quinta-feira, 28 mar 2013
O
"acordo do Chipre" — que é como o arranjo tem sido amplamente
rotulado
pela mídia — pode representar o penúltimo ato do colapso que está ocorrendo em
câmera lenta do sistema bancário de reservas fracionárias. Este colapso começou, na prática, com a
implosão das instituições de poupança e empréstimo dos EUA no final dos anos
1980.
[N.
do T.: as Savings
and loan association são instituições financeiras americanas que captam
fundos — e pagam juros aos seus investidores — para investi-los
principalmente em hipotecas, e que podem também oferecer depósitos em conta-corrente
e outros serviços bancários. A crise desse setor começou em 1986 e só acabou em
1995].
Esta
tendência continuou com as crises monetárias do México em 1994, do Sudeste
Asiático em 1997, da Rússia em 1998 e da Argentina em 2001, crises estas nas quais
o sistema bancário de reservas fracionárias teve um papel decisivo. O deslindamento do sistema bancário de
reservas fracionárias se tornou visível até mesmo para correntistas comuns dos
países desenvolvidos durante o colapso financeiro de 2008, o qual desencadeou
algumas corridas bancárias a algumas das maiores e mais veneradas instituições
financeiras do mundo (Northern Rock, Countrywide Financial, Bear Stearns, Lehman
Brothers, Merrill Lynch, Fannie Mae, Freddie Mac, Washington Mutual, Wachovia,
Citigroup e AIG). O colapso total só foi
evitado porque o Federal Reserve concedeu um pacote de socorro multitrilionário
(US$16 trilhões) aos bancos americanos e também aos estrangeiros.
No
entanto, de uma forma ainda mais intensa do que a inédita crise financeira de
2008, os recentes eventos no Chipre podem ter desferido o golpe moral no sistema
bancário de reservas fracionárias. Um
sistema bancário de reservas fracionárias só pode continuar operando
normalmente enquanto seus correntistas tiverem a plena confiança de que,
independentemente das agruras financeiras que venham a acometer o banco no qual
seu dinheiro está "depositado", eles sempre poderão retirar todo o seu dinheiro
deste banco, a qualquer momento e sem nenhuma perda. Em um sistema de reservas fracionárias,
sistema este em que bancos operam tecnicamente insolventes (pois nunca têm
dinheiro para honrar todos os seus
compromissos), a confiança é tudo. Se a
confiança se esvair, o sistema entra em colapso.
Desde
a Segunda Guerra Mundial, os seguros governamentais sobre depósitos bancários,
lastreados pelos poderes de criação de dinheiro do banco central, passaram a
ser vistos como a inabalável garantia que sanciona esta confiança. Com efeito, por causa desta 'garantia', o
sistema bancário de reservas fracionárias passou a ser visto pelos correntistas
como sendo, na prática, um sistema bancário com 100% de reservas — afinal,
desde a criação dos seguros para os depósitos, os correntistas passaram a agir
com a tranquilidade de quem acredita que seu dinheiro de fato está "lá no
banco". "Na pior das hipóteses", pensam
eles, "os bancos centrais irão simplesmente criar o dinheiro do nada".
Perversamente,
as várias crises envolvendo o sistema bancário de reservas fracionárias que
citei acima apenas reforçaram esta crença entre os correntistas, pois os bancos
que apresentavam problemas sempre foram prontamente socorridos — especialmente
os grandes e menos estáveis. Daí surgiu a
doutrina do "grande demais para quebrar".
Por
causa desta doutrina, correntistas cujos depósitos estavam acima do valor
garantido pelo governo — bem como pessoas que compraram títulos emitidos por
bancos que querem se recapitalizar — quase sempre foram integralmente
restituídos quando algum grande banco falia, pois era senso comum que a
confiança em todo o sistema bancário era algo frágil e evanescente, que se
quebraria e se dissiparia completamente mesmo que somente uma grande
instituição falisse.
Voltando
ao acordo do Chipre. De um ponto de
vista pró-livre mercado, ele está longe do ideal. A solução livre-mercadista não envolveria
restrições a saques (€300 por dia), não imporia controles de capital fascistas
sobre residentes domésticos (pessoas estão sendo revistadas nos aeroportos,
pois não se pode sair do país com mais de €3.000) e investidores estrangeiros, não limitaria o
uso do dinheiro (transações totais com qualquer tipo de cartão será limitadas a
€5.000 por mês) e não obrigaria os pagadores de impostos do restante da zona do
euro a contribuir com o pacote de socorro de €10 bilhões para os bancos do
Chipre.
Não
obstante, o acordo de fato transmite uma salutar mensagem para os correntistas
e credores de bancos de todo o mundo.
Tal mensagem está em obrigar tanto os correntistas cujos depósitos estão
acima do valor segurado (acima de €100.000) quanto os compradores de títulos
bancários a arcarem com parte do custo do pacote de socorro.
Estes
credores que compraram títulos dos dois maiores bancos do Chipre perderão tudo,
e já foi anunciado
que os grandes correntistas do banco estatal Laiki (que foi liquidado) poderão
também perder absolutamente tudo. Já os
grandes correntistas do Banco do Chipre perderão algo entre 30 e 60% de seus
depósitos. Os pequenos correntistas de
ambos os bancos, cujas contas estão totalmente seguradas — pois são menores
que €100.000 — não perderão nada.
O
bom resultado de tudo isso é que os correntistas, tanto os segurados quanto os
não-segurados, na Europa e ao redor do mundo, irão se tornar muito mais
cautelosos ou até mesmo mais desconfiados ao lidar com bancos de reservas
fracionadas. Eles estarão bem mais
propensos a correr aos bancos e sacar seu dinheiro ao mais mínimo sinal ou
rumor de instabilidade. Isso irá induzir
os bancos a alterar radicalmente as fontes de financiamento que eles utilizam
para conceder empréstimos. A esperança é
que eles diminuam a criação de dinheiro (que, em última instância, utiliza o
dinheiro depositado em depósitos à vista por correntistas) e passem a utilizar
mais a emissão de títulos e até mesmo seu capital próprio.
Como
foi relatado
na terça-feira, tal mudança de postura já vem sendo esperada por muitos
analistas:
Uma possível consequência do acordo de ontem é a reação em
cadeia que pode ser gerara sobre a maneira como os bancos se financiam,
disseram analistas. Bancos tipicamente
se financiam por meio de alguma combinação entre depósitos de correntistas,
lançamento de ações, e emissão de diversos tipos de títulos, os quais são
lastreados por um conjunto de ativos de alta qualidade que vão para o balancete
do financiador do banco.
A consequência do socorro ao Chipre pode ser a de que os
bancos passarão a ser mais propensos a utilizar títulos condicionalmente
conversíveis — contingent
convertible bonds, os CoCos — para levantar dinheiro, dado que sua
capacidade de sobrecarregar ativos emitindo títulos poderá ultrapassar os
limites estipulados pelas regulamentações, disse Chris Bowie, da Ignis Asset
Management Ltd de Londres.
"É de se esperar algumas fugas de depósitos e uma mudança
no padrão de financiamento, o qual passará a ser formado por uma combinação
entre títulos, capital próprio e ações", disse Bowie, que é chefe do
departamento de administração de carteira de crédito da Ignis, a qual gerencia
aproximadamente US$ 110 bilhões.
Se
isso de fato ocorrer, será uma mudança significativa e um passo rumo a um
sistema financeiro mais de acordo com os princípios do livre mercado; um
sistema financeiro no qual o radical descasamento entre o prazo de maturação de
ativos e de passivos — como ocorre quando os bancos utilizam depósitos a vista
para financiar empréstimos de longo prazo — é eliminado de uma vez por todas.
Algumas
crises bancárias a mais na zona do euro — especialmente uma em que os
correntistas segurados sejam obrigados arcar com o socorro — irão
provavelmente fazer com que a fé nos seguros governamentais dos depósitos se
evapore por completo, levando junto a confiança no sistema bancário de reservas
fracionárias. E então pode ser que surja
naturalmente no mercado um sistema em que títulos, ações e genuínos depósitos a
prazo que não podem ser sacados antes do prazo de maturação se tornem as fontes
exclusivas de financiamento para empréstimos bancários. Depósitos à vista, movimentáveis ou não por
meio de cheques ou cartão de débito (conta-corrente e poupança), seriam
segregados e mantidos em depósitos bancários que realmente mantenham 100% de
reservas e realizem toda uma gama de serviços de pagamento, de caixas
eletrônicos a cartões de débito.
Embora
esta conjectura possa soar excessivamente otimista, é fato que hoje estamos
muito mais próximos de tal arranjo do que antes do "acordo do Chipre" ter sido
efetivado. É claro que estaríamos ainda
mais perto se não houvesse nenhum pacote de socorro e se todo o ônus de uma
quebra bancária recaísse exclusivamente sobre os credores e correntistas dos
bancos falidos (em vez de ser socializado com os pagadores de impostos). Caso isso ocorresse — isto é, caso todo o
ônus ficasse para credores e correntistas —, a real natureza do sistema
bancário de reservas fracionárias seria explicitada de modo que qualquer leigo
entenderia.
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Veja também: Propostas para uma reforma bancária completa e estabilizadora