Ainda
no primeiro período de uma turma de filosofia, o professor apresenta à classe um cenário que parece desafiar a perspectiva dos
estudantes acerca da questão da moralidade.
O
desafio quase sempre é algo mais ou menos assim: "Absolutamente toda a nação da
França irá morrer amanhã, a menos que você mate hoje o seu vizinho, que só tem mais um dia de vida. O que você
faria?"
Ou:
"Você pode erradicar completamente o câncer da face da terra ao simplesmente
apertar um botão, o qual irá matar uma pessoa saudável. Você apertaria este botão?"
O
propósito é criar um dilema moral. As
perguntas contrapõem sua rejeição moral ao assassinato à sua culpa moral por
não ter agido para salvar milhões de vidas.
Mas
a realidade é que tais perguntas são um total engodo e simplesmente não podem
ser respondidas de maneira honesta. Elas
postulam um mundo paralelo no qual as regras da realidade, como causa e efeito,
foram dramaticamente alteradas. Ou
alguém realmente acredita que o simples apertar de um botão pode curar o
câncer? Este mundo criado parece
funcionar muito mais de acordo com a fantasia do que com a realidade.
E
como meu código moral se baseia na realidade do mundo existente, digo apenas
que não sei o que faria caso as regras vigentes deixassem de existir. Suponho que minha moralidade seria diferente,
o que significa que minhas ações também seriam diferentes.
Por
mais absurdas que sejam, tais perguntas são consideradas questões morais
"difíceis". Ao ter de lidar com elas,
alguns estudantes passam a crer, paradoxalmente, que estar em conformidade com
a moralidade requer a violação da moralidade de uma maneira mais profunda. Afinal, não há maior violação do que o
assassinato deliberado de outro ser humano.
Mas
como pode a vida de uma pessoa ser mais importante do que as de milhões que
estão em suas mãos? Neste ponto, a
moralidade deixa de ser uma questão de princípios e se torna mero um jogo de
números, uma simples questão de análise de custo-benefício. Isto não representa uma expansão da
moralidade, como o professor alega, mas sim a criação de um conflito que
destrói a moralidade. Em seu lugar passa
a existir uma zona cinza moral, um vácuo para o qual o utilitarismo corre para
preencher o espaço vazio.
Repentinamente,
torna-se óbvio que o bem de muitos tem mais valor do que o assassinato de um
só. O coletivo sobrepuja o
indivíduo. A maioria torna-se mais
importante do que a minoria. O
utilitarismo firme e "factual" torna-se preferível à moralidade cinza e
inconsistente.
As
perguntas filosóficas levam diretamente à política, pois assassinar uma pessoa
em nome do bem maior não é meramente uma questão moral, mas também uma questão
de direitos individuais. Se você aceita
a moralidade de tal ato, então você também aceita a conveniência e a autoridade
política de se assassinar um ser humano inocente.
Quando
formuladas em termos políticos, versões não-hipotéticas desta pergunta
filosófica são frequentemente identificadas.
Por exemplo, "Devem os ricos ou os empreendedores (os poucos) ser
fortemente tributados para que se forneça saúde pública para os vários?" Aqui, um bem maior é contraposto aos direitos
individuais. Mas, mais do que isso, os
direitos individuais de dois grupos são confrontados, sendo que os direitos de
uma minoria resistente passam a ser vistos como uma barreira aos "direitos de
todos os outros". Empreendedores passam
a ser considerados indivíduos que não têm nenhum direito de manter sua renda
caso isso impeça a maioria de ter acesso gratuito a serviços médicos.
Este
conflito criado politicamente é tão absurdo quanto aquele criado filosoficamente.
O
individualista britânico do século XIX, Auberon Herbert, abordou esta questão
do "bem da maioria". Disse ele: "Nunca
foi inventada uma frase mais ilusória e capciosa do que essa. O Diabo estava no auge de seu perspicaz e
engenhoso humor quando ele introjetou esta frase no cérebro dos homens. Eu a considero totalmente falsa em seus
fundamentos."
Por
que ela é falsa? Porque a frase parte do
princípio de que uma moralidade mais elevada requer a violação de direitos
individuais. Ou, nas palavras de Herbert, "Ela pressupõe
que existem dois 'bens' opostos, e que um bem deve ser sacrificado em prol do
outro. Só que, em primeiro lugar, isto
não é verdade, pois a liberdade é um bem único e aberto a todos, e não requer
nenhum sacrifício de terceiros; e, em segundo lugar, este falso antagonismo
(onde nenhum antagonismo genuíno existe) entre dois bens distintos implica uma
guerra perpétua entre os homens."
Herbert
está se baseando em duas teorias intimamente relacionadas: a primeira, "a
universalidade dos direitos"; e a segunda, "a harmonia natural dos
interesses". A universalidade dos
direitos significa que todos os indivíduos possuem os mesmos direitos naturais,
sem exceções e sem privilégios.
Raça,
gênero, religião ou outras características secundárias não interessam; somente
a básica e primordial característica de ser um humano é que é importante. Uma harmonia natural de interesses significa
que o exercício pacífico dos direitos individuais de uma pessoa não afeta e nem
prejudica o similar exercício dos direitos individuais de qualquer outra
pessoa.
Minha
liberdade de consciência ou de expressão não proíbe a do meu vizinho. A autoridade pacífica que afirmo ter sobre
meu próprio corpo não diminui ou afeta em nada a reivindicação de propriedade
sobre si própria de nenhuma outra pessoa.
Com efeito, quanto mais afirmo o princípio da propriedade sobre si
próprio, mais robusto e mais garantido este princípio se torna para todas as
outras pessoas.
Somente
em um mundo onde os direitos não são universais, onde o comportamento pacífico
das pessoas está em permanente conflito, é que faz sentido aceitar a
necessidade de se sacrificar indivíduos em nome de um bem maior. Mas este não é o mundo real, e sim um mundo
que foi criado para propósitos políticos.
Herbert
explicou qual a suposição essencial que dá sustento a esse mundo falso: a aceitação
automática do próprio conceito de "bem maior".
Ele perguntou: "Por que dois homens devem ser sacrificados em prol de
três homens? Todos nós aceitamos que
três homens não devem ser sacrificados em benefício de dois homens; mas por que
— em termos de questões morais — devemos aceitar aquilo que é quase tão ruim,
imoral e tacanho, que é o sacrifício de dois homens em prol de três
homens? Por que sacrificar sequer um...
quando a liberdade exclui toda e qualquer necessidade de sacrifício?"
Herbert
negava a validade "desta 'lei dos números', que é realmente a lei que estamos
seguindo quando falamos de autoridade do estado [...] sob a qual três homens se
tornam absolutamente supremos e dois homens se tornam absolutamente
dependentes." Em vez de aceitar a lei
dos números como uma expressão do bem maior, Herbert a via como uma construção
social conveniente, rotulando-a de "uma lei puramente convencional, um mero recurso
rude e parcialmente selvagem que não sobrevive a uma crítica guiada pela
razão. É impossível defender tal lei
utilizando considerações sobre justiça universal. Seu proponente pode apenas confessar a
conveniência de sua implementação."
Para
quem era conveniente a criação de um conflito social? Por que criar um mundo artificial repleto de
conflitos? Para solucionar os problemas
criados, uma grande fatia de poder foi retirada dos indivíduos e transferida
para uma classe governante.
Escreveu
Herbert: "A tendência de todas as grandes e complicadas criações é a de estabelecer
uma classe governante, pois somente ela entende o funcionamento da sua criação,
e somente ela é bem versada no hábito de controlar esta sua criação; e a
tendência de uma classe governante engenhosa, uma vez estabelecida, é a de, em
momentos críticos, poder fazer praticamente o que quiser com a nação..."
Em
vez de resolver um problema social, a classe governante legou um efeito
devastador sobre o bem-estar das pessoas comuns, as quais se tornaram "um
confuso rebanho de cordeirinhos esperando por um cão pastor que os conduza
através do portão." Ironicamente, ao
alegar que o coletivo era superior, uma ínfima minoria passou a controlar a
vasta maioria. Consequentemente, o "bem
maior" passou a ser qualquer coisa que sirva aos interesses da classe
governante.
Mas
este processo ainda pode ser revertido.
É necessário "individualizar" o coletivo e a nação de modo que "vontade,
consciência e discernimento" retornem a cada indivíduo.
Quando
isso ocorrer, a sociedade estará oferecendo às pessoas o mais nobre dos
presentes e o maior dos benefícios: a sua própria responsabilidade individual.