quarta-feira, 29 set 2021
Um
indivíduo que sistematicamente discipline sua vida em torno do objetivo de
aprimorar as vidas daqueles que o rodeiam irá deixar um legado. Este legado pode ser positivo ou
negativo.
Existem aqueles que estão
apenas em busca de poder e que, por isso, irão tentar influenciar a vida de
outras pessoas por meio do engano e da adulação. Seu objetivo é mudar corações, mentes e o
comportamento daqueles que o cercam. Seu
legado tende a ser negativo.
Mas há também aqueles que se esforçam ao máximo
para transformar as vidas de terceiros de uma forma positiva. Eles invariavelmente seguem um estilo de vida
específico, o qual governa suas ideias e seu comportamento. Eles sistematicamente tentam estruturar suas
próprias vidas de tal maneira que eles próprios se tornam demonstrações
empíricas da própria visão de mundo que defendem.
Qualquer pessoa que tenha como o objetivo de sua
vida mudar as opiniões de outras pessoas tem de estar comprometida com dois
princípios: fazer sempre aquilo que defende e apoiar (de qualquer maneira
possível) causas que estejam de acordo com o que defendem.
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a
maioria das pessoas não quer mudar sua opinião em relação a nada. Mudar uma única opinião significa que o
indivíduo tem de mudar suas opiniões a respeito de vários tópicos. Aquela velha regra é válida: "Você não pode
mudar apenas uma coisa". Portanto, há um
alto custo ao se repensar aquelas opiniões que você mais aprecia e
valoriza. Pessoas tendem a evitar empreitadas
que envolvam altos custos.
Quando alguém é confrontado com uma nova opinião,
se esta opinião está relacionada a como as pessoas devem agir, uma das
primeiras autodefesas que o ouvinte irá levantar é esta: "A pessoa que está
recomendando esta nova ideia vive consistentemente em termos desta ideia?"
Se é algo óbvio para o ouvinte que esta
pessoa não faz o que diz defender, então fica claro que o próprio defensor da
ideia não leva a sério a verdade e a efetividade daquilo que ele diz
defender. Isto dá ao ouvinte uma maneira
fácil de escapar da conversa. A ideia
defendida não vingará.
Ludwig von
Mises
Meu único encontro pessoal com Mises ocorreu no
segundo semestre de 1971. Eu havia sido
contratado pela Foundation for Economic Education. Naquela data, eu havia sido convidado para
uma cerimônia especial. F.A. Harper
havia editado uma segunda coleção de ensaios honrando Mises. O primeiro livro de ensaios havia sido
editado pela esposa de Hans
Sennholz, Mary Sennholz, e foi publicado em 1956.
A cerimônia ocorreu em um hotel em Nova York. Após a cerimônia, tive a
oportunidade de conversar com Mises sobre vários assuntos, inclusive sua
ligação com o sociólogo alemão Max Weber. Weber havia se referido ao ensaio de Mises, O cálculo econômico sob o
socialismo, em uma nota de rodapé em um livro que Weber não chegou a
completar. Ele morreu em 1920. Mises me disse que ele havia enviado seu
ensaio para Weber.
Mises deixou um legado que, desde sua morte em
1973, vem crescendo continuamente. Ele
foi um daqueles raros homens que teve duas fases em sua carreira. A primeira fase, que começou em 1912 e
terminou após a publicação da Teoria Geral (1936) de John Maynard Keynes,
estabeleceu sua reputação de grande teórico econômico. Seu livro de 1912 sobre moeda e
sistema bancário, seu livro de 1922 sobre o socialismo,
e seus vários artigos sobre tópicos específicos de teoria econômica o
comprovaram um grande teórico.
Mas sua
inflexível oposição a todas as formas de moeda fiduciária estatal de curso
forçado garantiu a ele a reputação de um Neandertal do século XIX em um mundo
de moedas estatais de curso forçado, o qual começou com a abolição do
padrão-ouro clássico no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Sua hostilidade ao socialismo também
contribuiu para seu status de pária. Ele
estava vigorosamente resistindo a tudo aquilo que os círculos acadêmicos
consideravam ser a onda do futuro. Acadêmicos sempre querem seguir modismos. Mises não era assim.
O triunfo do keynesianismo após 1936, em conjunto
com a erupção da Segunda Guerra Mundial em 1939, trouxe um eclipse à carreira
de Mises. Na primeira metade da década
de 1930, a influência do nazismo na Áustria crescia sombriamente. Sendo um liberal da velha guarda e um judeu,
Mises sabia que seus dias estavam contados. Ele temia que os nazistas tomassem o controle
da Áustria, e ele estava correto. Sendo
um economista defensor do livre mercado — conhecido pela esquerda como o mais
implacável oponente do intervencionismo econômico — e um judeu, ele não teria
sobrevivido na Áustria.
Sentindo que tais eventos eram apenas uma questão
de tempo, Mises aceitou um cargo em Genebra e para lá se mudou em 1934,
aceitando um dramático corte salarial. Sua noiva o acompanhou e lá se casaram, não sem
antes ele tê-la avisado que, embora escrevesse bastante sobre o assunto,
ele nunca teria muito dinheiro.
Mises ficou em Genebra por seis anos, obrigado a
deixar para trás sua adorada Viena e tendo de ver, impotente, a civilização
sendo despedaçada. Quando os nazistas
anexaram a Áustria em 1938, eles saquearam seu apartamento em Viena e roubaram
todos os seus livros e monografias. Ele
passou a viver uma existência nômade, sem ter a mínima ideia de qual seria seu
próximo emprego. E foi assim que ele
viveu o auge de sua vida: já estava com 57 anos e era praticamente um sem-teto.
Mas nada disso abalou Mises. Ele seguia concentrado em seu trabalho. Durante seus seis anos em Genebra, ele
continuou se dedicando à pesquisa econômica e às escritas. O resultado foi sua até então obra magna, um
enorme tratado de economia chamado Nationalökonomie
(o precursor de Ação Humana). Em 1940, ele completou o livro, o qual foi
publicado por uma pequena editora e com edição extremamente limitada. Mas quão intensa poderia ser, naquela época,
a demanda por um livro sobre liberdade econômica escrito em alemão? Certamente não seria nenhum bestseller. E Mises certamente sabia disso enquanto o
escrevia. Mas escreveu assim mesmo.
No entanto, em vez de celebrações e noite de
autógrafos, Mises naquele ano se deparou com outro evento que mudaria
(novamente) sua vida. Ele foi avisado
por seus patrocinadores em Genebra que havia um problema. Vários judeus estavam se refugiando na
Suíça. Ele foi alertado de que deveria
procurar outro lar. Os Estados Unidos
eram o novo porto seguro.
Mises então começou a escrever cartas pedindo por
posições universitárias nos EUA, mas tente imaginar o que isso
significava. Ele só falava alemão. Suas habilidades em inglês se resumiam à
leitura. Ele teria de aprender o idioma
ao ponto de se tornar exímio o bastante para poder dar aulas. Ele havia perdido todos os seus arquivos,
monografias e livros. Ele não tinha
nenhum dinheiro. E ele não conhecia
ninguém influente nos EUA.
E havia um sério problema ideológico também nos
EUA. O país estava completamente
dominado e fascinado pela economia keynesiana. A profissão de economista havia sofrido um vendaval. Praticamente não mais existiam economistas
pró-livre mercado nos EUA, e não havia nenhum acadêmico defendendo esta
causa. No final, Mises se mudou para os
EUA sem ter nenhuma garantia de nada. E
já estava com quase 60 anos.
Quando ele chegou aos EUA em 1940 como um judeu
refugiado, ele era praticamente um desconhecido no país. Ele não tinha nenhum cargo assalariado de
professor. Ele já tinha 59 anos. Ele jamais havia estado nos EUA. Mas ele teve uma grande sorte: havia um
jornalista nos EUA que não apenas conhecia sua obra, como também havia se
tornado um defensor dela em suas colunas de jornal. Seu nome era Henry
Hazlitt. Foi Hazlitt quem estimulou
alguns empreendedores, como Lawrence Fertig, a fazer doações recorrentes a
Mises.
Mises então passou a depender exclusivamente das
doações destes poucos amigos e de alguns artigos que eram ocasionalmente
encomendados por algumas revistas especializadas, a pedido destes amigos.
Durante os 30 anos seguintes, Mises foi uma voz
solitária e sem recursos em defesa do livre mercado, lutando contra a vastidão
keynesiana que dominava a paisagem mundial. Ele criou um seminário na New York University (NYU) para estudantes
universitários, o qual durou 25 anos. Murray
Rothbard era um dos frequentadores assíduos, embora apenas como ouvinte. Mises nunca recebeu salário da universidade,
a qual o relegou ao status de professor visitante. Ele recebia ajuda de doadores. No entanto, não há hoje nenhum professor do
departamento de economia da NYU que seja lembrado. Todos foram pessoas sem importância e não
deixaram nenhum legado.
A publicação de seu livro Ação Humana, pela Yale University Press em
1949, começou a estabelecer sua reputação nos EUA. O livro vendeu muito mais do que havia sido
inicialmente previsto. Este livro foi o
primeiro a conter uma teoria abrangente e integrada da economia de livre
mercado. Até então, nada remotamente
parecido havia sido publicado. Foram
muito poucas as pessoas que se deram conta disso em 1949, mas qualquer um que
já tenha estudado a história do pensamento econômico sabe que é neste livro que
se encontra a primeira aplicação abrangente da teoria econômica para toda uma
economia de mercado. A análise é
integrada em termos da defesa econômica austríaca da teoria do valor subjetivo
e do individualismo
metodológico.
Ele continuou escrevendo após 1949. Seus livros foram vendidos pela Foundation for Economic Education
(FEE), a qual fez com que ele ganhasse a atenção de leitores que
defendiam o livre mercado. Seus artigos
começaram a aparecer na revista publicada pela FEE, The Freeman. A revista não era de ampla circulação nos
meios acadêmicos, mas era bastante lida pela direita.
Eu comprei uma cópia de Ação Humana em 1960. Naquela
época, eu já estava a par da importância de Mises para a história do pensamento
econômico, mas, em minha universidade, eu provavelmente era o único estudante
que o conhecia.
Mises sempre foi um obstinado em sua dedicação aos
princípios do livre mercado. Provavelmente mais do que qualquer outro grande intelectual do século
XX, ele era conhecido entre seus pares como alguém inflexível, que não fazia
concessões àquilo em que acreditava. Pelos economistas da Escola de Chicago ele foi chamado de ideólogo. E eles estavam certos. Por causa de sua consistência na aplicação do
princípio do não-intervencionismo em cada setor da economia e, acima de tudo,
por causa de sua oposição a bancos centrais e à manipulação estatal da moeda,
os economistas o consideravam excêntrico. "Excêntrico", para eles, era sinônimo de "rigorosamente consistente".
Assim como os nazistas, os soviéticos também sabiam
quem era Mises. Após a queda do nazismo,
os soviéticos confiscaram as obras de Mises então em posse dos nazistas e as
enviaram a Moscou. Suas obras roubadas
ficaram em Moscou e nunca foram descobertas por nenhum economista ocidental até
a década de 1980. O que foi uma grande
ironia: economistas ocidentais não sabiam quem era Mises, mas os economistas
soviéticos sim. Isto se tornou ainda
mais verdadeiro em meados da década de 1980, quando a economia soviética
começou a se desintegrar, exatamente como Mises havia previsto que aconteceria.
A grande vantagem de Mises sobre praticamente todos
os seus colegas era esta: ele escrevia claramente. Todos os outros economistas, além de
escreverem da maneira convoluta e repleta de jargões, enchem seus escritos de
equações. Mises não utilizava equações e
nem recorria a jargões. Ele escrevia
seus parágrafos utilizando sentenças que eram desenvolvidas de maneira sucessiva. Você pode começar pela primeira página de
qualquer um de seus livros e, se prestar atenção, chegará ao fim sem se tornar
confuso em momento algum.
Isto era uma grande vantagem, pois as pessoas
comuns que se interessavam por economia conseguiam seguir sua lógica. Sua reputação se espalhou no final de década
de 1950 e por toda a década de 1960 por causa de seus artigos na The
Freeman. Esta revista chegou a ter uma
circulação de 40 mil exemplares em alguns anos. Não eram muitos os economistas que conseguiam, naquela época, atingir um
público tão amplo e tão variado.
Mises realmente se manteve firme aos seus
princípios durante todo o seu tempo de vida. Ele se manteve firme de maneira tão tenaz e obstinada que, por décadas,
ele não teve influência alguma sobre a comunidade acadêmica. Todos os economistas o desprezavam ou
ignoravam. Porém, após sua morte em
1973, sua influência começou a crescer. Em 1974, seu discípulo F.A. Hayek ganhou o Prêmio Nobel de
Economia. Pouco a pouco, a reputação de
Mises foi se espraiando.
Hoje, há vários
Institutos Mises ao redor do mundo — todos surgidos voluntária e
espontaneamente, sem nenhum financiamento centralizado —, e seu nome é
atualmente mais conhecido do que o de quase todos os outros economistas de sua
geração, tanto os de antes da Primeira Guerra Mundial quanto os de depois da Segunda Guerra
Mundial. O cidadão comum certamente não
está familiarizado com os nomes da maioria dos economistas da primeira metade
do século XX, e certamente é incapaz de ler e compreender as obras de
praticamente qualquer economista da segunda metade.
Portanto, exatamente porque Mises nunca se mostrou
disposto a fazer concessões, especialmente na área de metodologia, seu legado tem sido muito maior do que o da maioria de
seus finados colegas. O legado de Mises
só cresce; o deles, praticamente não existe.
Conclusão
Mises deve ser julgado não somente como um pensador extraordinariamente
brilhante, mas também como um ser humano extraordinariamente corajoso. Ele acima de tudo sempre se manteve inarredavelmente apegado à verdade
de suas convicções, sem se importar com o resto, e sempre preparado e
disposto a atuar sozinho, sem uma única ajuda, na defesa da verdade. Ele jamais se importou um buscar fama pessoal, posições de prestígio ou
ganhos financeiros, pois isso significaria ter de sacrificar seus
princípios.
Durante toda a sua vida, ele foi marginalizado e ignorado
pelo establishment intelectual, pois a verdade de suas visões e a
sinceridade e o poder com que as defendia e desenvolvia estraçalhava
todo o emaranhado de mentiras e falácias sobre o qual a maioria dos
intelectuais de sua época — bem como os de hoje — construiu suas
carreiras profissionais.
Seus seminários, assim como seus escritos, eram caracterizados pelo mais
alto nível de erudição e sabedoria, e sempre mantendo o mais profundo
respeito pelas ideias. Mises jamais se interessou pela motivação
pessoal ou pelo caráter de um autor, e sim por uma só questão: saber se
as ideias daquela pessoa eram verdadeiras ou falsas.
Da mesma forma,
sua postura e comportamento pessoal sempre foram altamente respeitosos,
reservados e fonte de amigável encorajamento. Ele constantemente se
esforçava para extrair de seus alunos o que neles havia de melhor, para
ressaltar suas melhores qualidades.
O mundo vive hoje mais uma era de planejamento
econômico, e estamos vendo os economistas se dividirem em dois lados. A esmagadora maioria se limita a dizer
exatamente aquilo que os regimes querem ouvir. Afastar-se muito da ideologia dominante é um risco que poucos estão
dispostos a correr. As recompensas
materiais são quase nulas, e há muito a perder.
Ser um economista íntegro significa não se furtar a
dizer coisas que as pessoas não querem ouvir; significa, principalmente, dizer coisas que
o regime não quer ouvir. Para ser um bom
economista, é necessário bem mais do que apenas conhecimento técnico. É necessário ter coragem moral. E, no mercado atual, tal atitude está ainda mais escassa do que a lógica econômica.
Assim como Mises necessitou da ajuda de Hazlitt e
Fertig, economistas com coragem moral necessitam de apoiadores e de
instituições que os suportem e deem voz a eles. Este é um fardo que tem de ser encarado. Como o próprio Mises dizia, a única maneira de se combater ideias ruins
é com ideias boas. E, no final, ninguém
estará a salvo se a civilização for destruída em consequência do predomínio das
ideias ruins.