Obs: O artigo a seguir foi escrito em agosto de 2002.
Pouca
gente sabe, ou se deu conta na época, mas o Brasil já viveu um regime
socialista. E foi um sucesso... por pouco tempo.
Em
28 de fevereiro de 1986 o presidente Sarney, acossado pela hiperinflação que
grassava no país e tendo a legitimidade de seu mandato questionada, decretou o
congelamento geral de preços e salários. Em sessão solene transmitida pela TV, ele
declarou guerra à inflação e convocou todo o povo para o bom combate, imputando
aos especuladores e empresários gananciosos a carestia que castigava a nação. O
presidente obteve aprovação quase unânime da população. Mais de 95% do povo apoiava o Plano Cruzado
(essa a nova denominação da moeda nacional) sem reservas.
[A
imagem está ruim, mas o vídeo abaixo vale muito a pena para relembrar a época em
que a ignorância econômica nacional atingiu seu ápice]
De
um dia para o outro, todas as transações privadas caíram sob estrito controle
estatal. A propriedade privada e a liberdade econômica foram suprimidas de um
só golpe, uma vez que o poder de disposição (vender, alugar etc.), sem o qual o
direito de propriedade é privado de sua substância, foi abolido. Somente se podia celebrar contratos bilaterais
onerosos pelo preço decretado e controlado pelo estado. Dito de outra forma, o Brasil aboliu a
economia de mercado e adotou o socialismo.
A
imprensa aderiu imediatamente fomentando um clima de histeria geral. A TV Globo
criou uma vinheta sugestiva: "tem que dar certo". Tinha que dar certo
à força, é claro.
Logo
empresários e gerentes de loja eram presos e humilhados sob a acusação de
aumentar preços ilegalmente. Estabelecimentos comerciais foram depredados por
turbas enfurecidas. Todos os cidadãos foram informalmente nomeados
"fiscais do Sarney" e nenhum comerciante se sentia seguro. Choviam
delações anônimas, ao que se seguiam espalhafatosas razzias da SUNAB nas lojas,
elevada à condição de KGB nacional.
A
adesão da intelectualidade foi, naturalmente, total. Os mesmos que ainda ontem criticavam o uso do
decreto-lei (antepassado das medidas provisórias) e as arbitrariedades dos
militares agora as aprovavam efusivamente. O ministro da fazenda Dilson Funaro, que
secretamente sofria de um câncer quase terminal, fez-se um verdadeiro messias
do cruzado. Os economistas que perpetraram o plano, João Sayad, Luiz Gonzaga
Belluzo, Persio Arida, Francisco Lopes e outros viraram celebridades
instantâneas. A mentora de todos eles, a
economista lusa Maria da Conceição Tavares, passou a ser considerada a sumidade
suprema da ciência econômica, e a mídia a retratava como a "guerreira do
cruzado".
Os partidos políticos que
recentemente atacavam Sarney aderiram em massa ao presidente. A esquerda, inclusive o nascente PT, perdeu o
discurso e ficou na dela. Como pregar o
socialismo se o próprio governo o adotara? Sarney e seu bigode eram adorados e adulados
pelas massas, tal qual um Stalin tupiniquim.
Poucas
vozes ousaram discordar. O sempre
corajoso jurista Ives Gandra foi um dos poucos a proclamar para quem quisesse
ouvir que o pacote era inconstitucional de cabo a rabo, e olha que a
constituição vigente era aquela outorgada pelos militares em seu período mais
duro. Mas ninguém queria ouvir, muito
menos o Judiciário. A oposição mais
cerrada, coerente e de primeira hora veio da revista semanal Visão, onde
pontificava o editor Henry Maksoud. Inflação
não é aumento geral de preços, escrevia ele. Essa é a consequência. A causa é a expansão desenfreada dos meios de
pagamento pelo governo para financiar seus monumentais déficits. O único culpado pela inflação é o governo e só
ele pode acabar com ela. Abolir o
mecanismo de preços equivale a destruir a economia de mercado.
Controle
de preços nunca resolveu o problema, e a sucessão de fracassos nesse campo foi
enumerada começando por um famoso e malogrado decreto do imperador romano
Diocleciano, em 301 DC, que parecia uma "tabela da Sunab". Não demorou para que o filho de Maksoud fosse
preso e ele próprio recebesse ameaçadoras "visitas" da Sunab. Maksoud
foi "banido" dos programas de TV que discutiam o plano. Jornais recusavam-se a reproduzir seus
artigos. A revista Visão recebia uma
enxurrada de cartas de leitores furiosos, contendo os piores insultos. Maksoud as publicava e replicava
pacientemente.
O governo garantia que o déficit e a emissão de moeda estavam
"sob controle total". Como?, retrucava a Visão, se nenhum funcionário
público foi demitido (ao contrário, a época era de contratações e "trens
da alegria" a rodo), nenhuma estatal foi privatizada, nenhum gasto foi
suprimido, os vastos subsídios não foram cortados e a carga tributária não foi
aumentada? Os números das contas
públicas sumiram, deixaram de ser publicados, coisa que nem os militares
fizeram.
Aos
poucos, contudo, a euforia foi passando e os efeitos previstos por Maksoud
começaram a se fazer sentir. As
mercadorias principiaram a escassear e a sumir. Mercados paralelos floresceram e só pagando "ágio" era
possível comprar as coisas. O Brasil foi
tomando a feição bem conhecida nos países comunistas. Filas nas lojas e nada para comprar, salvo no
mercado negro. O ministro Funaro
expôs-se ao ridículo de mandar a Polícia Federal caçar bois nos pastos, já que
a carne desaparecera do mercado.
Ficou
evidente que o déficit público e a expansão monetária não haviam sido
controlados coisa nenhuma. Nada mudara. A economia entrou em colapso, mas o
"plano" foi mantido até as eleições, por exigência do PMDB, o
"partido do cruzado". Logo
depois das eleições, que resultou em esmagadora vitória do PMDB, o governo
traiu os que tolamente acreditaram que o cruzado era sério. Os preços foram descongelados e a inflação
reprimida os chutou para o alto. Haveria
novos "planos" e novos congelamentos, inclusive o mais violento dos
"choques heterodoxos" que foi o Plano Collor I. Mas o encanto se esgotara. Ninguém mais levava a sério o socialismo.
É
claro que Sarney, o clássico "coroné" patrimonialista nordestino, não
era um socialista marxista. Ele apenas
utilizou o truque do congelamento para se tornar popular e se manter no
"pudê". Quando o
"plano" fracassou, Sarney não deu o passo seguinte na direção do
socialismo totalitário, que teria sido a estatização de todos os meios de
produção (inclusive a força de trabalho de cada um). Voltamos, pois, à velha e péssima
"economia mista" de praxe. Um
governo Lula ou assemelhado, porém, teria seguido adiante, e pior, contaria com
amplo e majoritário apoio popular!
É
uma pena que o povo brasileiro não tenha consciência de que aquilo é o
verdadeiro socialismo, daí para pior. Logro,
arbítrio, violência, escassez, caos, manipulação. Pois ao que parece a história vai se repetir,
pois os "economistas" do PT são os mesmos do cruzado. Como é que pode esses caras ainda terem
influência no país? Por muito menos médicos e engenheiros perdem a licença profissional. Mas essas figuras macabras continuam dando as
cartas nos meios acadêmicos e políticos. É nisso que dá deixar a ciência econômica aos
cuidados dos seguidores de Marx e Keynes. Toda a sociedade paga a conta.