quinta-feira, 14 mar 2013
Um dos
traços mais característicos do pensamento católico ao longo dos séculos sempre
foi a ênfase na razão. A mente do homem,
de acordo com esta tradição, é capaz de apreender e compreender toda a ordem
que existe no mundo, ordem essa que está fora de sua mente. O homem é capaz de abstrair "pressupostos
universais" de uma miríade de objetos e dar um sentido aos vários fenômenos que
lhe rodeiam. Com isso, ele é capaz de
encontrar ordem no caos dos dados dispersos ao seu redor. Neste aspecto, o ser humano se difere dos
animais, que não têm essa capacidade racional.
Para um
católico, Deus e a Bíblia são teleológicos, o que significa dizer que, segundo ambos, as coisas têm propósitos. Por exemplo, não cabe ao homem definir, de
acordo com suas vontades arbitrárias, os propósitos do casamento e da
sexualidade. Deus pune aqueles homens
que ignoram, em nome de seus próprios caprichos, a ordem e o propósito que Ele construiu em Sua criação.
Católicos, em geral, nunca foram nominalistas: eles não consideravam a
vontade de Deus como sendo algo absolutamente impenetrável, e nem Suas leis
morais como sendo essencialmente arbitrárias.
Determinadas ações não se tornavam boas só porque Deus havia dito que
eram boas; Deus havia dito que eram boas porque elas eram boas. Assim, desde o mundo físico até o mundo dos
preceitos morais, Deus se mostrava perfeitamente racional e metódico.
O mercado e a mão de Deus
Ao longo da
história da Igreja, vários pensadores escolásticos viam as
mãos da divina providência na bela ordem e harmonia criada pelo livre mercado e
pela divisão do trabalho — um acréscimo, devo dizer, àquela ordem existente no
âmbito físico que São Paulo e a teologia católica como um todo sempre apontaram
como evidência da existência de Deus e de sua bondade.
O cardeal
jesuíta Juan de Lugo, perguntando-se qual seria o preço de equilíbrio, já no
ano 1643 chegou à conclusão de que o equilíbrio dependia de um número tão grande
de circunstâncias específicas que apenas Deus seria capaz de sabê-lo ("Pretium
iustum mathematicum licet soli Deo notum"). Outro jesuíta, Juan
de Salas, referindo-se às possibilidades de saber informações específicas do
mercado, chegou à conclusão de que todo o mercado era tão complexo que "quas
exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum" (somente Deus,
e não o homem, pode entendê-lo exatamente).
Os
pensadores iluministas viam a regularidade dos fenômenos naturais como sendo
uma emanação dos decretos da Providência, e quando esses mesmos pensadores
descobriram uma regularidade semelhante na ação humana e na esfera econômica,
eles interpretaram essa realidade como sendo mais uma evidência do zelo paternal
do Criador do universo. Os liberais diziam
que o funcionamento do mercado livre, no qual o consumidor — isto é, qualquer
cidadão — é o soberano, produz melhores resultados do que os decretos de
governantes sagrados. Observem o funcionamento do sistema de mercado, diziam
eles, e lá descobrirão a mão de Deus.
O grande
economista liberal clássico (e católico) do século XIX Frédéric Bastiat
descreveu as consequências desta constatação em sua obra publicada postumamente
Economic
Harmonies:
Se existem leis gerais que agem de maneira
independente das leis escritas, e se o único poder das leis escritas é decretar
se elas são legais ou não, então é imperativo estudarmos estas leis gerais. Se elas podem ser objeto de
investigação científica, então existe algo que pode ser chamado de ciência
econômica.
Por outro lado, se a sociedade é uma invenção
humana, se os homens são meras matérias inertes, e se um grande gênio — como
disse Rousseau — tem de transmitir sentimento e vontade, movimento e vida a
estes homens, então não pode haver algo chamado ciência econômica: existe
apenas um indefinido número de arranjos possíveis e casuais, e o destino das
nações dependerá exclusivamente do pai
fundador a quem a população, por puro acaso, incumbir seu destino.
O problema com a Doutrina Social da Igreja
A principal
dificuldade com boa parte daquilo que passou a ser chamado de 'Doutrina Social
da Igreja' desde a publicação da encíclica Rerum
Novarum (1891), do Papa Leão XIII, é que tal conjunto de ensinamentos
pressupõe que a vontade humana é o suficiente para resolver questões
econômicas, e que os ensinamentos e as conclusões das leis econômicas podem ser
tranquilamente ignorados.
Com efeito,
assim como a Escola
Historicista Alemã à qual Ludwig von Mises se
opôs, os proponentes da doutrina social efetivamente negam a própria existência
de leis econômicas. Por conseguinte, as
pessoas que seguem tal corpo de pensamento rejeitam por completo o papel da
razão em avaliar as consequências de políticas econômicas "progressistas" e em compreender a ordem e a harmonia que podem existir em
fenômenos complexos (neste caso, nos fenômenos de mercado).
Esta atitude
é contraditória porque vai diretamente contra toda a tradição intelectual
católica, segundo a qual o homem deve adequar suas ações à realidade, e não
embarcar na impossível e tola tarefa de forçar o mundo a se adequar aos seus
desejos. Os seguidores deste corpo de
pensamento desejam obrigar a realidade a apresentar resultados que não podem
ser efetivados apenas pela vontade.
Consequentemente, um
seguidor da doutrina social da Igreja irá fornecer declarações do tipo: "É bom
que as famílias prosperem. Consequentemente,
a adoção de tal política [aumento da tributação sobre os mais ricos, aumento do
salário mínimo, legislação antitruste, mais regulamentações etc.] é moralmente
obrigatória." Em outras palavras,
queremos X, portanto devemos fazer Y. (A
conexão entre X e Y muitas vezes é apenas implícita, mas está lá). Mas e se 1) Y afastar você de X; 2) houver
melhores maneiras de se chegar a X sem usar Y; ou ambos?
O corpo da doutrina
social católica é repleto de tais declarações, de tal forma que não é fácil fazer
uma distinção entre princípios básicos e recomendações. O problema, naturalmente, é que todas estas recomendações
são contestáveis, muito embora um grande número de proponentes da doutrina
social passe a lamentável impressão de que todas elas já foram decididas, e que
apenas alguns teimosos, por algum motivo egoísta, obstinadamente se recusam a
assentir.
Assim, por exemplo, a ideia
de que todo homem deve ganhar um salário alto o bastante que lhe permita
sustentar sua família e dar a ela um razoável conforto representa um objetivo
social desejável. Já a sugestão de que
tal resultado pode ser criado por decreto — isto é, a sugestão de que a
vontade do homem pode estabelecer tal situação simplesmente porque ele quer que
isso aconteça, e que as leis econômicas não são válidas para ajudar a prever o
provável resultado de tais medidas — é totalmente ilógica. Tal postura é tão intelectualmente defensável
quanto a sugestão de que o desejo humano de voar torna supérflua qualquer
necessidade de levar em consideração a lei da gravidade.
Defender a estipulação
de um valor salarial mínimo que permita o consumo de vários bens tido como
essenciais para uma família é uma das bandeiras da doutrina social da
Igreja. A alegação é que isso irá ajudar
as famílias mais pobres e que, de quebra, o aumento do consumo delas irá "estimular
o crescimento econômico" — como se simplesmente sair consumindo coisas pudesse
tornar a sociedade mais próspera, ou como se mais gastos em consumo fosse
exatamente o que o estado devesse estimular.
É claro que tal
política salarial é recomendada com a genuína intenção de melhorar a vida das
pessoas. Porém, se sabemos que tal
política sugerida tenderá a piorar a
situação geral, pois ela irá (entre outras coisas) aumentar o desemprego, então
não apenas é lícito, como também é moralmente obrigatório do ponto de vista da
obediência católica, se opor a ela.
Adicionalmente, se
sabemos que o funcionamento normal de uma economia de livre mercado baseada na
propriedade privada já possui uma inerente tendência natural a gerar contínuos
aumentos salariais (ver aqui, aqui e aqui), então certamente este é mais um argumento em favor de se
rejeitar a ideia de imposição de um determinado valor salarial mínimo e de se
defender um arranjo de livre mercado baseado na propriedade privada (arranjo
este em que ninguém tem a permissão de roubar ou de agredir inocentes).
E há ainda outras
situações paradoxais. Sempre que você
defende a economia de livre mercado dizendo que tal arranjo é o mais condizente
a gerar prosperidade, os adeptos da doutrina social são rápidos em dizer criticamente
que a prosperidade material não é tudo.
No entanto, quando alguns bispos progressistas divulgam aqueles seus
pavorosos manifestos contendo "sugestões" de políticas econômicas, eles deixam
perfeitamente claro que estão advogando políticas que visam a melhorar a situação material das pessoas. Eles acreditam que a intervenção estatal irá
deixar as pessoas em uma situação materialmente melhor. Sendo assim, se somos "materialistas", então
todo defensor da doutrina social também o é.
Nada contra. O debate, portanto,
deve se concentrar na abordagem econômica dos bispos. Se ela irá ou não gerar a prosperidade
prometida.
A encíclica Populorum
Progressio (1967)
do Papa Paulo VI, por exemplo, foi além das observações morais que se pode
fazer sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo e passou a de fato sugerir
recomendações políticas, colocando dessa forma os católicos na injusta posição
de aparentar "dissidência" em relação ao Papa ao proporem
alternativas. Peter Bauer, o profético economista que alertou durante décadas sobre
os efeitos perniciosos que os programas de ajuda internacional teriam sobre as
nações do Terceiro Mundo, observou que não havia nada de particularmente
católico, ou mesmo cristão, na encíclica, e que ela estava meramente repetindo,
com algumas nuanças religiosas, o pensamento convencional.
Hoje sabemos o quão desastrosas foram as recomendações
da Populorum: as ajudas internacionais fortificaram os piores
regimes políticos , atrasaram indefinidamente as reformas necessárias e
destroçaram dezenas de países, com vários grupos étnicos e raciais recorrendo à
violência para tentar se apropriar de parte do dinheiro das ajudas
internacionais. A própria ideia da ajuda internacional introduziu
incentivos perversos a essas sociedades; tornou-se insensato criar coisas que
satisfizessem os desejos de seus conterrâneos, pois era mais racional dedicar
esforços improdutivos para fazer campanhas que lhe garantissem mais dinheiro
externo. Por outro lado, Hong Kong, Chile e Coréia do Sul só se tornaram
prósperos depois que a ajuda internacional foi interrompida e eles foram forçados
a adotar políticas econômicas racionais e sensatas.
Paulo VI também adotou a badalada tese de
Raul Prebisch e Hans Singer, que
dizia que uma deterioração secular dos termos de troca entre o mundo
desenvolvido e o mundo em desenvolvimento — sempre em detrimento deste último —
era uma inevitabilidade, pois havia a suposta tendência de os preços dos bens
manufaturados (especialidade dos países desenvolvidos) subirem e, ao mesmo
tempo, os preços das commodities (especialidade dos países em desenvolvimento)
caírem. Entretanto, essa suposta deterioração dos termos de troca nunca
ocorreu, como o economista Gottfried Haberler já vinha argumentando dez anos
antes da Populorum Progressio, se alguém se deu ao trabalho de
escutar. Mas foi baseando-se nessa tese errônea que Paulo VI condenou o
livre comércio, negando que este fosse um caminho para a prosperidade do mundo
em desenvolvimento. (Curiosamente, hoje são os países desenvolvidos que
condenam o livre comércio, argumentando que ele é prejudicial para os países
ricos e benéfico para os países pobres). Os países que
seguiram a tese Prebisch/Singer ficaram muito atrás daqueles que se integraram
à divisão internacional do trabalho. Não há como negar isso.
Teria sido uma "dissidência" dizer que o erro
factual do Papa acerca dos termos de troca era realmente um erro factual?
Seria "dissidência" ter apontado que essas recomendações não
lograriam o efeito a que se propunham? Deveríamos acreditar que a
autoridade papal sobre assuntos de fé e moral se estende também a análises de
causa e efeito aplicadas a programas de ajuda internacional? Essas
perguntas se respondem a si próprias.
É um dever moral
apontar os erros e corrigi-los
A infalibilidade papal é válida para questões de moral e
fé, e não para questões econômicas. Um
católico não deve negar a autoridade moral do Papa, mas ele também não tem de
levar a ferro e fogo toda e qualquer recomendação econômica da Santa Sé. Por
um bom tempo, vários católicos sofreram com a ideia de que não concordar com
algumas sugestões de política econômica emitidas pela Santa Sé ou por prelados
ao redor do mundo seria uma espécie de desobediência aos ensinamentos da
Igreja.
Nenhum católico deve apoiar uma política que seja
intrinsecamente má. A ideia é
simplesmente que, quando existem várias alternativas moralmente lícitas,
escolher uma delas é uma questão de inteligência, de bom juízo e de exercício
adequado da razão. Se eu posso
recomendar um método de se alcançar um determinado fim, e se este método não
for inerentemente imoral e for muito mais efetivo do que qualquer alternativa
sugerida por alguns líderes católicos (sendo que cada uma delas iria piorar a
situação), então não há nada de especialmente subversivo em se oferecer esta
sugestão.
O próprio Papa Leão XIII reconheceu isto quando disse que,
Se eu
tivesse de me pronunciar sobre qualquer aspecto de um problema econômico
vigente, estaria interferindo na liberdade de os homens lidarem com seus
próprios afazeres. Determinados casos devem ser resolvidos no campo dos
fatos, caso por caso, na medida em que vão ocorrendo.... [O]s homens precisam
realizar tais afazeres por meio de suas próprias obras, e este princípio está
além de qualquer questionamento.... [E]ssas coisas devem ser solucionadas ao
longo do tempo e da experiência.
Deixe-me ser bem
claro: aqueles católicos que são seguidores das teorias da Escola Austríaca de
economia, como eu, não estão exigindo que os papas façam pregações sobre
economia austríaca desde a Cátedra de Pedro.
Ninguém que conheça a evolução do pensamento econômico dos membros da
igreja ao longo dos séculos ousaria afirmar que há apenas uma visão que
constitui a "visão católica da
economia". Contra aqueles que sugerem
que um católico deve abordar assuntos econômicos de apenas uma maneira, o
professor Daniel Villey nos lembra que "a teologia católica não exclui o
pluralismo de opiniões a respeito de assuntos profanos". Católicos austríacos não dizem que "a nossa
ciência econômica é a única católica"; apenas dizemos que aquilo que defendemos
e ensinamos não apenas não vai contra o catolicismo tradicional, como na
verdade é profundamente compatível com ele.
Existe uma profunda
semelhança filosófica entre o catolicismo e o brilhante edifício de verdades
encontrado na Escola Austríaca de economia.
O método austríaco da praxeologia deveria ser especialmente atraente para o católico. Carl Menger e principalmente Mises e seus
seguidores procuraram fundamentar princípios econômicos baseando-se em verdades absolutas, verdades
perceptíveis por meio de uma reflexão sobre a natureza da realidade. O que, dentre tudo o que existe nas ciências
sociais, poderia ser mais compatível à mente católica do que isto?
Igualmente, a economia
austríaca nos revela um universo de ordem, cuja estrutura podemos compreender
por meio de nossa razão. Como explicou o
professor Jeffrey
Herbener, "Uma
abordagem causal-realista da economia surgiu no meio cristão porque era somente
naquele meio que os estudiosos concebiam a natureza como uma ordem
interconectada, uma ordem criada no fluxo do tempo por Deus, uma ordem criada
do nada e governada por leis naturais determinadas pelo próprio Deus, leis
estas que o intelecto humano seria capaz de descobrir e utilizar para entender
a natureza com o objetivo de dominá-la para a glória de Deus." A alternativa seria aquele mundo de John
Stuart Mill, que postulou ser perfeitamente possível encontrar algum lugar no
universo onde dois mais dois não fossem quatro — uma visão que, nas palavras
de Herbener, "está fundamentada na ideia metafísica de que o universo não é uma
criação sistemática e ordeira." Qual
destas duas visões é a mais compatível com o catolicismo não é difícil de ser
discernido.
Conclusão
Grande parte dos
conselhos econômicos apresentados como sendo parte integrante da doutrina
social da Igreja ao longo do último século sofre de sérios defeitos de lógica e
possui assertivas factualmente errôneas.
Tal posição, independente de seus proponentes perceberem ou não,
representa o triunfo da vontade sobre o intelecto, a substituição da análise
racional das leis da interação social pela vontade arbitrária, além de ignorar
as inevitáveis consequências da violenta interferência sobre esta interação
social. Tal postura, além dos danos que
ela causa à riqueza vigente na economia, é completamente estranha à Igreja
Católica, uma instituição que sempre enfatizou a capacidade da mente de perceber a (e se deleitar com a)
regularidade e a sistematicidade do mundo criado por Deus e de saber se adequar a esta criação divina.
A verdade, dizem os
catecismos católicos, consiste na adequação
da mente à realidade. A "doutrina
social" católica, por outro lado, demanda com grande frequência que o homem
permita que seus meros desejos e sentimentos formem seu juízo a respeito de
questões econômicas. Avaliar as
consequências de medidas econômicas com o auxílio das leis econômicas, e olhar
para o âmbito econômico reconhecendo nele a ordem e a regularidade que a
própria Igreja diz serem reflexos da perfeição do próprio Deus — esta é a
postura católica.
Santo Agostinho certa
vez disse: "In fide, unitas; in dubiis, libertas; in omnibus, caritas"
(na fé, unidade; em questões incertas, liberdade; em todas as coisas,
caridade). A demanda por caridade e o
desejo de ajudar ao próximo tornam imperativo que não defendamos políticas
econômicas insensatas que só irão prejudicar justamente aqueles a quem queremos
ajudar.