quarta-feira, 18 jan 2012
O artigo a seguir foi extraído dos capítulos 6 e 7 do livro A Tragédia do Euro, a ser publicado em breve pelo IMB.
Reflitamos por um
momento a respeito do poder absoluto que o BCE exerce sobre a vida das pessoas
na União Monetária Europeia (UME).
Trata-se de um poder que nenhuma instituição acumularia em uma sociedade
livre. Embora a imensa concentração de
poder da era soviética seja algo do passado, o BCE ainda exerce total controle
sobre a esfera monetária; ele tem o poder de criar dinheiro e, com isso, ajudar
a moldar a destino da sociedade.
Imagine que você tivesse
o poder que o BCE possui. Você seria a
única pessoa com o direito de produzir dinheiro. Digamos que você pudesse criar dinheiro simplesmente
utilizando seu computador; ou, ainda mais simples, que você pudesse acessar sua
conta bancária pela internet e acrescentar a ela qualquer valor que você
desejasse. Imagine também que todas as
pessoas fossem obrigadas a aceitar o dinheiro que você produz. Você teria assim um poder comparável ao do
anel de Tolkien. Você utilizaria esse
poder? A tentação é praticamente
irresistível.
Você de fato pode tentar
utilizá-lo para fazer o bem. Porém, o
resultado deste arranjo seria um permanente influxo de bens e serviços para
você, sua família e seus amigos em troca deste dinheiro recém-produzido. Isso levaria a uma tendência de aumento nos
preços. Se você quisesse comprar uma
BMW, você simplesmente criaria mais dinheiro e ofereceria um lance maior do que
o daquela pessoa que teria comprado o veículo caso você não tivesse produzido
esse dinheiro adicional.
Consequentemente, os preços sobem.
Você obtém a BMW e aquela outra pessoa fica a ver navios. O vendedor poderá agora utilizar esse
dinheiro adicional e comprar uma casaca para sua mulher, elevando desta forma
os preços das casacas. A renda do
produtor de casacas irá aumentar e ele começará a gastar. Gradualmente, este novo dinheiro irá se
difundir por toda a economia, aumentando os preços e alterando o fluxo de bens
e serviços, fazendo com que estes sejam majoritariamente consumidos por aqueles
que primeiro recebem este dinheiro recém-criado.
Embora o uso do poder de
imprimir dinheiro seja praticamente irresistível, você tem de ter o cuidado de
não utilizá-lo exageradamente — e por vários motivos.
As pessoas podem ficar
irritadas, oferecer resistência ao seu esquema e tentar destruir seu
poder. Quando elas perceberem que você
pode simplesmente imprimir dinheiro para conseguir o que quer, e que, como
consequência disto, você fica mais rico e elas ficam mais pobres, elas podem se
revoltar. Antes de a situação chegar a
este ponto, seria sábio você querer restringir sua produção de dinheiro. Porém, há outras maneiras de diluir essa
fonte de inquietação e resistência. Você
pode desenvolver uma estratégia que dissimule a criação de dinheiro e crie
distrações. Você pode fazer com que o
dinheiro recém-criado adentre a economia passando por uma série de etapas
dentro de um intrincado sistema cujos mecanismos sejam complexos e difíceis de
entender. (Veremos mais à frente como o
BCE faz isso). Você pode também tentar
convencer as pessoas de que o esquema na realidade é bom para elas. Você pode alegar que o que você está fazendo
irá estabilizar o nível de preços ou que você está altruisticamente tentando
estimular o emprego. (Estes são, aliás,
os dois objetivos oficiais do BCE).
As pessoas podem
realmente começar a gostar de você e alegar que, não fosse você, o sistema
financeiro entraria em colapso. Concentre-se
em argumentar em prol de uma importante consequência do seu ato de criar
dinheiro em vez de se concentrar na própria criação de dinheiro em si: diga que
você controla as taxas de juros visando o melhor para a sociedade. Em outras palavras, concentre-se nos efeitos
de suas políticas (mudanças nas taxas de juros, por exemplo) e não naquilo que
você está fazendo para manipular os juros (criando dinheiro). Alegue que você está reduzindo os juros com o
intuito de possibilitar mais investimentos e aumentar o emprego. Utilize metáforas: sua criação de dinheiro é
o óleo lubrificante necessário para o funcionamento suave da economia. Desenvolva teorias que sustentem seu
esquema. Contrate economistas que apóiem
sua empreitada e que criem teorias monetárias que defendam suas atitudes. Tais economistas, obviamente, irão exigir
alguns agrados em troca; normalmente, irão se contentar com algumas pequenas
extravagâncias (passagens aéreas, carros, festas) que irão lhe custar algum
dinheiro a mais (facilmente imprimível).[1]
Uma de suas argumentações pode ser a de que você está fazendo todo o necessário
para evitar o "desastre" de uma eventual queda nos preços. Outra possível argumentação é que o sistema
bancário precisa de contínuas criações de dinheiro, caso contrário irá quebrar
— com consequências apocalípticas. Você
terá atingido seu objetivo quando vítimas e perdedores realmente começarem a
crer que você está lhes fazendo um bem ao criar dinheiro.
Por outro lado, você tem
de ser cuidadoso para não desarranjar sobremaneira a economia com sua criação
de dinheiro. Você certamente não vai
querer muito caos. Afinal, você ainda
vai querer continuar podendo comprar uma BMW e usufruir o progresso
tecnológico. Se as pessoas pararem de
poupar e de investir em decorrência da sua inflação, a produção de automóveis
será interrompida. Se a incerteza
aumentar muito, você terá de abrir mão de vários privilégios. Se o dinheiro recém-criado gerar muitos
distúrbios e distorções na forma de ciclos econômicos, a produtividade será
obstruída, e isso pode não ser algo de seu interesse. Certamente você não irá querer nem
hiperinflação nem um colapso do sistema monetário. Ninguém iria querer utilizar seu papel
pintado. Seu poder seria dizimado.
Como mencionado anteriormente,
é também do seu interesse cobrir suas pegadas.
Isso pode ser feito erigindo um sistema financeiro que seja complicado e
difícil de entender. Você pode conceder
privilégios para alguns em troca da eterna amizade e fidelidade deles. O privilégio consiste em deixar que eles participem
do seu monopólio, dando a eles algum tipo de sucursal para auxiliar na sua criação
de dinheiro. Estes indivíduos, e vamos
aqui chamá-los de banqueiros que praticam reservas fracionárias, não podem eles
próprios imprimir dinheiro; porém, se eles mantiverem dinheiro depositado no
seu banco na forma de reservas, eles poderão produzir múltiplos substitutos
monetários — depósitos em conta-corrente, por exemplo — utilizando como base
estas reservas.
Vejamos um exemplo simples
de como este sistema de sucursal funciona.
Suponhamos que você (o banco central) imprima €100.000 para comprar uma
BMW. Após a sua compra, a concessionária
deposita o dinheiro no Banco F. O
balancete do banco F será o seguinte.
Ativo
|
Passivo
|
Dinheiro €100.000
|
Depósito
da concessionária BMW €100.000
|
O banco mantém 100% de
reservas para o depósito da concessionária BMW, a qual depositou o dinheiro com
o intuito de tê-lo plenamente disponível sempre que quiser. De acordo com os princípios jurídicos legais,
o banco tem a obrigação de manter o dinheiro custodiado, disponibilizando-o
para o depositante sempre que demandado.
A oferta monetária neste nosso exemplo é composta pelo dinheiro criado
pelo banco central, o qual está depositado na conta bancária da concessionária,
criando assim um substituto monetário: € 100.000.
Agora imagine que
concedamos ao nosso amigo, o Banco F, o privilégio de manter como reservas
apenas 10% deste dinheiro que lhe foi depositado, em vez de manter a custódia
total. Isso significa que o banco pode
agora comprar ativos (comprar imóveis ou fazer empréstimos, por exemplo) e
pagar por eles utilizando o dinheiro que lhe foi depositado pela concessionária
BMW. Em outras palavras, o banco pode
agora fazer empréstimos para uma pessoa e colocar dinheiro novo na conta
bancária desta pessoa.
Ativo
|
Passivo
|
Dinheiro €100.000
Empréstimo para pessoa
Y €900.000
|
Depósito da
concessionária BMW €100.000
Depósito da pessoa
Y €100.000
|
Miraculosamente, o banco
também criou dinheiro novo na forma de conta bancária. Agora, a oferta monetária subiu para €1.000.000. A concessionária BMW possui €100.000 em sua
conta bancária, e a pessoa Y, €900.000.
O banco possui reservas em dinheiro totalizando €100.000. O altamente lucrativo esquema de criar
dinheiro só se tornou possível por causa do privilégio concedido pelo governo,
o qual, em nosso experimento, é você. De
certa forma, neste exemplo, o governo é o chefe do sistema bancário e a pessoa
Y pode ser o próprio governo. Você deu
aos bancos o privilégio de criar dinheiro e, em troca, os bancos lhe financiam
concedendo-lhe empréstimos ou comprando os títulos emitidos por você. Com efeito, quando deixamos de lado todas as
complexidades e distrações do sistema, torna-se mais fácil pensar no dono da
impressora de dinheiro, em você (o governo) e no sistema bancário como sendo
todos uma só instituição. O sistema
bancário de reservas fracionárias — nada mais do que um sistema de sucursais
do banco central — intensifica o poder de criação de dinheiro do banco central. Dos €100.000 impressos pelo banco central, o
sistema criou €1.000.000. Ao comprarem
os títulos que você emitiu, os preços destes títulos sobem e, consequentemente,
os juros que você tem de pagar sobre eles caem.
Você pode agora usufruir taxas de juros mais baixas.
As ligações entre bancos
centrais, bancos e o governo não são superficiais. Eles formam um grupo de elite que trabalha em
estrita cooperação. Banqueiros e
políticos raramente se criticam mutuamente.
Eles frequentemente conversam e saem para jantar juntos.
Olhando o cenário geral,
temos que o governo estabelece a sua própria impressora de dinheiro (banco
central). O banco central compra
majoritariamente títulos do governo, financiando o governo. O governo paga juros sobre estes títulos em
posse do banco central, aumentando desta forma os lucros do banco central. Estes lucros são então remetidos ao
governo. Quando os títulos maturam, o
governo não tem de pagar o principal, pois o banco central compra um novo
título para substituir o título vincendo; a dívida é rolada.
Olhando agora em um
nível mais detalhado, o sistema de sucursais bancárias entra em cena.
Os bancos têm o privilégio de poder criar dinheiro
(moeda eletrônica). Os bancos também
compram títulos do governo, ou os utilizam como colateral para obter
empréstimos do banco central. Bancos não
financiam apenas o governo por meio dessa criação de dinheiro; uma importante
parte da sua atividade é conceder também empréstimos a consumidores e
empreendedores. Todavia, o sistema
bancário jamais abandona o governo; ele sempre financia suas dívidas. E ele é recompensado pelo banco central, o
qual compra estes títulos do governo que estão em posse do sistema bancário, ou
os aceita como colateral para conceder novos empréstimos ao sistema bancário.
No final, o sistema é
simples. Uma impressora gera enormes
tentações: ser capaz de comprar votos ou realizar sonhos políticos, por
exemplo. Ao utilizar a impressora, a
redistribuição favorece o governo e aqueles que primeiro recebem esse dinheiro
recém-criado — em detrimento de todo o resto da população. Este esquema é providencialmente camuflado
pelo governo, o qual institucionalmente separa a maneira como o dinheiro
adentra a economia. O banco central é
chamado de "independente", mas continua comprando títulos do governo, coletando
juros sobre estes títulos e remetendo seus lucros de volta para o governo. Os bancos, operando em um sistema de
sucursais do banco central, participam das vantagens criadas pela produção de
dinheiro e, por sua vez, ajudam a financiar o governo. Embora as conexões sejam complicadas, ao
final tudo se resume a nada mais do que um indivíduo tendo uma impressora e a
utilizando em seu próprio benefício e em detrimento de todo o resto da
sociedade.
Diferenças entre o Fed e o BCE na
criação de dinheiro
Tanto o Fed quanto o BCE
praticam a lucrativa atividade da produção monopolista de papel-moeda
fiduciário de curso forçado. Eles
controlam as impressoras que produzem, respectivamente, dólares e euros. Porém, em termos de sua missão, o Fed é
inerentemente mais inflacionário devido ao seu mandato dualista: garantir
igualmente a estabilidade de preços e o crescimento econômico. O BCE, em contraste, possui objetivos mais
hierárquicos: garantir primeiro a estabilidade de preços; depois, dar sustento
às políticas econômicas da zona do euro.
No que diz respeito às
políticas operacionais, existem apenas pequenas diferenças entre os dois bancos
centrais. O Federal Reserve (Fed)
tradicionalmente compra e vende títulos governamentais com o intuito de influenciar
a oferta monetária e a taxa básica de juros.
Veja um balancete simplificado do Federal Reserve.
Ativo
|
Passivo
|
Títulos do
governo $50
Ouro $30
Reservas
internacionais $20
|
Cédulas $20
Reservas
bancárias $80
|
Neste exemplo, o Federal
Reserve criou uma base monetária de cem dólares, constituída de vinte dólares
em cédulas e oitenta dólares na forma de depósitos que os bancos mantêm junto
ao Fed (o compulsório). Contrabalançando
esse passivo, o Fed mantém ativos na forma de cinquenta dólares em títulos do
governo, trinta dólares em ouro, e vinte dólares em reservas internacionais. Baseando-se nestas cédulas e reservas bancárias,
o sistema bancário de reservas fracionárias pode expandir a oferta monetária da
economia, seja concedendo mais empréstimos ou comprando mais títulos do
governo.
Se o Fed quiser
acrescentar reservas bancárias ao sistema, ele normalmente compra títulos do
governo em posse dos bancos. Imaginemos
que o Fed compre cinquenta dólares em títulos do governo que está em posse do
sistema bancário. Isso implica um
aumento nos títulos do governo para $100 no lado dos ativos e aumento para $130
nas reservas bancárias no lado dos passivos.
Ativo
|
Passivo
|
Títulos do
governo $100
Ouro $30
Reservas
internacionais $20
|
Cédulas
$20
Reservas
bancárias $130
|
A compra de títulos
governamentais é chamada de operação de mercado aberto (operação no open market). O Fed normalmente recorre a operações de
mercado aberto uma vez por semana com o intuito de manipular a taxa básica de
juros da economia americana, isto é, a taxa de juros que os bancos cobram entre
si no mercado interbancário para emprestar suas reservas bancárias para outros
bancos ao final do dia. Quando as
reservas bancárias aumentam, a taxa básica de juros tende a cair, e vice versa. O enfoque dado à taxa básica de juros desvia
a atenção do esquema principal, a saber, o aumento da oferta monetária em prol
do governo e seus amigos. A iniciativa
de alterar a base monetária é toda do Fed.
Outra maneira de
aumentar as reservas bancárias é por meio de empréstimos aos bancos. Isso, no caso do Fed, pode ser feito na forma
de operações compromissadas, em que a iniciativa parte dos bancos (no lado dos
ativos, as operações compromissadas aumentam; no lado dos passivos, as reservas
bancárias também aumentam). Em uma
operação compromissada (também chamada no
Brasil de 'acordo de recompra'), o tomador de empréstimo concorda em vender
um título para o emprestador e em comprá-lo de volta no futuro a um preço
fixo. A diferença de preços representa a
taxa de juros paga. As operações
compromissadas do Fed são também uma forma de operação de mercado aberto. Elas ocorrem diariamente e, via de regra,
possuem um prazo de maturação muito pequeno (um dia).
Para poderem tomar
emprestado, via operações compromissadas, junto ao Fed, os bancos precisam
oferecer um ativo como garantia, também chamado de colateral. O colateral irá servir de garantia para o
Fed. Se o banco não puder quitar o
empréstimo, o Fed poderá utilizar esse colateral para tentar recuperar seus
fundos. O Fed tradicionalmente aceita
títulos do Tesouro americano como colateral em suas operações compromissadas. O Fed faz com que haja uma constante demanda
por títulos do governo; os bancos sabem que eles são aceitos como colateral
para empréstimos. O esquema funciona
assim: munidos do privilégio de poderem praticar reservas fracionárias, os
bancos podem criar dinheiro do nada. Com
uma parte deste dinheiro recém-criado do nada, eles compram títulos
governamentais — pois o Fed pode ou aceitar esses títulos como colateral em
troca de empréstimos ou comprá-los diretamente via open market. Como
consequência desta compra de títulos governamentais pelo sistema bancário, os
juros destes títulos caem. O governo,
como resultado, pode agora pagar juros mais baixos sobre suas dívidas.
Outra forma de
empréstimo é aquela feita pela chamada "janela de redesconto". Aqui, a iniciativa parte dos bancos. Eles podem pegar dinheiro emprestado junto ao
Fed por meio da janela de redesconto a uma taxa de juros maior do que a taxa
básica de juros. A janela de redesconto
é um instrumento utilizado por bancos que estão necessitados de fundos e estão
dispostos a pagar juros mais altos em troca destes fundos. Em épocas normais, a janela de redesconto não
é utilizada pelos bancos justamente por causa dos juros punitivos. E o banco que recorre à janela de redesconto
tem seu nome divulgado ao público, o torna esta alternativa bastante
desinteressante.
Durante a crise de 2008,
o Fed criou novos programas de empréstimos, com prazos de maturação mais
longos, direcionados a uma maior variedade de entidades (não somente bancos
comerciais); e passou a aceitar uma variedade maior de colaterais. O Fed também começou a comprar quantias
consideráveis da dívida e dos títulos lastreados em hipotecas emitidos pelas
agências hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac.
O BCE opera de maneira
similar ao Fed, embora apresente algumas peculiaridades. O BCE utiliza três principais instrumentos
para sua política monetária (eufemismo para criação de dinheiro): mudanças no
compulsório, operações de mercado aberto e linhas de crédito permanentes. Em relação ao compulsório, não há nada de
novo. Os bancos devem manter reservas em
suas contas no BCE baseadas em seus depósitos em conta-corrente. Para cada €100 depositados
por um correntista no banco, o banco deve manter €2 em sua conta no BCE. Isso significa que o banco pode emprestar os €98
restantes. Ao reduzir (ou aumentar) as
reservas compulsórias que os bancos devem manter depositadas junto ao BCE, os
bancos podem expandir o crédito (ou são forçados a contrair o crédito). No entanto, tal instrumento normalmente não é
utilizado, de modo que a taxa do compulsório para depósitos em conta-corrente
mantém-se constante em 2%.
Mais relevantes são as
operações de mercado aberto e as linhas de crédito permanentes (a linha de
crédito marginal e a linha de crédito de depósito). A diferença entre as duas é que a iniciativa
das operações de mercado aberto parte do BCE, ao passo que a iniciativa das
linhas de crédito parte dos bancos. Por
meio da linha de crédito de depósito, os bancos podem depositar dinheiro junto
ao BCE pelo período de um dia e receber juros sobre este depósito. Esta taxa de juros será o limite inferior da
taxa de juros praticada pelo mercado interbancário. Nenhum banco aceitaria cobrar uma taxa menor
pelos seus fundos no mercado interbancário pelo óbvio motivo de que ele sempre
poderia recorrer à linha de crédito de depósito do BCE para obter juros
melhores.
Já por meio da linha de
crédito marginal (similar à janela de redesconto do Fed), os bancos podem pegar
dinheiro emprestado do BCE a taxas punitivas.
Através da linha de crédito marginal, o BCE cria base monetária; mas
isso só ocorre quando os bancos recorrem a este mecanismo. A taxa de juros da linha de crédito marginal será
o limite superior da taxa de juros praticada pelo mercado interbancário, o que
significa que, em todo o sistema, nenhum banco pagará uma taxa maior do que
aquela que ele pagaria na linha de crédito marginal.
A linha de crédito
marginal vem com duas exigências adicionais para os bancos. Primeiro, os bancos somente poderão obter
dinheiro às taxas punitivas da linha de crédito de marginal se oferecerem
colateral suficiente. O colateral tem de
ter uma dada qualidade. A qualidade é
certificada por três agências licenciadas, isto é, privilegiadas: Moody's,
Fitch, e Standard and Poor's. Se um
título for classificado como sendo de risco e de baixa qualidade, o BCE não irá
aceitá-lo como colateral para seus empréstimos.
Segundo, aplica-se um haircut (dedução do valor dos títulos;
diferença entre o real valor de mercado de um título e o valor cobrado pela
parte emprestadora de uma transação) a este título (colateral), dependendo do
prazo de maturidade e do seu risco. Se
um banco oferece como colateral um título que valha €1.000, ele não conseguirá
obter um empréstimo de €1.000, mas sim um valor menor. O haircut
funciona como proteção contra potenciais perdas. Imagine que o banco não consiga quitar seu
empréstimo junto ao BCE, de modo que este tenha de vender o título para
conseguir recuperar seus fundos. Nesse
meio tempo, imagine que o valor do título tenha caído para €900. Se o haircut
não houvesse sido aplicado, o BCE sofreria um prejuízo de €100. Em princípio, prejuízos não são um problema
para o BCE, pois ele não depende de ter lucros ou prejuízos para
sobreviver.
O BCE poderia continuar
operando normalmente, dado que ele sempre poderá imprimir dinheiro para pagar
suas contas e para emprestar ao sistema bancário. No entanto, bancos centrais sempre tentam
evitar prejuízos por uma questão contábil: prejuízos reduzem seu patrimônio
líquido. Consequentemente, prejuízos
podem requerer estranhas medidas contábeis por parte do banco central, o que
reduziria a confiança em uma moeda. Se o
haircut for de 10%, o banco poderá
obter um empréstimo de €900 dando ao BCE um título de €1.000. Não surpreendentemente, haircuts para títulos do governo são menores do que para outros
tipos de títulos. Esta é só mais uma maneira
de favorecer discretamente as finanças governamentais por meio da criação de
dinheiro.
Ao contrário da linha de
crédito marginal, a iniciativa das operações de mercado aberto é toda do
BCE. Há basicamente duas maneiras de o
BCE produzir dinheiro por meio das operações de mercado aberto. Na primeira, o BCE compra ou vende títulos
diretamente. No entanto, este processo
de compra ou venda de títulos não é o procedimento normal de manipulação da
oferta monetária.
Normalmente, o BCE
utiliza os segundo método e empresta dinheiro recém-criado para os bancos via
linhas de crédito, as quais diferem entre si tanto em propósitos quanto em duração. Há a linha de crédito de
refinanciamento estrutural, a linha de crédito de ajuste fino (este termo não
remete a engenharia social?), a linha
de crédito de refinanciamento de longo prazo e a linha de crédito principal de
refinanciamento. Em todas estas linhas
de crédito, títulos não são comprados, mas sim utilizados em transações
reversas: operações compromissadas ou empréstimos colateralizados. Um empréstimo colateralizado é similar a uma
operação compromissada.
Em uma operação
compromissada, o BCE compra um título com dinheiro recém-criado e o revende
mais tarde a um preço maior, sendo esta diferença de preços a taxa de
juros. Ele pode comprar um título a €1.000
e revendê-lo a €1.010 após um ano, o que dá uma taxa de juros de 1%.
Em um empréstimo
colateralizado, o banco recebe um empréstimo de €1.000, dando um título como
garantia, e paga €10 de juros. A
diferença entra a operação compromissada e o empréstimo colateralizado é
basicamente de natureza jurídica. Na
operação compromissada, a propriedade do colateral é transferida para o BCE, ao
passo que, no empréstimo colateralizado, a propriedade do título permanece o
tempo todo sendo do banco que pegou empréstimo junto ao BCE e apenas utilizou o
título como garantia.
Semanalmente, o BCE
decide a quantidade de base monetária que ele quer injetar na União Monetária
Europeia. Os prazos de maturação
normalmente são de duas semanas. O BCE
basicamente faz um leilão do dinheiro recém-criado. Os bancos fazem propostas com taxas de juros
fixas e com taxas de juros variáveis.
Nas propostas de taxa de juros fixa, a taxa de juros é estipulada pelo
BCE e os bancos recebem o dinheiro recém-criado proporcionalmente aos seus
pedidos. Já nas propostas de taxa de
juros variável, uma determinada quantia de dinheiro é ofertada pelo BCE e os
bancos propõem as taxas de juros que estão dispostos a pagar por aquela
quantia. Ato contínuo, o dinheiro é
distribuído proporcionalmente às taxas de juros oferecidas por cada banco.
Diferenças
Uma das principais
diferenças entre o BCE e o Fed é que o BCE sempre aceitou uma variedade maior
de colateral, o que torna suas políticas mais "flexíveis". O Fed aceita (ou compra) em suas operações de
mercado aberto somente títulos classificados como AAA, a saber: títulos do
Tesouro americano, dívidas das agências federais americanas, ou dívidas
hipotecárias garantidas por agências federais.
Na janela de redesconto, aceita-se títulos com grau de investimento
(cuja classificação é BBB- ou maior).
O BCE tradicionalmente aceita
uma variedade maior de colateral em suas operações de mercado aberto. Além de títulos governamentais, o BCE também
aceita títulos lastreados em hipotecas, empréstimos bancários cobertos, e
outros tipos de dívida que sejam classificados no mínimo como A-. Esta classificação mínima foi reduzida como
medida emergencial durante a crise para BBB-, sendo que o plano era que tal
medida expiraria após um ano. Antes que
tal exceção expirasse, no entanto, a medida foi prorrogada, pois a
classificação da Grécia estava prestes a ser reduzida para baixo disso. No final, fez-se a exceção para os títulos
gregos, os quais seriam aceitos independentemente de sua classificação.
Ambos os bancos centrais
dão apoio à dívida de seus governos, mas de maneiras distintas. Ao passo que o Fed utiliza somente títulos
governamentais ou dívidas de agências federais ou dívidas garantidas por estas
agências, estimulando assim a demanda por tais papeis, o BCE cria um viés em
prol das dívidas governamentais ao aplicar um haircut mais baixo para elas.
Outra pequena diferença
entre o Fed e o BCE está na maneira como a oferta monetária é alterada, isto é,
na maneira como cada um cria dinheiro. Em
suas operações de mercado aberto, o Fed prefere compras diretas de títulos, ao
passo que o BCE prefere transações reversas.
Imagine que o Fed queira
aumentar as reservas bancárias em $1.000.
Para isso, ele irá comprar $1.000 em títulos do governo. As reservas bancárias estarão $1.000 maiores
enquanto o Fed não vender estes títulos de volta para o sistema bancário. Enquanto estiver em posse destes títulos, o
Fed irá coletar os juros que o governo paga sobre eles. No final, deduzidas suas despesas, uma parte
do lucro será remetida de volta para o governo americano.
Se o BCE, por sua vez,
tiver o objetivo de aumentar a oferta monetária em €1.000, ele irá leiloar €1.000
por meio de transações reversas, aceitando títulos do governo como colateral e
aplicando haircuts. O BCE também coleta juros sobre estes empréstimos
e remete parte do seu lucro para os bancos centrais de todos os países da zona
do euro, os quais os repassam para seus respectivos governos. Quando estes empréstimos maturam, o BCE pode
rolá-los. Neste caso, o aumento de €1.000
nas reservas bancárias será mantido. Na prática,
os títulos do governo são utilizados para criar mais dinheiro, em ambos os casos. A operação é desfeita quando o Fed vende os títulos
do governo de volta para o setor bancário ou quando o BCE decide não rolar os empréstimos
que fez ao sistema bancário.
Como o BCE financia os governos da zona do euro
Quando os governos
gastam mais do que coletam em impostos, eles emitem títulos. Em contraposição ao Fed, o BCE não compra
estes títulos diretamente (embora isso tenha mudado com a recente crise da dívida
soberana). [2] Imagine que um título que valha €1.000 e que
tenha um prazo de maturação de 10 anos seja vendido por um governo da zona do
euro. Os bancos comprarão este título —
possivelmente criando dinheiro via reservas fracionárias —, pois sabem que o
BCE aceitará este título como colateral.
O BCE aceitará este título
em uma transação reversa — como um empréstimo colateralizado — com um prazo
de maturação de uma semana (ou de um mês), criando dinheiro e o emprestando aos
bancos. Ao término desta semana, o BCE
irá simplesmente renovar o empréstimo e continuar em posse deste título caso
ele queira manter a atual oferta monetária.
O BCE pode continuar agindo assim pelos próximos dez anos. Após dez anos, o governo terá de quitar o
principal deste título, e provavelmente irá fazê-lo emitindo um outro título. E assim será ad eternum. O governo nunca
precisa quitar sua dívida; ele pode simplesmente emitir uma dívida nova para
pagar a antiga. Mas ainda assim fica a
pergunta: o governo ao menos paga os juros deste título? Sim, mas os juros são pagos para o BCE. Como mencionado anteriormente,
uma parte do pagamento dos juros é enviada de volta para o governo, uma vez que
os lucros do BCE são remetidos para cada banco central nacional de acordo com o
capital de cada um junto ao BCE. Dali,
os lucros são enviados para seus respectivos governos.
Mas e quanto aos
pagamentos de juros que não estão voltando, isto é, que não são remetidos de
volta para o governo na forma de lucros?
Os governos não têm de pagá-los? Novamente,
o governo pode apenas emitir um título novo, arrecadar dinheiro e utilizá-lo
para pagar esta despesa. Os bancos
compram o título e o BCE o aceita como colateral. É desta forma que o BCE financia os déficits das
nações que fazem parte do euro.
Como é possível, então,
que a Grécia tenha tido problemas de refinanciamento? A Grécia na realidade teve problemas para
rolar a sua dívida. Temia-se que o BCE não
mais fosse aceitar títulos gregos, e que a classificação destes caíssem para um nível
menor do que o mínimo aceito. Ademais, vários
investidores começaram a especular que os problemas políticos gerados pelos
crescentes déficits e pela crescente dívida da Grécia pudessem pôr um fim à monetização
da dívida grega. Em algum momento, o
governo alemão e outros governos europeus iriam intervir e exigir que o BCE
parasse de financiar os crescentes déficits e endividamento da Grécia. Também temia-se que outros países não socorressem
a Grécia por meio de empréstimos governamentais diretos. Este tipo de apoio direto vai contra os
termos do Tratado de Maastrich, sem falar nas enormes dificuldades políticas de
tentar persuadir a população do país cujo governo iria utilizar seu dinheiro
para ajudar a Grécia.
No final, o resgate da Grécia
pode simplesmente não ter sido uma opção economicamente viável. O risco de um calote aumentou e as taxas de
juros para os títulos gregos dispararam, levando a uma crise da dívida
soberana.
Para informações detalhadas sobre o funcionamento do
sistema monetário no Brasil, veja este artigo. Para entender como o Banco Central brasileiro
possibilita o financiamento do governo brasileiro, veja este artigo.
[1] O Fed é particularmente
ótimo neste quesito. Como demonstrou Lawrence
White, "The Federal Reserve System's Influence on Research in Monetary
Economics," Econ Journal Watch 2 (2,
1995): pp. 325-354, em 2002, 74% de todos os trabalhos acadêmicos sobre teoria monetária
foram publicados em jornais acadêmicos publicados pelo Fed ou escritos em
conjunto com economistas do Fed.
[2] Seria mais
correto falar "eurossistema" em vez de "BCE".
O eurossistema é formado pelos bancos centrais das nações-membro mais o
BCE. No entanto, dado que os bancos
centrais das nações-membro apenas seguem ordens do BCE dentro de seus
respectivos países, é comum simplificar utilizando o termo "BCE".