as coisas
equiparadas podem ser reduzidas como valores de troca.
Fatos
que antecedem uma troca devem evidenciar antes desigualdade do que igualdade
Gostaria
de intercalar aqui um comentário. Mesmo
a primeira pressuposição — a de que na troca de duas coisas existe uma
"igualdade" das duas, igualdade essa que se manifesta, o que, afinal,
não significa grande coisa — me parece um pensamento muito pouco moderno e
também muito irrealista, ou, para ser bem claro, muito precário. Onde reinam igualdade e equilíbrio perfeitos
não costuma surgir qualquer mudança em relação ao estado anterior. Por isso, quando no caso da troca tudo termina
com as mercadorias trocando de dono, é sinal de que esteve em jogo alguma
desigualdade ou preponderância que forçou a alteração.
Exatamente
como as novas ligações químicas que surgem a partir da aproximação entre
elementos de corpos: muitas vezes o "parentesco" químico entre os
elementos do corpo estranho aproximado não é forte, mas é mais forte do que o
"parentesco" existente entre os elementos da composição anterior. De fato, a moderna ciência econômica é unânime
em dizer que a antiga visão escolástico-teológica
da "equivalência" de valores que se trocam é incorreta. Mas não darei maior importância a esse
assunto, e volto-me agora ao exame crítico daquelas operações lógicas e
metódicas através das quais o trabalho termina por surgir como aquela coisa em
"comum" à qual as coisas equiparadas se poderiam reduzir.
Método
intelectual errôneo de Marx
Para
a sua busca desse algo em "comum" que caracteriza o valor de troca,
Marx procede da seguinte maneira: coteja as várias características dos objetos
equiparados na troca e, depois, pelo método de eliminação das diferenças,
exclui todas as que não passam nessa prova, até restar, por fim, uma única
característica, a de ser produto de trabalho.
Conclui, então, que seja esta a característica comum procurada.
É
um procedimento estranho, mas não condenável. É estranho que, em vez de testar a
característica de modo positivo — o que teria levado a um dos dois métodos
antes comentados, coisa que Marx evitava —, ele procure convencer-se, pelo
processo negativo, de que a qualidade buscada é exatamente aquela, pois nenhuma
outra é a que ele procura, e a que ele procura tem de existir. Esse método pode levar à meta desejada quando
é empregado com a necessária cautela e integridade, ou seja, quando se tem,
escrupulosamente, o cuidado necessário para que entre realmente, nessa peneira
lógica, tudo o que nela deve entrar para que depois não se cometa engano em
relação a qualquer elemento que porventura fique excluído da peneira.
Mas
como procede Marx?
Desde
o começo, ele só coloca na peneira aquelas coisas trocáveis que têm a
característica que ele finalmente deseja extrair como sendo a
"característica em comum", deixando de fora todas as outras que não a
têm. Faz isso como alguém que, desejando
ardentemente tirar da urna uma bola branca, por precaução coloca na urna apenas
bolas brancas. Ele limita o campo da sua
busca da substância do valor de troca às "mercadorias". Esse conceito, sem ser cuidadosamente
definido, é tomado como mais limitado do que o de "bens" e se limita
a produtos de trabalho, em oposição a bens naturais. Consequentemente, fica
óbvio que, se a troca realmente significa uma equiparação que pressupõe a
existência de algo "comum da mesma grandeza", esse "algo
comum" deve ser procurado e encontrado em todas as espécies de bens
trocáveis: não só nos produtos de trabalho, mas também nos dons da natureza,
como terra, madeira no tronco, energia hidráulica, minas de carvão, pedreiras,
jazidas de petróleo, águas minerais, minas de ouro etc.[1]
Excluir,
na busca do algo "comum" que há na base do valor de troca, aqueles
bens trocáveis que não sejam bens de trabalho é, nessas circunstâncias, um pecado
mortal metodológico. É como se um físico
que quisesse pesquisar o motivo de todos os corpos terem uma característica
comum, como o peso, por exemplo, selecionasse um só grupo de corpos, talvez o
dos corpos transparentes, e, a seguir, cotejasse todas as características
comuns aos corpos transparentes, terminando por demonstrar que nenhuma das
características — a não ser a transparência — pode ser causa de peso, e
proclamasse, por fim, que, portanto, a transparência tem de ser a causa do
peso.
A
exclusão dos dons da natureza (que certamente jamais teria ocorrido a
Aristóteles, pai da ideia da equiparação na troca) não pode ser justificada,
principalmente porque muitos dons naturais, como o solo, são dos mais
importantes objetos de fortuna e comércio. Por outro lado, não se pode aceitar
a afirmação de que, em relação aos dons naturais, os valores de troca são
sempre casuais e arbitrários: não só existem preços eventuais para produtos de
trabalho, como também, muitas vezes, os preços de bens naturais revelam
relações nítidas com critérios ou motivos palpáveis. É conhecido que o preço de compra de terras
constitui um múltiplo da sua renda segundo a porcentagem de juro vigente. É também certo que, se a madeira no tronco ou
o carvão na mina obtêm um preço diferente, isso decorre da variação de
localização ou de problemas de transporte e não do mero acaso.
Marx
se exime de justificar expressamente o fato de haver excluído do exame anterior
parte dos bens trocáveis. Como tantas
vezes, também aqui sabe deslizar sobre partes espinhosas de seu raciocínio com
uma escorregadia habilidade dialética: ele evita que seus leitores percebam que
seu conceito de "mercadoria" é mais estreito do que o de "coisa
trocável". Para a futura limitação
no exame das mercadorias, ele prepara com incrível habilidade um ponto de
contato natural, através de uma frase comum, aparentemente inofensiva, posta no
começo do seu livro: "A riqueza das sociedades em que reina a produção
capitalista aparece como uma monstruosa coleção de mercadorias." Essa afirmação é totalmente falsa se
entendermos o termo "mercadoria" no sentido de produto de trabalho, que o
próprio Marx lhe confere mais tarde. Pois
os bens da natureza, incluindo a terra, são parte importante e em nada
diferente da riqueza nacional. Mas o
leitor desprevenido facilmente passa por essas inexatidões, porque não sabe que
mais tarde Marx usará a expressão "mercadoria" num sentido muito mais
restrito.
Aliás,
esse sentido também não fica claro no que se segue a essa frase. Ao contrário, nos primeiros parágrafos do
primeiro capitulo fala-se alternadamente de "coisa", de "valor
de uso", de "bem" e de "mercadoria", sem que seja
traçada uma distinção nítida entre estes termos. "
A
utilidade de uma coisa", escreve ele na p. 10, "faz dela um valor de
uso". "A mercadoria. . . é um valor de uso ou bem". Na p. 11,
lemos: "o valor de troca aparece... como relação quantitativa... na qual
valores de uso de uma espécie se trocam por valorem de uso de outra."
Note-se
que aqui se considera primordialmente no fenômeno do valor de troca também a
equação 'valor de uso = bem'. E com a
frase "examinemos a coisa mais de perto", naturalmente inadequada
para anunciar o salto para outro terreno, mais estreito, de análise, Marx
prossegue: "Uma só mercadoria, um
'moio' de trigo, troca-se nas mais diversas proporções por outros
artigos." E ainda: "tomemos
mais duas mercadorias" etc. Aliás,
nesse mesmo parágrafo ele volta até com a expressão "coisas", e logo
num trecho muito importante, em que diz que "algo comum da mesma grandeza
existe em duas coisas diferentes" (que são equiparadas na troca).
A
falácia de Marx consiste em uma seleção tendenciosa de evidências
No
entanto, na p. 12, Marx prossegue na sua busca do "algo comum" já
agora apenas para o "valor de troca das mercadorias", sem chamar a
atenção, com uma palavra que seja, para o fato de que isso estreitará o campo
de pesquisa, direcionando-o para apenas uma parcela das coisas trocáveis.
Logo
na página seguinte (p. 13), ele abandona de novo essa limitação, e a conclusão,
a que há pouco havia chegado para o campo mais restrito das mercadorias, passa
a ser aplicada ao círculo mais amplo dos valores de uso dos bens. "Um
valor de uso ou bem, portanto, só tem um valor, na medida em que o trabalho humano
abstrato se materializa ou se objetiva nele!"
Se,
no trecho decisivo, Marx não houvesse limitado sua pesquisa aos produtos de
trabalho, mas tivesse também procurado o "algo comum" entre os bens
naturais trocáveis, ficaria patente que o trabalho não pode ser o elemento
comum. Se Marx houvesse estabelecido
essa limitação de maneira clara e expressa, tanto ele quanto seus leitores
infalivelmente teriam tropeçado nesse grosseiro erro metodológico. Teriam sorrido desse ingênuo artifício,
através do qual se "destila", como característica comum, o fato de
"ser produto de trabalho", pesquisando num campo do qual antes foram
indevidamente retiradas outras coisas trocáveis que, embora comuns, não são
"produto do trabalho".
Só
seria possível lançar mão deste artifício da maneira como o fez — ou seja,
sub-repticiamente — com uma dialética ríspida, passando bem depressa pelo
ponto espinhoso da questão. Expresso
minha admiração sincera pela habilidade com que Marx apresentou de maneira
aceitável um processo tão errado, o que, sem dúvida, não o exime de ter sido
inteiramente falso.
Continuemos.
Por
meio do artifício acima descrito, Marx conseguiu colocar o trabalho no
jogo. Através da limitação artificial do
campo de pesquisa, o trabalho se tomou a característica "comum". No entanto, além dele, há outras
características que deveriam ser levadas em conta, por serem comuns. Como afastar essas concorrentes?
Marx
faz isso por meio de dois raciocínios, ambos muito breves, e ambos contendo um
gravíssimo erro de lógica
No
primeiro, Marx exclui todas as "características geométricas, físicas,
químicas ou quaisquer outras características naturais das mercadorias". Isso porque "suas características físicas
só serão levadas em conta na medida em que as tornam úteis, portanto as
transformam em valores de uso. Mas por
outro lado, a relação de troca das mercadorias aparentemente se caracteriza
pela abstração de seus valores de uso". Pois "dentro dela (da relação de troca)
um valor de uso cabe tanto quanto outro qualquer, desde que exista aí em
proporção adequada".
O
que diria Marx do argumento que segue? Em um palco de ópera, três cantores, todos
excelentes — um tenor, um baixo e um barítono —, recebem, cada um, um salário
de 20.000 moedas por ano. Se alguém
perguntar qual é a circunstância comum que resulta na equiparação de seus
salários, respondo que, quando se trata de salário, uma boa voz vale tanto
quanto outra: uma boa voz de tenor vale tanto quanto uma boa voz de baixo, ou
de barítono, o que importa é que a proporção seja adequada. Assim, por poder ser,
"aparentemente", afastada da questão salarial, a boa voz não pode ser
a causa comum do salário alto.
É
claro que tal argumentação é falsa. É
igualmente claro também que é incorreta a conclusão a que Marx chegou, e que foi
por mim aqui transcrita. As duas sofrem
do mesmo erro. Confundem a abstração de
uma circunstância em geral com a abstração das modalidades específicas nas
quais essa circunstância aparece. Em
nosso exemplo, o que é indiferente para a questão salarial é apenas a
modalidade específica da boa voz, ou seja, se se trata de voz de tenor, baixo
ou barítono. Mas não a boa voz em si.
Da
mesma forma, para a relação de troca das mercadorias, abstrai-se da modalidade
específica sob a qual pode aparecer o valor de uso das mercadorias, quer sirvam
para alimentação, quer sirvam para moradia ou para roupa. Mas não se pode abstrair do valor de uso em si. Marx deveria ter deduzido
que não se pode fazer abstração desse último, pelo fato de que não existe valor
de troca onde não há valor de uso. Fato
que o próprio Marx é forçado a reconhecer repetidamente.[2]
Mas
coisa pior acontece com o passo seguinte dessa cadeia de argumentação. "Se abstrairmos do valor de uso das
mercadorias", diz Marx textualmente, "resta-lhes só mais uma
característica: a de serem produtos de trabalho". Será mesmo? Só mais uma característica? Acaso bens com valor de troca não têm, por
exemplo, outra característica comum, qual seja, a de serem raros em relação à
sua oferta? Ou de serem objetos de
cobiça e de procura? Ou de serem ou
propriedade privada ou produtos da natureza?
E
ninguém diz melhor nem mais claramente do que o próprio Marx que as mercadorias
são produtos tanto da natureza quanto do trabalho: Marx afirma que "as
mercadorias são combinação de dois elementos, matéria-prima e trabalho", e
conclui dizendo que "o trabalho é o pai (da riqueza) e a terra é sua
mãe".
Por
que, pergunto eu, o princípio do valor não poderia estar em qualquer uma dessas
características comuns, tendo de estar só na de ser produto de trabalho? Acresce que, a favor dessa última hipótese,
Marx não apresenta qualquer tipo de fundamentação positiva. A única razão que apresenta é negativa, pois
diz que o valor de uso, abstraído, não é princípio de valor de troca. Mas essa argumentação negativa não se aplica,
com igual força, a todas as outras características comuns, que Marx ignorou?
E
há mais ainda! Na mesma p. 12, em que Marx abstraiu da
influência do valor de uso no valor de troca, argumentando que um valor de uso
é tão importante quanto qualquer outro, desde que exista em proporção adequada,
ele nos diz o seguinte sobre o produto de trabalho:
Mas também o produto de trabalho já se transformou em
nossas mãos. Se abstrairmos do seu valor
de uso, abstrairemos também dos elementos materiais e das formas que o tornam
valor de uso. Ele já não será mesa, casa
ou fio, ou outra coisa útil. Todas as
suas características sensoriais serão eliminadas. Ele não será produto de trabalho em
marcenaria, construção ou tecelagem, ou outro trabalho produtivo. O caráter utilitário dos trabalhos
corporificados nos produtos de trabalho desaparece se desaparecer o caráter
utilitário destes produtos de trabalho, da mesma forma que desaparecem as
diversas formas concretas desse trabalho: elas já não se distinguem; são
reduzidas a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato.
Será
que se pode dizer, de modo mais claro e explícito, que, para a relação de
troca, não apenas um valor de uso, mas uma espécie de trabalho, ou produto de
trabalho, "vale tanto quanto qualquer outro, desde que exista na proporção
adequada"? E que se pode aplicar ao
trabalho exatamente o mesmo critério em relação ao qual Marx antes pronunciou
seu veredito de exclusão contra o valor de uso? Trabalho e valor de uso têm, ambos, um aspecto
quantitativo e outro qualitativo. Assim
como o valor de uso é qualitativamente diverso em relação a mesa, casa ou fio,
assim também são qualitativamente diferentes os trabalhos de marcenaria, de
construção ou de tecelagem. Por outro
lado, trabalhos de diferentes tipos podem ser diferenciados em função de sua
quantidade, enquanto é possível comparar valores de uso de diferentes tipos
segundo a magnitude do valor de uso. É
absolutamente inconcebível que circunstâncias idênticas levem, ao mesmo tempo,
à exclusão de alguns elementos e à aceitação de outros!
Se,
por acaso, Marx houvesse alterado a sequência de sua pesquisa, teria excluído o
trabalho com o mesmo raciocínio com que exclui o valor de uso. Com o mesmo raciocínio com que premiou o
trabalho, proclamaria, então, que o valor de uso, por ser a única
característica que restou, é aquela característica comum tão procurada. A partir daí poderia explicar o valor como uma
"cristalização do valor de uso".
Creio
que se pode afirmar, não em tom de piada, mas a sério, que nos dois parágrafos
da p. 12 onde se abstrai, no primeiro, a influência do valor de uso e se
demonstra, no segundo, que o trabalho é o "algo comum" que se
buscava, esses dois elementos poderiam ser trocados entre si sem alterar a
correção lógica externa. E que, sem
mudar a estrutura da sentença do primeiro parágrafo, se poderia substituir
"valor de uso" por "trabalho e produtos de trabalho", e na
estrutura da segunda colocar, em lugar de "trabalho", o "valor
de uso"!
Assim
é a lógica e o método com que Marx introduz em seu sistema o princípio
fundamental de que o trabalho é a única base do valor. Julgo totalmente impossível que essa ginástica
dialética fosse a fonte e a real justificativa da convicção de Marx. Um
pensador da sua categoria — e considero-o um pensador de primeiríssima ordem —,
caso desejasse chegar a uma convicção própria, procurando com olhar imparcial a
verdadeira relação das coisas, jamais teria partido por caminhos tão tortuosos
e antinaturais. Seria impossível que ele
tivesse, por mero e infeliz acaso, caído em todos os erros lógicos e
metodológicos acima descritos, obtendo, como resultado não conhecido nem
desejado, essa tese do trabalho como única fonte de valor.
Creio
que a situação real foi outra. Não
duvido de que Marx estivesse sinceramente convencido de sua tese. Mas os motivos de sua convicção não são
aqueles que estão apresentados em seus sistemas. Ele acreditava na sua tese como um fanático
acredita num dogma. Sem dúvida, foi dominado
por ela por causa das mesmas impressões vagas, eventuais, não bem controladas
pelo intelecto, que antes dele já tinham desencaminhado Adam Smith e David Ricardo,
e sob influência dessas mesmas autoridades. E ele, certamente, jamais alimentou a menor
dúvida quanto à correção dessa tese. Seu
princípio tinha, para ele próprio, a solidez de um axioma. No entanto, ele teria de prová-lo aos
leitores, o que não conseguiria fazer nem empiricamente nem segundo a
psicologia que embasa a vida econômica.
Voltou-se,
então, para essa especulação lógico-dialética que estava de acordo com sua
orientação intelectual. E trabalhou, e
revolveu os pacientes concertos e premissas, com uma espécie de admirável destreza,
até obter realmente o resultado que desejava e que já de antemão conhecia, na
forma de uma conclusão externamente honesta.
Conforme
vimos acima, Marx teve pleno sucesso nessa tentativa de fundamentar
convincentemente sua tese, enveredando pelos caminhos da dialética. Mas será
que teria obtido algum amparo se tivesse seguido aqueles caminhos específicos
que evitou, ou seja, o empírico e o psicológico?
Leia também: A teoria marxista da exploração e a realidade
[1] Karl Knies
objeta com muito acerto contra Marx: "Na exposição de Marx não há nenhum motivo
pelo qual a equação 1 "moio" de trigo = x quintais de madeira
produzida na floresta não permita uma segunda equação, também válida, que diga:
1 "moio" de trigo = w quintais de madeira virgem = y acres de terra
virgem = z acres de terra cultivada com prados naturais." (Das Geld, Iª
ed. p. 121;1 2ª ed p. 157).
[2] Por
exemplo, na p. 15, final: "Por fim, nenhuma coisa pode ter valor sem ser
objeto de uso. Se for inútil, o trabalho nela contido será inútil, não valerá
como trabalho (sic!), e por isso não constituirá valor."
Já Karl Knies chamara atenção para o erro lógico do
texto. Veja-se Das Geld, Berlim, 1873, p. 123 ss. (2ª ed. p. 160 ss).
Estranhamente, Adler (Grundlagen der Karl Marxschen Kritik, Tübingen, 1887, p.
211 ss) entendeu mal meu argumento, quando me censura dizendo que "boas
vozes" não são mercadorias no sentido marxista. Para mim, não se tratava
de considerar "boas vozes" como bens econômicos, segundo a lei
marxista de valor, mas sim de dar o exemplo de um silogismo que revela o mesmo
erro de Marx. Eu poderia muito bem escolher outro exemplo, que não tivesse
nenhuma relação com o terreno econômico. Por exemplo, poderia ter demonstrado
que, segundo a lógica marxista, o "algo comum" está em haver colorido
em sabe-Deus-o-quê, mas não em haver uma mistura de várias cores. Pois uma
mistura de cores — por exemplo, branco, azul, amarelo, preto, violeta — vale
para a qualificação "colorido" o mesmo que a mistura de verde,
vermelho, laranja, azul etc., desde que as cores apareçam em proporção adequada.
Portanto, vamo-nos abstrair, no momento, das cores e das misturas de cor!