Há exatos 100 anos, foi publicada a primeira
grande obra de Ludwig von Mises,
The Theory of Money and Credit. E como esta foi a primeira grande contribuição
de Mises para o conhecimento humano, deveríamos celebrar este ano como sendo o
centenário do início de sua carreira de gênio criativo no palco mundial.
Mises escreveu seu primeiro tratado durante os fatídicos
anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Isto conferiu urgência ao
projeto e afetou bastante a sua composição. Ele posteriormente escreveria em
seu livro Memoirs,
Se eu pudesse ter trabalhado
em paz e sem pressa, teria começado o primeiro volume apresentando uma teoria
sobre trocas diretas; e então eu poderia prosseguir para a teoria das trocas
indiretas. Mas a realidade é que comecei com a troca indireta porque acreditava
não ter muito tempo; eu sabia que estávamos às vésperas de uma grande guerra e queria
terminar meu livro antes de sua eclosão. Portanto, decidi que iria além do estreito
campo da teoria monetária pura em apenas alguns poucos pontos, e adiaria a minha
preparação de um trabalho mais completo.
O jovem economista já dominava sua ciência. Ele provavelmente já poderia ter escrito algo
parecido com sua obra-prima Ação Humana — uma exposição
sistemática da economia e a defesa do liberalismo clássico, lançada em 1949 —
ali mesmo na segunda década do século XX.
Mas quis o destino que Mises — cujas ideias
representavam o apogeu e a realização da tradição liberal-clássica — surgisse
em cena no exato momento em que o mundo ocidental renegava completamente esta
tradição, adotava o estado totalitário, e lançava-se de cabeça em direção à
autodestruição. A paz e o mercado foram abandonados em favor da guerra e do
planejamento. Mises foi o supremo cavaleiro do liberalismo em dois sentidos: ele
foi o maior e o último.
A marcha fúnebre do era do liberalismo clássico começou
com os tiros de canhão da Primeira Guerra Mundial. E Mises mal teve tempo para finalizar,
publicar e defender seu tratado sobre dinheiro: ele foi mandado para a Frente
Oriental como oficial de artilharia.
A outros intelectuais com qualificações semelhantes
foram dados cargos em agências de planejamento de guerra, em total segurança. Mas Mises, cujas ideias liberais estavam fora
de compasso com o establishment na
Áustria, foi colocado diretamente na linha de fogo. Um dos maiores gênios da história estava a uma
explosão de ter a sua carreira cortada pela raiz.
E que trágico isso seria! Mises ainda nem havia escrito seu grande
ensaio de 1920, O Cálculo Econômico sob o Socialismo, que continha o mais
poderoso argumento contra o planejamento central jamais formulado. Imagine
isso: a mente do maior crítico do planejamento central sendo extinta pela
guerra, algo que representava justamente a apoteose do planejamento central.
Ponha-se no lugar de Mises na linha de frente. Você, melhor que qualquer outra pessoa na
história, entende o funcionamento da pacífica sociedade de mercado. Você entende os defeitos fatais do socialismo
e do intervencionismo, e a futilidade da guerra. Você tem as respostas. Você conhece o código social que iria destravar
e fazer deslanchar o potencial da humanidade.
Você sabe, mas ninguém o ouve. Você
está cercado por destruição e loucura. Pior: você pode a qualquer momento ser aniquilado
por essa guerra que grassa ao seu redor, de modo que todas as ideias não
escritas que borbulham em sua mente estarão eternamente perdidas para a
humanidade.
Isso seria suficiente para fazer com que praticamente
todo homem se desintegrasse. Mas,
felizmente para nós, Mises não era apenas um gênio; ele era também um paradigma
da coragem moral. Mesmo em meio a esta
crise lancinante, assim como em suas provações subsequentes, Mises sustentou
essa coragem recorrendo a um pouco da poesia latina que ele havia aprendido
como estudante.
Como alguém irá perseverar
ante uma catástrofe inevitável é uma questão de temperamento. No ensino médio, como era de costume, eu havia
escolhido um verso de Virgílio para ser meu lema: Tu ne cede malis sed contra audentior ito. Não ceda ao mal, e
prossiga ainda mais audaciosamente contra ele.
Eu me recordava dessas
palavras durante as horas mais sinistras da guerra. Repetidas vezes eu me
encontrei em situações nas quais nenhum tipo de ponderação racional era possível;
mas então o inesperado intervinha e, com ele, a salvação. Estipulei a mim mesmo
que não perderia a coragem. Eu queria
fazer tudo o que um economista pudesse fazer. E eu não me cansaria de dizer aquilo que eu
sabia ser a verdade.
E ele se manteve para sempre fiel àquela
resolução. Durante toda a sua carreira, ele
foi sempre o modelo da intransigência baseada em princípios. Um Leônidas intelectual,
cercado por hordas de socialistas, fascistas, expansionistas e neoliberais, Mises
manteve suas posições. Mesmo quando
antigos aliados — como aqueles cooptados pela revolução keynesiana — se desviaram
e deixaram de apoiá-lo, ainda assim ele manteve suas posições. Ainda assim ele lutou. E ele lutou não apenas pelo bem das gerações
futuras, mas pelo bem da sua própria geração.
Para Mises, não bastava expor teoricamente a
tolice do inflacionismo em The Theory of Money and Credit,
um livro para a eternidade. Ele também
lutou pessoalmente contra o inflacionismo na Áustria do período entre-guerras,
usando sua influência
para salvar sua terra natal da hiperinflação que em breve acometeria a Alemanha
de Weimar e contribuiria para a ascensão do nazismo.
Para Mises, não era suficiente provar
teoricamente a loucura do socialismo em Socialism: An Economic and Sociological Analysis, outro
livro para a eternidade. Ele também dissuadiu pessoalmente
o homem mais poderoso de Viena de impor à cidade o bolchevismo que em breve
levaria a Rússia à fome.
Os esforços de Mises provavelmente salvaram as
vidas de milhares — e o sustento de milhões. E o impacto de Mises não se limitou à Áustria.
Ele conseguiu ganhar terreno até mesmo na
Alemanha, que havia sido previamente dominada intelectualmente pelos
"Socialistas de Cátedra" (Kathedersozialisten). Ele conseguiu
levar os mais brilhantes jovens estudiosos alemães que trabalhavam com as
ciências sociais para o caminho do liberalismo e do livre mercado.
Em sua volumosa e empolgante biografia Mises: The Last Knight of Liberalism, Jörg Guido Hülsmann
nos relata a trágica mudança que se seguiu.
Justo quando Mises
finalmente começava a agitar o espírito da liberdade entre a nova geração de
economistas alemães, os velhos Kathedersozialisten obtiveram um derradeiro e devastador triunfo. Em 30 de janeiro de 1933, seu rebento
intelectual, Adolf Hitler, foi indicado chanceler do Reich Alemão.
Com o crescimento da ameaça nazista, Mises, um
judeu liberal, foi forçado a abandonar sua Áustria nativa. Posteriormente, a polícia alemã invadiria o
apartamento vienense de Mises e confiscaria seus documentos. Os nazistas sabiam que um escritório repleto
das ideias escritas de Mises era potencialmente mais perigoso do que qualquer
arma secreta dos Aliados.
Na Suíça, Mises finalmente encontrou a
tranquilidade necessária para escrever seu tratado sistemático: Nationalökonomie,
o precursor em alemão de Ação Humana.
Ali finalmente estava o "trabalho mais completo"
que Mises visionou quando ainda tinha seus trinta e poucos anos: uma exposição
magistral das ciências sociais, e uma defesa irrefutável da sociedade liberal.
Mas o livro — como diria David Hume a respeito de
seu próprio grande tratado — saiu "natimorto das impressoras". A Segunda
Guerra Mundial estava a caminho. A mentalidade europeia havia novamente sucumbido
à loucura e se mostrava predisposta à autodestruição. Ninguém tinha tempo ou disposição para dar
atenção ao liberalismo, mesmo quando ele estava sendo descrito em uma forma tão
refinada, cativante e convincente como esta.
Assim, mais uma vez, não apenas as ideias de
Mises estavam em perigo, mas também sua própria integridade física. Mises
esteve a um triz ser capturado por agentes alemães. Os Alpes suíços não eram mais capazes de
manter Mises a salvo das forças alemãs.
Para escapar do continente, Mises e sua esposa
tiveram primeiro que viajar
de ônibus da Suíça até Portugal, mal conseguindo se manter um passo a
frente dos nazistas por todo o caminho. Como
relata Bettina Bien
Greaves:
Foi uma viagem
angustiante. O motorista frequentemente era obrigado a alterar a
trajetória para evitar dar de cara com os soldados alemães. Devolvidos à
pequena cidade francesa de Cerbère, na fronteira com a Espanha, porque seus
vistos estavam vencidos, Mises conseguiu, pegando o trem das quatro da manhã
para Toulouse, adquirir novos vistos. No dia seguinte, o ônibus cruzou
com seus passageiros a fronteira da Espanha. Os refugiados tomaram então
um trem para Barcelona, um avião para Lisboa, e dali finalmente, após uma
espera de 13 dias, um navio para os EUA.
Eles finalmente encontraram um porto seguro em Nova York. Mas a
segurança física não trouxe consigo a segurança financeira. Mises e sua esposa tiveram de encarar uma
austeridade como nunca antes. Quase toda
a poupança de Mises havia sido confiscada pelos nazistas. E, por mais talentoso que fosse, Mises não
conseguia encontrar vaga em nenhuma faculdade, já que as universidades
americanas haviam se tornado quase tão anticapitalistas quanto as europeias.
Tivesse Mises traído suas convicções, como
muitos de seus colegas fizeram, ele provavelmente teria conseguido com grande
facilidade uma posição em uma universidade de prestígio. Mas Mises possuía princípios. Em momento algum ele se mostrou disposto a
ceder. Como sempre, ele encontraria meios
de sobreviver sem abrir mão de suas crenças. Tu ne cede.
Na América, ainda havia alguns poucos
individualistas. Vários desses amantes da liberdade viram nas ideias de Mises
uma revelação. De suas fileiras, muitos se apresentaram para prover Mises com o
suporte financeiro e profissional que ele precisava para permanecer produtivo até
seus anos finais.
Com este apoio, Mises pôde novamente expressar
toda a sua teoria social, desta vez em inglês (o qual ele rapidamente aprendeu
a escrever de forma clara e magistral) e de forma sistemática, em sua
obra-prima, Ação Humana.
Para um jovem economista chamado Murray
Rothbard, ler Ação Humana foi uma
epifania. Ele instantaneamente converteu-se em um misesiano inflexível.
Rothbard imediatamente começou a elaborar e a ampliar o trabalho de Mises, criando
as bases do atual movimento austro-libertário do qual fazem parte muitos dos
que hoje leem este texto.
Mises lutou pela liberdade até o fim, escrevendo
livros depois dos 80 anos de idade e dando palestras após os 90. Em uma de suas últimas palestras, no ano anterior
ao da sua morte, um jovem médico de nome Ron
Paul estava na plateia. Dr. Paul havia dirigido 80 quilômetros para ver
Mises, e mais tarde se lembraria de como o evento foi "uma inspiração".
Ao fim da vida, Mises tinha apenas um lamento: não
ter mais o mesmo vigor de antes, sendo que ele ainda tinha "tanto para dar ao
povo, ao mundo". Mises morreu como viveu: transbordando boa vontade para com os
seres humanos e animado por um implacável impulso de melhorar a situação deles
no mundo.
O impacto da vida e da obra de Mises repercute
já há 100 anos. Nesta crise econômica e
social que enfrentamos, seus escritos e seu exemplo são mais relevantes do que
jamais foram. Seus escritos nos mostram
como poderemos um dia remediar nossas maiores aflições. E seu exemplo pode nos instilar a coragem
necessária para as provações que inevitavelmente teremos de enfrentar enquanto
não chegarmos lá.
Leia também:
A importância de manter-se
firme aos seus princípios - Mises e seu crescente legado
Mises - um profeta sem honra
em sua própria terra