Gustavo Franco, um dos principais mentores do Plano Real
Quando
Itamar Franco assumiu interinamente a Presidência da República no dia 29 de
dezembro de 1992, imediatamente após a renúncia de Fernando Collor, a inflação
acumulada em 12 meses estava em 1.119%.
Em 1991, ela havia sido de 472%.
Em 1990, de 1.621%.
Com o país mergulhado
em uma crise política e com a economia em frangalhos, não havia a menor
perspectiva entre a população de que houvesse qualquer arrefecimento na
inflação de preços.
Também
em decorrência da recessão, a arrecadação tributária não era suficiente para
cobrir as despesas. Como consequência, o
governo apenas ordenava ao Banco Central — que, na época, podia comprar
títulos diretamente do Tesouro — que imprimisse o dinheiro necessário para
fazer frente às despesas. O resultado
era um moto-perpétuo inflacionário.
Eis
o gráfico do singelo crescimento da base monetária — variável totalmente sob
o controle do Banco Central — durante o governo Collor. (É preciso dividir o gráfico em dois, pois um
aumento de 28.380% não cabe em apenas um só gráfico).

Gráfico 1: evolução da base monetária, março
de 1990 a julho de 1991

Gráfico 2: evolução da base monetária, julho
de 1991 a dezembro de 1992
Tal
prática de imprimir dinheiro para fazer frente às despesas governamentais não
cobertas por impostos já era tradicional na economia brasileira; porém, no
início da década de 1990, ela havia chegado ao ápice. Em abril de 1990, por exemplo, a inflação
acumulada em 12 meses foi de 6.821%, recorde até hoje absoluto em nossa
história.
Após
mais de uma década com inflação de preços anual acima dos 100% — a média de
inflação de preços anual entre 1980 e 1992 foi de incríveis 694% —, uma
solução definitiva era urgente.
O problema da hiperinflação
Além
de toda a distribuição de renda às avessas que a inflação monetária gera — a
qual foi a responsável pela explosão da disparidade de renda no
Brasil na década de 1980 —, ela também provoca dois problemas adicionais
que inviabilizam qualquer chance de crescimento econômico sustentável:
1)
A inflação gera uma falsificação contábil que faz com que as empresas sobrestimem
seus lucros e, consequentemente, incorram em um involuntário consumo do capital
próprio. Isto ocorre porque, durante a
hiperinflação, a depreciação dos bens de capital continua sendo computada em
termos de seus custos históricos e não em termos de seus reais custos de
reposição (necessariamente mais altos).
Esta subestimação da depreciação gera uma superestimação dos lucros, o
que consequentemente fará com que a empresa consuma um capital que não possui.
2)
Adicionalmente, a hiperinflação impossibilita que os empreendedores sejam
capazes de antecipar — mesmo que aproximadamente — quais serão os preços dos
bens dali a alguns meses. Logo, qualquer
investimento de longo prazo se torna inviável.
Os empreendedores passam a se concentrar em projetos de curto prazo,
projetos visando ao futuro mais imediato — por exemplo, no setor de serviços,
nos setores de atacado e varejo, e até mesmo em empreendimentos que lidam com a
especulação de vários tipos de commodities.
Assim,
quando o processo de estimativa empreendedorial se torna incapaz de calcular
com alguma exatidão quais recursos podem ser empregados lucrativamente em
projetos de longo prazo, a estrutura de produção da economia é radicalmente
"encurtada" e deixa de estar de acordo com as preferências dos consumidores,
tanto presentes quanto futuras. O caos
calculacional impera.
Esta
situação gera um círculo vicioso. A
hiperinflação contrai a estrutura de produção da economia, o que a deixa menos
produtiva. Uma economia menos produtiva
significa menos produtos no mercado em relação à demanda.
Menos produtos no mercado em conjunto com um acentuado aumento da oferta
monetária significam preços maiores. Esta
contínua inflação monetária exacerba a hiperinflação de preços, a qual contrai ainda mais
a estrutura de produção da economia, reiniciando o ciclo.
Daí
a baixa qualidade de vida da maioria da população brasileira durante a década
de 1980 e na primeira metade da de 1990.
O início
Estava
claro, portanto, que esta situação não poderia perdurar. Os velhos paliativos de trocar o nome da
moeda e cortar três zeros já haviam se comprovado um redundante fracasso. E não era necessário ser nenhum gênio
monetário — tampouco seguidor da Escola Austríaca — para entender que uma
hiperinflação contínua e crescente levaria à total destruição do sistema
monetário, destruindo por completo a divisão do trabalho (a qual é
possibilitada justamente pela existência do dinheiro) e retornando a economia
ao estado do escambo.
Vários
planos heterodoxos já haviam sido tentados desde meados da década de 1980: Plano Cruzado (I e II) em 1986; Plano Bresser
em 1987; Plano Verão em 1988/1989; e Plano Collor (I e II) em 1990 e 1991,
respectivamente. Todos envolviam
congelamento de preços (alguns deles, cortes de zeros das moedas). O governo congelava os preços, mas continuava
imprimindo dinheiro impavidamente, o que significa que os geniais burocratas restringiam
a oferta mas estimulavam a demanda. Ao
final de cada plano, a inflação de preços ressurgia com vigor redobrado. E ninguém entendia por quê.
Em
maio de 1993, partindo para o tudo ou nada, Itamar Franco nomeou Fernando
Henrique Cardoso — então Ministro das Relações Exteriores — para o Ministério
da Fazenda. Naquele mês, a inflação de
preços acumulada em 12 meses já estava em 1.348%.
Por
gozar de grande prestígio e por ter reconhecida capacidade intelectual, a
indicação de FHC foi recebida com entusiasmo.
Vislumbrava-se pela primeira vez alguém com genuína capacidade de
apresentar um plano econômico que ao menos reduzisse sensivelmente a inflação.
Embora
sempre houvesse admitido não entender nada de economia, Fernando Henrique ao
menos possuía bons contatos no mundo acadêmico, principalmente junto a um grupo
de economistas da PUC do Rio de Janeiro.
E foi a eles que FHC delegou a tarefa de debelar em definitivo a
inflação.
A
equipe de economistas encarregada desta espinhosa função era composta por Gustavo
Franco, Pedro Malan, André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha e Winston
Fritsch.
O Plano
Embora
repleto de jargões técnicos à primeira vista indecifráveis, o Plano Real na
verdade era como um livro de John Grisham: uma trama aparentemente complexa
encobrindo um enredo totalmente simples.
O objetivo da reforma monetária era lançar uma moeda cujo valor fosse,
senão atrelado, pelo menos muito próximo ao dólar. Na prática, o objetivo era fazer uma
dolarização da economia, mas sem que houvesse uma dolarização de fato, algo que
ofenderia nossos brios nacionalistas.
Como
iremos ver mais abaixo, fazer uma dolarização da economia — isto é,
simplesmente passar a utilizar o dólar como a moeda oficial do país (exatamente
como fez o Panamá)
— teria sido algo mais eficaz, muito pouco custoso e, principalmente, mais
propício à liberdade do fatigado e espoliado povo brasileiro. Porém, tanto por questões nacionalistas
quanto por motivos estatais, preferiu-se o caminho mais complexo, que foi a
criação e emissão de (mais uma) nova moeda.
Afinal, utilizar uma moeda estrangeira significa que o governo não mais
teria capacidade de imprimir dinheiro para financiar seus déficits, passando a
depender exclusivamente de impostos e empréstimos para cobrir seus gastos. E, como sabemos, um governo só aceita vestir
uma camisa-de-força se ela tiver um zíper na frente. Logo, a opção pela criação de (mais) uma
moeda foi uma esperta manobra do governo para manter intacto seu poder de
imprimir dinheiro, não obstante todos os estragos que já haviam sido causados
em decorrência da hiperinflação por ele gerada.
O
Plano Real dependia de cinco fatores essenciais:
1)
Zerar o déficit público — justamente o fator que gerava a emissão de dinheiro. Para isso, haveria um aumento de cinco pontos
percentuais em todos os impostos federais e privatizações de estatais,
principalmente dos bancos estaduais;
2)
Desindexar a economia — isto é, acabar com as correções automáticas de preços
e salários, que eram reajustados automaticamente de acordo com a inflação
passada (prática essa determinada por lei).
Em termos técnicos, isso ficou conhecido como "acabar com a inércia
inflacionária";
3)
Reindexar a economia de acordo com a taxa de câmbio — isto é, fazer com que
preços e salários variassem de acordo com o dólar. Na prática, o dólar se tornava o novo
indexador.
4)
Abrir a economia por meio da redução das tarifas de importação — tudo era
válido para combater qualquer escalada de preços (bons tempos);
5)
Aumentar acentuadamente as reservas internacionais — isto é, o governo deveria
comprar dólares continuamente, acumulando-os até o momento da introdução da
nova moeda. Quanto mais dólares o
governo tivesse em suas reservas, maior seria a confiança dos investidores
internacionais na seriedade e na robustez do plano, e menores seriam as chances
de um ataque especulativo e de uma fuga de capitais.
Uma
vez cumpridas estas cinco medidas, a nova moeda nasceria com um valor
praticamente igual ao dólar.
As etapas
No
dia 1º de agosto de 1993, houve a primeira medida, embora de efeito apenas
cosmético: mudou-se, mais uma vez, o nome da moeda, e cortou-se três
zeros. A moeda deixava de se chamar
Cruzeiro e passava a se chamar Cruzeiro Real.
A inflação de preços continuava em forte ascensão: seria de 33% só no
mês de agosto e de 1.730% no acumulado de 12 meses.
Esta
ascensão inflacionária decorria do fato de que, além de imprimir dinheiro para
saldar o seu déficit, o governo também imprimia para comprar dólares, algo que
ele continuaria fazendo até o dia da introdução do real.
No
dia 7 de dezembro de 1993, finalmente foi apresentado o plano de estabilização
especificando os cinco itens elencados acima.
Veja aqui um curto
vídeo de uma reportagem do Jornal Nacional.
A
mudança seguinte — e a mais importante — ocorreria só em 28 de fevereiro de
1994: a introdução da URV, Unidade Real de Valor. (A inflação de fevereiro foi de 40,3% e a
acumulada em 12 meses já estava em 3.025%).
A
URV foi apenas um nome técnico tupiniquim para se evitar a palavra
'dolarização'. Na prática, a URV nada
mais era do que a cotação do dólar do dia anterior. A taxa de câmbio do final de cada dia era estabelecida
como sendo o valor da URV do dia seguinte.
Este valor serviria de indexador para todos os valores da economia. Assim, os bens e serviços precificados em Cruzeiro Real
deveriam ser divididos pela URV (taxa de câmbio determinada no dia anterior)
para se encontrar os preços em Real.
Veja
aqui um exemplo aleatório: no dia 28 de março de 1994, a URV foi
determinada em CR$895,03. Isto significa
que, no dia 29 de março, os preços em Cruzeiro Real deveriam ser divididos por 895,03
para se obter o preço em
Real. Este processo
era repetido diariamente. Dizia-se,
assim, que a economia estava "urvizada".
O
objetivo desta indexação em URV era, paradoxalmente, o de desindexar toda a
economia, apagando aquilo que era chamado de "memória inflacionária". Todos os contratos e negociações salariais
deveriam ser urvizados. A intenção era
fazer com que, no dia da transição do Cruzeiro Real para o Real (a moeda só
entraria em circulação no dia 1º de julho), os preços fossem exatamente aqueles
do dia anterior, de modo a não gerar sobressaltos e nem confusão. Veja aqui uma curta reportagem
do Jornal Nacional, ainda em junho, ensinando as pessoas a como fazer esta
conta básica, já as preparando para o dia da transição.
Finalmente,
no dia 29 de junho de 1994, uma quarta-feira, a taxa de câmbio encerrou o dia
com o dólar
valendo CR$2.750,00. Portanto, no
dia 30 de junho, quinta-feira, todos os valores em Cruzeiro Real
deveriam ser divididos por 2.750 para se obter os valores em Real.
Todas as contas bancárias, todas as aplicações e
investimentos foram automaticamente convertidos em Real.
CR$2.750 foi, portanto, a paridade estabelecida entre
o Cruzeiro Real e o Real. Morria o
Cruzeiro Real e, na sexta-feira, dia 1º de julho, nascia o Real, valendo
exatamente 1 dólar (pelo menos naquela sexta-feira). Toda a base monetária foi trocada de acordo
com esta paridade de CR$2.750,00 para cada R$1,00. Quem estivesse em posse de cédulas de
Cruzeiro Real deveria trocá-las nos bancos por cédulas e moedas de Real.
Em
junho de 1994, a inflação de preços foi de 47,43% e a inflação acumulada em 12
meses foi de 4.922%.
Alguns gráficos
A
seguir, veja o gráfico da variação da base monetária desde 1º de agosto de
1993, quando surgiu o Cruzeiro Real, até 30 de junho de 1994, quando ele
morreu. Em menos de um ano de
existência, ela aumentou 3.100%.

Gráfico 3: evolução da base monetária do
Cruzeiro Real, de agosto de 1993 a junho de 1994
Este
aumento foi majoritariamente para a compra de dólares para se acumular reservas
internacionais. Veja abaixo a cotação
diária do dólar para este mesmo período.
Como era de se imaginar, observe a incrível desvalorização ocorrida no
período, decorrente desta enorme impressão de dinheiro.

Gráfico 4: taxa de câmbio do Cruzeiro Real,
de 1º agosto de 1993 a 29 de junho de
1994.
Agora,
o gráfico da variação das reservas internacionais desde janeiro de 1980. Observe que elas começaram a crescer em
definitivo a partir do final de 1991, sob a gestão de Marcílio Marques Moreira
no Ministério da Fazenda, indicando que já havia um plano esboçado desde aquela
data.

Gráfico 5: evolução das reservas
internacionais, janeiro de 1980 a junho de 1994
E
o gráfico da taxa de inflação acumulada em 12 meses desde 1987. A queda acentuada se deveu ao Plano Collor,
que envolveu sequestro de poupança e congelamento de preços e salários. Porém, tão logo os ativos confiscados foram
sendo desbloqueados, os preços voltaram a disparar.

Gráfico 6: IPCA acumulado em 12 meses, de
janeiro de 1987 a junho de 1994
Transição sem susto
A
transição do Cruzeiro Real para o Real, na sexta-feira, 1º de julho de 1994,
foi sem susto e sem tumultos.
Obviamente, em um país acostumado a confiscos, congelamentos e tabelamentos,
houve quem remarcasse os preços de maneira mais "abusada", justamente tentando
se precaver contra estas possíveis surpresas, algo que obviamente irritou o
governo. Porém, fora estes incidentes
localizados, a transição se deu de maneira suave e tranquila. A inflação de preços, que havia sido de
47,43% em junho, passou para 6,84% em julho, 1,86% em agosto, 1,53% em
setembro, 2,62% em outubro, 2,81% em novembro e 1,71% em dezembro.
Câmbio fixo?
Um
dos maiores mitos que persistem até hoje é aquele que afirma que o Plano Real
baseou-se um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio fixo". Isso é falso.
O câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia. Já no primeiro dia útil após a transição —
segunda-feira, 4 de julho de 1994 — a taxa de câmbio passou a flutuar. A partir daí, seu valor foi sendo determinado
ora pelo mercado ora pela pura intervenção do Banco Central. O BACEN se limitava a, diariamente,
estabelecer um piso e um teto para a taxa de câmbio — algo tecnicamente
chamado de 'banda cambial' —, mas estes valores aumentavam diariamente (ver
gráfico 7). E assim permaneceu até o
"fim" daquilo que se convencionou chamar de "primeira fase" do Plano Real, no
dia 13 de janeiro de 1999.
Obviamente,
houve períodos de intervenção intensa, principalmente no segundo semestre de
1998 e no início de 1999, quando o BACEN se esforçou — leia-se 'vendeu
reservas internacionais' — para tentar manter um determinado valor para o
câmbio (detalhes mais abaixo). Mas
câmbio genuinamente fixo nunca houve. A
seguir, um gráfico com as cotações diárias do câmbio, de 1º de julho de 1994 a
12 de janeiro de 1999.

Gráfico 7: taxa de câmbio diária, de 1º de
julho de 1994 a 12 de janeiro de 1999
Por que o Real foi aceito
Adeptos
da teoria austríaca sabem que uma moeda só é imediatamente aceita após o seu
surgimento caso ela já possua um histórico como meio de troca. Se você criar uma moeda de papel hoje, do
nada, é muito provável que ninguém irá aceitá-la. Da mesma forma, um país que troque o seu
sistema monetário, introduzindo uma nova moeda, pode até ser capaz de fazer —
por meio da força, da coerção e das leis de curso forçado — com que seus
cidadãos a utilizem; porém, dificilmente conseguirá fazer com que investidores
estrangeiros confiem nesta moeda.
Tampouco os governos de outros países.
Por
isso, caso o Brasil simplesmente trocasse o nome da sua moeda, é bastante
provável que ela não fosse levada a sério pela comunidade internacional —
principalmente levando-se em conta nosso histórico nada favorável de libertinagem
monetária. Logo, apenas a criação de uma
nova moeda não seria capaz de fazer com que, logo em seus primeiros meses, ela
se apreciasse como o Real se apreciou, indo de uma taxa de câmbio de R$1/US$
para R$0,84/US$. Portanto, qual foi o
segredo?
O
segredo é aquilo que pode ser chamado de "qualidade da moeda". A qualidade da moeda é determinada ou pelos
ativos que a lastreiam ou pelos ativos pelos quais ela pode ser trocada sob
demanda e sem restrição. No caso do
Real, o segredo estava justamente no tamanho das reservas internacionais em
dólares.
Ao
final de julho de 1994, a quantidade de reais em poder do público e em
contas-correntes (ou seja, o M1) era de R$10,687
bilhões. Já a quantidade de reservas
internacionais era de US$43,09 bilhões.
Isso
significa que mesmo se todos os reais em circulação na economia brasileira
fossem convertidos em dólares, ainda sobrariam (muitos) dólares. Em outras palavras, na eventualidade de uma
crise econômica mundial que assustasse os investidores estrangeiros e os
levasse a retirar todos os seus investimentos do Brasil, eles não teriam por
que se preocupar em não conseguir converter reais em dólares. Havia dólares
sobrando. Foi justamente esta "qualidade
do Real" — o fato de estar lastreado abundantemente em dólares — que garantiu
a confiança dos investidores, levando à sua imediata apreciação logo após o seu
surgimento.
E
foi exatamente neste lastro em dólares que o Real manteve boa parte da sua
credibilidade desde seu lançamento.
Enquanto as reservas internacionais fossem maiores que o M1, os
investidores estrangeiros estariam seguros de que não haveria perigo de não
conseguirem converter reais em dólares. Mais
ainda, eles estariam seguros de que o governo não recorreria — como já fizera
várias vezes no passado — às maxidesvalorizarções cambiais para evitar que uma
repentina fuga de dólares gerasse um total esgotamento das reservas
internacionais.
As
reservas em dólares foram toda a base do Plano Real. Daí a importância das compras de dólares
iniciadas ainda no final de 1991.
Porém,
manter estas reservas internacionais não era fácil, principalmente levando-se
em conta que a balança comercial e de serviços (tecnicamente chamada de
'Transações Correntes') tornou-se negativa a partir de outubro de 1994 (e assim
permaneceu até o fim da "primeira fase" do Plano Real). Dado que havia esta saída de dólares por meio
deste déficit nas transações correntes, o país tinha de manter juros elevados
para atrair capital externo (via investimentos em títulos do governo, no
mercado financeiro e em investimentos diretos; em terminologia contábil, diz-se
que esses dólares estão entrando na conta
capital e financeira) para mais do que compensar esta saída de dólares.
E
esta foi justamente a "mácula" da primeira fase do Plano Real: a necessidade de
manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a confiança da
comunidade internacional no Plano. Não bastasse isso, o governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB (não havia sequer superávit primário). Tamanha necessidade de financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.
Eis
um gráfico das taxas de juros determinadas pelo Banco Central para garantir
este influxo contínuo de dólares via conta capital.

Gráfico 8: taxa de juros do determinada pelo
Banco Central, de 1º julho de 1994 a 31 de dezembro de 1998
Observe
a disparada dos juros em outubro de 1997, em decorrência da crise asiática, que
gerou uma fuga de capitais ao redor do mundo, e em meados de 1998, quando a
primeira fase do Plano Real começou a desabar, pelos motivos que serão vistos
logo abaixo.
A boa fase
Como
explicado acima, a genuína âncora do Plano Real e da sua estabilidade era o
volume de suas reservas internacionais.
Enquanto o volume de dólares fosse maior do que o M1, toda e qualquer
conversão de reais em dólares estava garantida, o que trazia tranquilidade aos
investidores, que assim não precisavam se preocupar com desvalorizações
cambiais repentinas para impedir o esgotamento das reservas internacionais.
Enquanto
esta estabilidade fosse garantida, o real desfrutaria do status de moeda forte
e segura. Justamente para garantir que o
volume de reservas internacionais fosse maior que o M1, a expansão monetária
era contida. Isso trouxe uma substancial
redução na inflação de preços, que caiu de 916% em 1994 para 1,65% em 1998 (o
menor valor em toda a história do real).
Eis o gráfico da inflação de preços acumulada em 12 meses (a partir de
julho de 1995, exatamente um ano após a introdução do real):

Gráfico 9: IPCA acumulado em 12 meses, de
julho de 1995 a dezembro de 1998
Para
ajudar neste controle da inflação de preços, a economia passou por um processo
de modernização. Além da privatização de
empresas estatais ineficientes, houve também a extremamente importante
privatização de bancos estaduais, genuínas usinas de expansão monetária, pois
eram utilizados por seus respectivos governos como fonte fácil e farta de
financiamento. Estes bancos operavam
praticamente sem lei e sob ordens de seus governos estaduais, criando meios de
pagamento a rodo apenas para financiar seus descalabros. Os desvalidos de todo o resto do país pagavam
a conta
Os
melhores exemplos eram o Banespa e o BANERJ. A dupla Quércia-Brizola
punha fogo nessas instituições, fazendo-as conceder empréstimos para
apaniguados políticos, para estatais deficitárias e, principalmente, para seus
vorazes governos estaduais, ao mesmo tempo em que esses próprios bancos
incorriam em déficits vultosos. E quem socorria esses bancos era o Banco
Central, que injetava dinheiro neles sempre que necessário, aumentando tanto a base
monetária quanto o M1. Não à toa, a inflação só passou a ser menor após
esses bancos terem sido tirados da órbita de seus governos estaduais.
Mas
a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco Meridional, o Banco da
Amazônia, o Banco do Nordeste, o os bancos estaduais de Santa Catarina, Ceará,
Goiás, Pará, Alagoas, Minas Gerais, Mato Grosso, Bahia, Acre e Maranhão não
ficavam atrás. Todos aprontavam e recebiam vultosas injeções do Banco
Central. Os bancos estaduais não tinham de prestar contas a
ninguém. Sua gerência política fazia a farra com os recursos, o Banco
Central imprimia o dinheiro para cobrir a farra e o resto da população sofria
as consequências da libertinagem.
Toda
esta depravação, felizmente, foi interrompida durante a segunda metade da
década de 1990. Sem esta medida,
dificilmente a inflação de preços cairia para menos de um dígito.
Por que o Plano Real acabou
As
coisas vinham aparentemente bem até o segundo semestre de 1998, quando
começaram a degringolar. E no dia 13 de
janeiro de 1999, o Plano Real, ao menos como havia sido originalmente
concebido, acabou.
Por
quê?
O
gráfico a seguir mostra a variação das reservas internacionais e a variação do
M1, de julho de 1994 a janeiro de 1999.

Gráfico 10: reservas internacionais (linha
azul, eixo da direita) vs. M1 (linha vermelha, eixo da esquerda)
Observe
que, enquanto as reservas internacionais (linha azul) se mantiveram acima do M1
(linha vermelha), a situação se manteve relativamente tranquila.
Já
no segundo semestre de 1997, as reservas caíram US$10 bilhões (de US$62,5 para
US$52,5 bilhões) em decorrência da crise asiática. Consequentemente, o Banco Central deu uma
pancada nos juros, elevando-os de 18,75% para 46%, como mostrado no gráfico
8. Isso não apenas estancou a fuga de
capitais, como ainda foi eficaz em atrair um volume ainda maior de capital
estrangeiro. Em abril de 1998, o país
atingiria um volume até então recorde de reservas internacionais: US$74,656
bilhões, com um M1 na casa dos R$ 42 bilhões.
O câmbio, como mostra o gráfico 7, estava por volta de R$ 1,13. Ou seja, mesmo se todo o M1 fosse convertido
em dólares, ainda sobraria uma enormidade de reservas internacionais. Logo, o cenário parecia tranquilo.
Até
que no dia 17 de agosto de 1998, a coisa voltou a degringolar. A Rússia entrou em crise financeira, e o
governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma
moratória. Adicionalmente, a retomada
dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas
e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros,
que ainda estavam abalados pela crise asiática.
Houve uma maciça fuga para o dólar.
Em
julho, as reservas internacionais do Brasil estavam em US$70,2 bilhões. Em novembro, elas já haviam despencado para
US$41,2 bilhões. E no início de janeiro
de 1999, continuaram caindo para US$36 bilhões.
Simultaneamente, o M1 havia crescido de R$42 bilhões para R$49 bilhões.
Por
que as reservas internacionais despencaram assim tão maciçamente? Porque o Banco Central queria impedir de
qualquer maneira a inevitável apreciação do dólar, ainda que ela fosse apenas
momentânea. A explicação é a seguinte:
A
crise asiática no segundo semestre de 1997 havia gerado fortes desvalorizações
no baht tailandês, no novo dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit
malaio, no won sul-coreano, no peso filipino e no dólar cingapuriano. O dólar de Hong Kong, que opera sob um
Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta.
Com
a crise russa, um ano depois, Hong Kong voltou a ser atacada por
especuladores. As autoridades monetárias
do país venderam, em duas semanas, US$15 bilhões de suas reservas de US$96,5
bilhões. A âncora cambial se manteve. Com isso, o Brasil se tornou a bola da
vez. Especuladores e investidores
desconfiavam que o Banco Central não fosse capaz de manter sua política de venda de
dólares a fim de manter o câmbio relativamente inalterado (na Ásia, apenas Hong
Kong havia obtido sucesso). O crescente endividamento do governo prenunciava calotes. Temerosos quanto a este calote e quanto a uma iminente desvalorização do real, investidores estrangeiros começaram a tirar seus dólares do Brasil. Paralelamente, os especuladores também atacaram.
Durante
todo este período de grande demanda por dólares, houve obviamente uma forte
tendência de valorização da moeda americana, algo que, deixada à lei da oferta
e da demanda, poderia mandar o câmbio para valores "indesejados" pelo
governo. Ato contínuo, para evitar esta
desvalorização do real, o Banco Central vendeu maciçamente os dólares de suas
reservas internacionais, justamente para impedir essa valorização da moeda
americana. US$34 bilhões foram queimados
apenas para evitar que o câmbio se alterasse mais acentuadamente (algo nada bom
às vésperas de uma eleição presidencial).
Daí a redução de US$70,2 bilhões para US$36 bilhões de dólares nas
reservas internacionais em menos de seis meses.
E o gráfico 7 mostra que o Banco Central obteve êxito: até o final de
1998, a trajetória de valorização do dólar se manteve exatamente dentro da
tendência histórica.
Porém,
tal política obviamente era insustentável.
Chegaria um momento em que as reservas internacionais estariam em um
ponto crítico. Se a tendência se
mantivesse, elas poderiam ser totalmente aniquiladas. Por outro lado, caso o BACEN nada tivesse
feito, o dólar realmente se valorizaria acentuadamente. De novo, em época eleição presidencial, isto
não seria tolerável.
Até
que, no dia 13 de janeiro de 1999, com as reservas na metade de onde estavam em
abril de 1998, o Banco Central simplesmente desistiu de vender dólares para
segurar o câmbio. Simplesmente deixou
que ele flutuasse.
Veja
o completo histórico cambial do real.

Gráfico 11: taxa de câmbio diária, de 1º de
julho de 1994 a 29 de junho de 2012
A segunda fase do real
O
Plano Real original, portanto, acabou no dia 13 de janeiro de 1999. Dali em diante, foi adotado o famoso tripé
macroeconômico que conhecemos: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit
primário. Nenhum destes conceitos
existia no Plano Real.
Ao
menos em termos de inflação de preços, é muito difícil dizer que o atual
arranjo, no qual o Banco Central tem total liberdade para imprimir dinheiro,
seja superior ao arranjo anterior, no qual, embora também houvesse liberdade
para se imprimir dinheiro, o BACEN ao menos tinha de se preocupar com as
reservas internacionais e com a taxa de câmbio.
Veja
a evolução da inflação de preços acumulada em 12 meses. Ao passo que havia uma nítida tendência de
queda durante a primeira fase do real, a coisa desandou bastante na segunda
fase.

Gráfico 12: IPCA
acumulado em 12 meses, de janeiro de 1996 a maio de 2012
Durante
o Plano Real, a menor taxa de inflação de preços obtida foi de 1,65%. Na segunda fase do real, foi de 3%.
Adicionalmente,
o atual arranjo monetário é mais propício à formação de bolhas e ciclos
econômicos, justamente pela maior liberdade do Banco Central em imprimir
dinheiro e por ele poder manipular os juros sem, ao menos em teoria, ter de
levar em conta qual será o efeito na taxa de câmbio.
O que poderia ter sido feito
O
processo de transição para o real, com a implementação da URV, foi muito bem
feito. Somente o fato de não ter havido
congelamentos, confiscos e tabelamentos já torna o Plano Real merecedor de
grandes elogios.
No
entanto, o inevitável desejo de se criar uma nova moeda própria subtrai muito
do brilhantismo do plano. Se, no dia 30
de junho de 1994, todas as cédulas de Cruzeiro Real, bem como todos os
depósitos em conta-corrente, fossem simplesmente convertidos em dólar (e havia
dólares de sobra para isso, como ilustrado no gráfico 10), de modo que a moeda
americana se tornasse a moeda corrente do Brasil, a situação teria sido
bastante diferente.
Para
começar, não teria havido maiores confusões na precificação de bens, serviços e
salários, pois os próprios valores destes nos EUA já nos serviriam de
base. Adicionalmente, não haveria
motivos para reclamações sobre taxas de câmbio sobrevalorizadas. Indústrias que quisessem exportar mais teriam
apenas de reduzir seus preços. Não
haveria alternativas artificiais. Não
haveria como o governo selecionar vencedores e perdedores. Não haveria como o setor exportador fazer
lobby para manipulações na taxa de câmbio.
Do
ponto de vista da inflação de preços, também certamente estaríamos, até hoje,
em melhor situação. A oferta monetária no
Brasil — isto é, a oferta de dólares — iria variar de acordo com a demanda
dos brasileiros por moeda. Não haveria
uma política monetária doméstica: a oferta de dólares iria variar
automaticamente de acordo com as variações no balanço de pagamentos (transações
correntes mais conta capital e financeira).
Se houvesse um aumento na demanda por dólares, isto faria com que
empresas e famílias gastassem menos, o que reduziria a demanda por bens e
serviços não monetários. Seus preços
inevitavelmente cairiam, o que tornariam suas exportações mais atraentes no
mercado internacional. Este aumento nas
exportações geraria um superávit no balanço de pagamentos, trazendo mais
dólares para o Brasil. Este aumento na
oferta monetária faria com que os preços voltassem a subir, restaurando o
equilíbrio inicial no balanço de pagamentos.
E se houvesse uma redução na demanda por dólares, de modo que os
brasileiros aumentassem seus gastos, os preços subiriam, as importações
ficariam mais atraentes, dólares seriam enviados para fora, isto aumentaria a
demanda por dólares e reduziria os gastos dos brasileiros, os preços voltariam
a cair e o equilíbrio de antes seria restaurado. É justamente assim que uma economia funciona
também sob um padrão-ouro.
Adicionalmente,
houvéssemos nós adotado o dólar, que é a moeda internacional de troca,
certamente teríamos atraído muito mais investimentos estrangeiros, os quais não
precisariam se preocupar com desvalorizações cambiais. Consequentemente, os investidores não teriam
de planejar fugas repentinas. Ataques especulativos
como os de 1997 e 1998 não teriam ocorrido.
Outro
fator importante é a taxa de juros: operando diretamente com dólares — e não
com uma moeda dependente do dólar —, não haveria necessidade de se elevar
artificialmente os juros apenas para se manter uma elevada reserva de
dólares. Sem estes juros artificialmente
elevados — que restringem os investimentos —, a economia poderia ter se
desenvolvido muito mais.
Os
gastos do governo também seriam bem mais contidos. Sem o poder de imprimir dinheiro para
financiar seus gastos, o governo brasileiro só poderia se financiar via
impostos e via empréstimos. O primeiro
método é impopular, e possui um limite natural de crescimento. E caso recorresse majoritariamente ao segundo
método, os juros se tornariam inviáveis, pois o governo simplesmente não teria
como ficar pegando empréstimos ad eternum da população. Tal esquema de endividamento contínuo só
funciona bem quando o governo detém a impressora de dinheiro, pois assim ele pode
imprimir dinheiro não apenas para pagar parte do serviço de sua dívida, como também para manipular os juros da sua própria dívida. Sem essa impressora, o governo é forçado a se
manter estritamente dentro de um orçamento.
Com gastos governamentais contidos, a expansão do estado é
restringida. A liberdade da população aumenta.
Sim,
hoje sabemos que o dólar não mais é o que era na década de 1990. Porém, naquela época, só havia esta
opção. Ademais, a adoção do dólar não
implicaria a obrigatoriedade do seu uso; moedas paralelas deveriam também ser
liberadas, sejam elas estatais (como euro, iene, franco suíço, iuane) ou
privadas (que poderiam ser emitidas tendo como lastro metais preciosos, por
exemplo). A conversão para outra moeda
qualquer (tanto de outros países quanto privada) ou para um padrão-ouro seria
muito mais fácil neste ambiente. O exemplo do Panamá,
que utiliza o dólar como moeda corrente, que não possui Banco Central, e que
por isso é o único país da América Latina que nunca passou por uma crise
financeira, é uma boa mostra prática desta teoria.
Portanto,
a criação do real, embora bem executada, foi uma pirotecnia desnecessária. No final, foi apenas um estratagema que
permitiu ao estado manter — agora sem o descontentamento popular gerado pela
hiperinflação — sua principal fonte de financiamento, aquela instituição que
garante a ininterrupta expansão do seu tamanho e do seu poder: o Banco Central.
Perdemos,
em 1994, uma ótima chance de termos nos tornado muito mais livres.