O artigo a seguir foi extraído do capítulo 5 do livro A Tragédia do Euro, a ser publicado em breve pelo IMB.
Se o euro implicava
várias desvantagens para a Alemanha, como é possível que o país tenha
concordado com sua introdução? O fato é
que a maioria da população da Alemanha queria manter o marco alemão (algumas pesquisas
mostravam que aproximadamente 70% dos alemães queriam manter o marco). Por que então os políticos não deram ouvidos
à opinião majoritária?
A explicação mais
factível é que o governo alemão sacrificou o marco com o objetivo de abrir
caminho para a reunificação do país em 1990.
Imediatamente após a derrubada do muro de Berlim, começaram as
negociações para a reunificação. Os
negociadores eram compostos pelas duas Alemanhas e pelos aliados vencedores da
Segunda Guerra Mundial: o Reino Unido, os Estados Unidos, a França e a União
Soviética.
A Alemanha ainda estava
sujeita à dominação. Nenhum tratado de
paz havia sido assinado com a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. O Acordo de Potsdam, de 1945, estipulava que
um tratado de paz seria assinado quando um governo adequado fosse
estabelecido. Porém, tal tratado nunca
foi assinado. A Alemanha não usufruía
soberania plena porque os aliados exerciam direitos especiais de controle sobre
o país até o início do Tratado Dois Mais
Quatro em 1991.[1]
Em 1990, a União
Soviética ainda tinha tropas posicionadas na Alemanha Oriental, enquanto EUA,
França e Grã-Bretanha comandavam tropas na parte ocidental. Todas as quatro forças ocupantes eram
potências atômicas cujas forças armadas eram vastamente superiores às da
Alemanha. Sem a autorização destas
quatro potências, a unificação da Alemanha não teria sido possível. Em particular, os governos francês e
britânico temiam a força de uma Alemanha unificada, a qual poderia facilmente
exigir seu lugar natural dentro da estrutura de poder europeia: trata-se da
nação mais populosa, a mais forte economicamente e está localizada no centro
estratégico da Europa.[2]
Para reprimir este
poder, o Tratado Dois Mais Quatro, ou Tratado
sobre a Regulamentação Definitiva Referente à Alemanha, especificou que o
governo alemão teria de abrir mão de todas as reivindicações sobre os
territórios que haviam sido tomados da Alemanha após a Segunda Guerra
Mundial. Além disso, a Alemanha teria de
pagar vinte e um bilhões de marcos alemães para a União Soviética para que ela
retirasse suas tropas da região oriental do país.[3]
O governo alemão tinha de reduzir o tamanho do seu efetivo militar e
reiterar sua renúncia à posse ou ao controle de armas nucleares, biológica e
químicas.
Muito mais temido do que
as forças armadas alemãs — formadas primordialmente por uma infantaria
destinada a conter um ataque soviético à OTAN — era o Bundesbank. O Bundesbank repetidamente forçava as outras
nações a adotar políticas monetárias mais austeras — isto é, a reduzir sua
velocidade de impressão de dinheiro —, ou a realinhar suas taxas de
câmbio. Parece possível, se não
plausível, que a Alemanha tenha aberto mão do marco alemão e de sua soberania
monetária em troca da reunificação.[4]
O ex-presidente da Alemanha, Richard von Weizsäcker, alegou que o euro seria
"nada mais do que o preço da reunificação".[5]
O ex-secretário das relações exteriores,
Hans-Dietrich Genscher, afirmou, a respeito da introdução do euro, que os
eventos faziam parte do pagamento de promessas feitas por ele durante o
processo da reunificação alemã.[6]
Similarmente, o político alemão Norbert Blüm declarara que a Alemanha teria de
fazer sacrifícios — no caso, o marco alemão — em prol do novo formato
europeu.[7] Horst Teltschik,[8]
conselheiro de política externa do chanceler Helmut Kohl, citou a si próprio ao
dizer a um jornalista francês (três semanas após a queda do Muro de Berlim em
1989) que "o governo federal alemão estava agora em uma posição na qual teria
de aceitar praticamente qualquer iniciativa francesa para a Europa".[9]
Kohl considerava o euro
uma questão de guerra e paz. Após a
reunificação, Kohl queria construir uma Europa politicamente unificada em torno
da França e da Alemanha. Kohl queria
conquistar seu lugar nos livros de história como o construtor da reunificação
alemã e da união política da Europa.[10]
Para ter êxito, ele precisava da
colaboração do presidente francês, Mitterrand.
Uma ex-tradutora de
Mitterrand, Brigitte Sauzay, escreveu em seu livro de memórias que Mitterrand
só iria concordar com a reunificação alemã "se o chanceler da Alemanha
sacrificasse o marco em prol do euro."[11]
Jacques Attali, conselheiro de Mitterrand, fez comentários semelhantes em uma
entrevista televisiva em 1998:
É
graças à reticência francesa em relação a uma reunificação incondicional [da
Alemanha] que temos a moeda comum .... A moeda comum não teria sido criada sem
a relutância de François Mitterrand à unificação alemã.
Outra confirmação destes
eventos foi fornecida por Hubert Védrine, também um antigo conselheiro de
Mitterrand e posteriormente seu ministro de relações exteriores:
O
presidente soube aproveitar a oportunidade, ao final de 1989, para obter um
comprometimento de [o chanceler alemão Helmut] Kohl. [...] Seis meses depois,
teria sido muito tarde: nenhum presidente francês estaria na posição de obter
do chanceler alemão o comprometimento de introduzir a moeda única.[12]
François Mitterrand e
Margaret Thatcher estavam atemorizados com a ideia de uma Alemanha unificada e
"forte". A Alemanha, portanto, tinha de
perder sua arma mais temida. Os países
vizinhos estavam preocupados com uma renovada agressão alemã. A união monetária era a solução para esta
ameaça, como Mitterrand havia dito para Thatcher após a reunificação alemã:
"Sem uma moeda única, todos nós — vocês e nós — estaremos sob domínio
alemão. Quando eles elevarem as taxas de
juros lá, nós termos de fazer o mesmo, e vocês também, mesmo que não participem
do nosso sistema monetário. Somente
poderemos ter voz ativa se houver um Banco Central Europeu no qual possamos
tomar decisões conjuntas."[13]
O papel do governo francês
A França era militar e
politicamente a nação mais poderosa do continente europeu a oeste da cortina de
ferro desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Os líderes franceses utilizaram esse poder para obter influência sobre
as instituições europeias e para reduzir a influência política de seus eternos
rivais, a Alemanha. De fato, a França
está sobrerrepresentada na União Europeia em termos do tamanho da sua população
e do seu PIB em relação à Alemanha.[14] O governo francês sempre quis se livrar da
influência do Bundesbank.[15] Uma moeda única era vista como uma
oportunidade de reforçar sua posição na Europa e induzir o continente rumo a um
império a ser liderado pela classe dominante francesa. O próprio banco central da França estava sob
controle direto do governo até 1993 e era utilizado como instrumento para
financiar os gastos governamentais. O
Bundesbank representava uma obstrução a estes esforços. O Banco da França queria estimular o
crescimento via expansão do crédito.
Porém, dado que o mais independente Bundesbank não inflacionava na mesma
intensidade, a França teve de desvalorizar sua moeda em relação ao marco alemão
repetidas vezes.
O Bundesbank impunha um
freio à inflação francesa. O marco
alemão representava, de certa forma, um novo padrão surgido após a abolição do
padrão-ouro. Seu poder advinha de sua postura
menos inflacionária quando comparado à maioria dos outros bancos centrais
europeus. Advinha também de sua
independência e de sua resistência aos clamores de mais inflação por parte do
governo alemão. Quando o Bundesbank
elevava as taxas de juros, o Banco da França tinha de fazer o mesmo; caso
contrário, o franco se depreciaria em relação ao marco e o câmbio teria de ser
alterado.
Do ponto de vista
francês, no entanto, as políticas alemãs não eram suficientemente
inflacionárias; os políticos franceses se opunham à liderança do Bundesbank. Embora militarmente debilitada e tendo saído
derrotada da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha havia se tornado capaz de ditar
as taxas de juros da Europa e de indiretamente restringir os gastos do governo
francês: um enorme triunfo.[16] Mitterrand declarou ao seu Conselho de
Ministros em 1988: "A Alemanha é uma grande nação carente de algumas
características de soberania e que goza de um reduzido prestígio
diplomático. Mas compensa essas suas
fraquezas com uma robustez econômica. O marco
alemão representa, de certa forma, seu poderio atômico."[17]
Ademais, o governo
francês mantinha a ideia de que a função de um banco central era dar suporte às
políticas de seu governo. Caso haja um
alto desemprego, por exemplo, o banco central deveria reduzir os juros independentemente
de pressões inflacionárias. Sob um banco
central comum, que abrangesse também os países mediterrâneos, a Alemanha
estaria em minoria e, assim, os políticos franceses poderiam determinar suas
ações. Malta, por exemplo, possui o
mesmo número de votos no Banco Central Europeu que a Alemanha, ainda que a
Alemanha possua um PIB 500 vezes maior que o de Malta. Uma moeda comum gerida por um banco central
comum era um objetivo de longo prazo do governo francês, pelo qual ele estava
disposto a fazer sacrifícios de curto prazo.[18]
Mitterrand, presidente
da França de 1981 a 1995, odiava a Alemanha durante sua juventude e desprezava
o capitalismo.[19] Este patriota francês era um convicto
defensor do ideal
socialista para a Europa e montou suas políticas de modo a defender a
França contra a superioridade econômica de seu vizinho do leste. A superioridade alemã baseava-se em sua moeda
forte. A intenção de Mitterrand era
utilizar o poderio monetário da Alemanha em prol do governo francês.[20] O governo francês daria à Alemanha garantias
de segurança em troca de uma participação no poderio monetário da Alemanha. No final da década de 1980, ao falar sobre as
bombas atômicas francesas de curto alcance, as quais tinham autonomia para, no
máximo, explodir dentro da Alemanha, o conselheiro de assuntos externos de
Mitterrand, Jacques Attali, para a surpresa dos negociadores alemães, fez
alusão a uma bomba atômica alemã: o marco.[21] O governo francês utilizava sua força militar
superior para obter concessões monetárias.[22]
Com a unificação da
Alemanha, os oponentes do marco poderiam pressionar o governo alemão a abrir
mão de sua moeda. Primeiro, Mitterrand
queria impedir por completo a reunificação alemã: "Não preciso fazer nada para
impedir isso; os soviéticos o farão por mim.
Eles jamais permitirão a existência dessa maior e mais importante
Alemanha se opondo a eles."[23] Quando a União Soviética nada fez para
impedir a reunificação, Mitterrand aproveitou a oportunidade e viu em Kohl um
aliado para seu projeto do euro.[24] Ele temia que, assim que Kohl saísse do
poder, o governo alemão pudesse ameaçar novamente a paz na Europa. Ambos os políticos consideravam a moeda única
um meio para restaurar o equilíbrio político da Europa após a
reunificação. Os políticos europeus em
geral achavam que uma união monetária controlaria o crescente poder de uma
Alemanha unificada. Giscard d'Estaing alegava
que um fracasso da união monetária levaria a uma hegemonia alemã sobre a Europa.[25]
As tensões se
intensificaram quando Kohl não reconheceu as fronteiras entre a Alemanha
reunificada e a Polônia, a qual havia se apossado de um substancial território
da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial.
Mitterrand reivindicava uma moeda única temendo que, caso contrário, o
mundo retornasse à situação de 1913.[26] Em resposta a esta maciça ameaça e ao
temerosamente crescente isolamento em meio a uma aliança entre França, Grã-Bretanha
e União Soviética, Kohl concordou em estipular uma data para uma conferência
sobre uma moeda comum na segunda metade de 1990. Ele chegou até mesmo a declarar que a moeda
única era uma questão de guerra e paz. A
concordância de Kohl com a criação de um plano para a introdução de uma moeda
única enfim aplacou os temores da França acerca de uma Alemanha unificada.
Vantagens para as classes dominantes alemãs
O sacrifício do marco
alemão era do interesse das elites políticas e estatais da Alemanha, bem como
dos grupos empresariaiss que possuem poderosas ligações com o estado. Como Hans-Hermann Hoppe explicou, há uma
elite dominante em todas as sociedades, a qual utiliza o estado como um
instrumento para explorar o resto da população.[27]
O estado detém o monopólio da coerção e
da tomada suprema de decisões judiciais de todos os conflitos que ocorram
dentro de um dado território. Ele detém
o poder de tributar e de incorrer em todos os tipos de intervenções.
A classe dominante é
exploradora, parasítica, improdutiva e possui uma forte consciência de
classe. Ela precisa de uma ideologia que
justifique suas ações e que, por isso, impeça a rebelião da classe
explorada. A classe explorada é formada
pela maioria da população. É ela quem
produz riqueza e é doutrinada para prestar obediência e servilismo à classe
dominante, não possuindo nenhuma consciência de classe especial.
Cada nação possui sua
própria classe dominante e seus próprios grupos de interesse, os quais têm
profundas ligações com esta elite.
Consequentemente, a classe dominante na Alemanha e a classe dominante na
França têm muito mais em comum entre si do que a classe dominante alemã tem em
comum com a classe explorada na Alemanha.
Com efeito, as classes dominante e explorada possuem interesses opostos. Há várias áreas em que as classes dominantes
alemã e francesa não apenas não são concorrentes, como na realidade se
beneficiam mutuamente ao atuarem em conjunto. Ambas
as classes dominantes querem poder: elas querem expandir seu poder sobre os
cidadãos. Elas querem que prevaleça uma
ideologia que defenda o estado e aumente o poder estatal.
Dadas essas
considerações, é fácil entender por que a classe dominante alemã — isto é,
políticos, bancos e indústrias com fortes conexões políticas, principalmente o
setor exportador — defendia a introdução do euro. Há várias maneiras pelas quais essa classe
poderia se beneficiar com a criação de uma moeda única.
1.
É altamente provável que a classe dominante alemã não tenha se lamentado por
ter se livrado de um Bundesbank muito conservador. O Bundesbank, por várias vezes, havia atuado contra
os interesses e pedidos dos políticos.
Ele, por exemplo, elevou os juros antes das eleições de 1969, aumentando
sua reputação mundial de banco central anti-inflacionista. Adicionalmente, o Bundesbank não queria
seguir as taxas de inflação americanas e, por isso, parou de intervir no
mercado de câmbio em favor do dólar em março de 1973. Isso levou ao colapso final do Sistema de
Bretton Woods e às taxas de câmbio flutuantes.
Ele também resistia aos reiterados pedidos do establishment para
intervir no Sistema Monetário Europeu.
Os dirigentes do Bundesbank repetidamente se opunham às demandas de
políticos alemães e estrangeiros para que reduzisse as taxas de juros. Alguns desses dirigentes também eram céticos
quanto à introdução do euro como instrumento de integração econômica. Proeminentes políticos alemães frequentemente
tinham de aguentar o fardo de ter de lidar com o descontentamento dos países
vizinhos e com a intransigente postura monetária do Bundesbank.
O
euro possibilitou aos políticos alemães se livrar desta teimosa instituição,
prometendo um fim à "tirania" do Banco.
Mais inflação significaria mais poder para a classe dominante. Políticos alemães poderiam agora se esconder
atrás do Banco Central Europeu e evadir-se da responsabilidade pelas
consequências geradas por altos níveis de gastos e endividamentos.
O
euro era um passo rumo à criação de uma moeda mundial. Com a concorrência entre moedas eliminada, os
políticos teriam agora poderes ilimitados. Adicionalmente, é mais fácil implantar uma
cooperação monetária internacional entre o Fed e o BCE do que entre o Fed e
vários bancos centrais europeus.
2.
Certos grupos de interesse alemães tinham muito a ganhar com esse novo arranjo
— a saber, o aprofundamento do processo de integração europeia, o qual incluía
a harmonização os padrões trabalhistas, ambientalistas e tecnológicos. Com efeito, a introdução do euro reavivou o
projeto europeu de um poder estatal centralizado.
A
harmonização dos padrões trabalhistas beneficiou os trabalhadores alemães
sindicalizados. As generosas leis
trabalhistas alemãs — e seus concomitantes custos — só eram possíveis de ser
mantidos por causa da alta produtividade dos trabalhadores alemães. Trabalhadores de outros países, como Portugal
ou Grécia, tinham menos capital com o qual trabalhar, o que os tornava menos
produtivos. Para poder competir com o
trabalhador alemão, o português tinha de se contentar com leis trabalhistas
mais brandas, o que reduziria o custo de sua mão-de-obra. Essa redução dos padrões trabalhistas —
amplamente propagadas com o temeroso rótulo de "corrida ao fundo do poço" —
ameaçava os altos padrões trabalhistas dos trabalhadores alemães. Trabalhadores alemães sindicalizados,
acostumados aos seus altos padrões, não queriam concorrer com trabalhadores
portugueses, para os quais tais padrões não se aplicavam. A vantagem competitiva obtida com a
harmonização dos padrões daria aos alemães uma maior margem para ampliar seus
poderes e privilégios.
A
harmonização os padrões ambientalistas também beneficiou as empresas alemãs,
pois elas já eram as mais ambientalmente eficientes. Empresas concorrentes de outros países, até
então sujeitas a padrões menos rigorosos, tiveram de se adaptar a estes padrões
mais custosos. Fora isso, os interesses
do movimento ambientalista foram satisfeitos pela imposição dos padrões
ambientais alemães sobre todo o resto da União Europeia. Como as empresas alemãs estavam na dianteira
tanto em termos de cumprimento a imposições ambientais quanto em termos de
tecnologia, essa regulação lhes trouxe enormes benefícios. A concorrência estrangeira foi
suprimida. A imposição de padrões
tecnológicos alemães à União Europeia deu aos exportadores alemães uma grande
vantagem competitiva.
3.
O setor exportador alemão se beneficiou duplamente com a criação do
inflacionário euro. Os outros países da
zona do euro não mais podiam desvalorizar suas moedas com o intuito de dar
competitividade ao seu setor exportador.
Com efeito, as seguidas crises monetárias e as repentinas
desvalorizações cambiais do período anterior ao euro ameaçavam os exportadores
alemães. Uma crise monetária também
colocava em risco a estabilidade do mercado comum. Com uma moeda única, desvalorizações não mais
seriam possíveis. O primeiro-ministro
italiano, Romano Prodi, utilizou o seguinte argumento para convencer os
políticos alemães a permitir que a altamente endividada Itália também fizesse
parte da união monetária: apóiem a nossa filiação e nós compraremos suas
exportações.[28]
Adicionalmente,
os seguidos déficits orçamentários e comerciais dos países do sul da Europa
deixaram o euro consistentemente mais fraco do que seria o marco alemão. Isso estimulou as exportações alemãs. A elevação das exportações alemãs foi
compensada pelos déficits comerciais das nações-membro pouco competitivas. Por conseguinte, os exportadores alemães
adquiriram uma vantagem em relação aos países de fora da zona do euro. Aumentos na produtividade não mais se
traduziriam em valorizações da moeda — pelo menos não em comparação ao marco
alemão.
4.
A classe política alemã queria evitar o colapso político e financeiro da
região.
Vários
países da Europa estavam no limiar da falência na década de 1990. Como a classe dominante não queria perder seu
poder, ela estava disposta a abrir mão de algum controle da impressora de
dinheiro em troca da sua sobrevivência.
Países menos endividados, com a Alemanha, assegurariam a confiança dos
credores, de modo que todo o nível de endividamento europeu poderia ser mantido
ou até mesmo ampliado. Isso certamente
explica o interesse de países altamente endividados e à beira da falência em
criar a integração europeia.
Há
três maneiras de a classe dominante ampliar seu poder: aumentando impostos,
utilizando a inflação ou aumentando a dívida governamental. Mas impostos são impopulares. A inflação é arriscada porque, a partir de um
determinado momento, ela pode causar desordem e desconfiança, fazendo com que
os cidadãos parem de utilizar a moeda corrente e corram para ativos reais com o
intuito de proteger sua poupança e seu poder de compra. Isso pode levar todo o sistema financeiro ao
colapso. O endividamento governamental,
por sua vez, representa uma maneira alternativa de se financiar o aumento dos
gastos e o subsequente aumento do poder estatal, e não é um método tão
impopular quanto os impostos. Com
efeito, o endividamento governamental pode gerar uma "ilusão de riqueza"
momentânea. Os cidadãos podem se sentir
mais ricos as os gastos governamentais forem financiados por meio da emissão de
títulos em vez de mais impostos. Não
obstante, em algum momento tais dívidas terão de ser quitadas, e o serão por
meio ou de mais impostos ou de inflação monetária — caso contrário os credores
ficarão desconfiados da solvência do governo, encerrarão seus empréstimos e
farão com que o governo altamente endividado fique sem acesso a novos
financiamentos.
Mas
por que a Alemanha aceitaria o papel de garantidora das dívidas dos outros
países?
A
introdução do euro e a garantia implícita às dívidas das outras nações deu-se
em conjunto com todos os tipos de transferências diretas e indiretas que um
sistema de moeda única geraria. A
falência de estados europeus, algo que teria efeitos adversos sobre a classe
dominante alemã, poderia ser evitada, pelo menos por algum tempo. Um colapso de um ou de vários países levaria
a uma recessão. Por causa da divisão
internacional do trabalho na Europa, uma recessão traria um impacto enorme aos
exportadores e às empresas tradicionais da Alemanha. As receitas tributárias cairiam e o apoio da
população se evaporaria.
Ademais,
o calote de um país provavelmente afetaria negativamente o sistema bancário
doméstico de outros países, gerando um efeito dominó sobre os bancos de toda a
Europa, incluindo os da Alemanha. A
conectividade do sistema financeiro internacional poderia levar ao colapso dos
bancos alemães, aliados próximos da classe dominante alemã e resolutos
defensores da criação de uma moeda única.
Da mesma maneira, uma quebradeira em forma de hiperinflação iria afetar
negativamente o comércio internacional e todo o sistema financeiro. A falência de um país soberano poderia levar
outros países junto.
Em suma, a introdução do
euro nada tinha a ver com um supremo ideal europeu de liberdade e paz. Ao contrário: o euro nunca foi necessário
para a liberdade e a paz. Na realidade,
o euro apenas gerou conflitos. Sua
criação estava totalmente ligada a poder e dinheiro. O euro fez com que a mais importante e
poderosa ferramenta econômica de um país, a unidade monetária, ficasse sob o
controle de tecnocratas sediados em um outro país.
[1] A Carta da ONU
ainda contém cláusulas para nações inimigas.
As cláusulas permitem aos aliados imporem medidas contra nações como
Alemanha ou Japão sem autorização do Conselho de Segurança. "[Os] aliados reservam a si próprios
determinados poderes de intervenção e até mesmo o direito de reimpor um governo
direto caso julguem necessário" (Judt,
Postwar, p. 147).
[2] Como Margaret
Thatcher declarou sobre ela própria e sobre Mitterrand, "Nós dois tivemos a
determinação de coibir o rolo compressor alemão." Citado in Judt,
Postwar, p. 639.
[3] Fritjof Meyer,
"Ein Marshall auf einem Sessel," Der
Spiegel 40 (1999): p. 99, http://www.spiegel.de. A Alemanha pagou sessenta e três bilhões de
marcos alemães para União Soviética entre 1989 e 1991 (no total) para que
pudesse receber tratamento favorável.
Similarmente, Tony Judt, Postwar,
p. 642, calcula que o governo alemão transferiu $71 bilhões para a União
Soviética entre 1990 e 1994. Um
adicional de $36 bilhões em "tributos" foram transferidos para outros
ex-governos comunistas do Leste Europeu.
[4] Ver Kerstin
Löffler, "Paris und London öffnen ihre Archive," Ntv.de (November 6, 2010), http://n-tv.de.
Ver também Wilhelm Nölling citado in Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe, p. 21: "Até onde sabemos, estes
países, em troca do acordo de reunificação que eles não podiam impedir,
exigiram que a Alemanha fosse atraída para um arranjo e, para isso, nada melhor
do que, além da OTAN e da integração europeia, a unificação da moeda". Em um discurso em agosto de 2010, o
historiador Heinrich August Winkler, professor emérito da Humboldt University
Berlin, argumentou que Mitterrand temia que a Comunidade Europeia se
transformasse numa zona do marco, sugerindo uma hegemonia alemã no
continente. O euro era o preço para a
autorização da reunificação. Ver Henkel,
Rettet unser Geld!; p. 56-58.
Recentemente, um acesso aos protocolos secretos validou a tese de que
Mitterrand exigiu a moeda única em troca do seu consentimento para a
unificação. Ver Mik, "Mitterrand
forderte Euro als Gegenleistung für die Einheit, Spiegel online (2010), http://www.spiegel.de.
[5] In Die Woche, 19.9.1997 citado in Das Weisse
Pferd, "Die Risiken des Euro sind unübersehbar (1)," in Das Weisse Pferd ? Urchristliche Zeitung für
Gesellschaft, Religion, Politik und Wirtschaft (August, 1998), http://www.das-weisse-pferd.com.
[6] Ver Henkel, Rettet
unser Geld!, p. 59.
[7] Ver Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe.
[8] Horst Teltschik,
329 Tage: Innenansichten der Einigung (Berlin:
Siedler, 1991), p. 61,
[9] Vaubel, "The
Euro and the German Veto," p. 83.
[10] Ademais, Kohl já
foi considerado candidato ao Nobel da Paz por várias vezes, a mais recente em
2010.
[11] Spiegel-Special Nr. 2/1998 citado in Das Weisse
Pferd, "Die Risiken des Euro." Para a
visão de que o governo francês concordou com a reunificação em troca de um
acordo com a Alemanha a respeito da introdução de uma moeda única, ver também
Ginsberg, Demystifying the European Union,
p. 249. Similarmente, Jonas Ljundberg,
"Introduction," in The Price of the Euro,
ed. Jonas Ljundberg (New York: Palgrace MacMillan, 2004), p. 10, afirma:
"Ao abrir mão da hegemonia do Bundesbank entre os bancos centrais, Kohl obteve
a anuência de Mitterrand para a reunificação alemã." Na mesma linha, James Foreman-Peck, "The UK
and the Euro: Politics versus Economics in a Long-Run Perspective," in The Price of the Euro, ed. Jonas Ljundberg
(New York: Palgrace MacMillan, 2004), p. 102, declara: "A união monetária foi
escolhida, na realidade, como parte de um acordo franco-alemão acerca da
reunificação alemã. O marco alemão foi
abolido em troca de um estado unificado.
Essa Alemanha forte e reunificada tinha de ser aceita pela França, e a
união monetária era o preço cobrado pelo governo francês." E ele acrescenta
(Foreman-Peck, p.114): "... o euro foi criado para permitir um maior controle
francês sobre a política monetária europeia — em vez do domínio do Bundesbank
— em troca da anuência francesa para com a reunificação alemã." Larsson
("National Policy in Disguise," p. 163) declara: "A UME se tornou uma
oportunidade para os franceses adquirirem uma fatia do poderio econômico
alemão. Para o chanceler alemão Kohl, a
UME era um instrumento para fazer com que os outros membros da Comunidade
Europeia aceitassem a reunificação alemã e, consequentemente, uma Alemanha
maior e mais poderosa no coração da Europa".
Judt (Postwar, p. 640) afirma:
"Os alemães poderiam reconquistar sua unidade, mas a um preço... Kohl
deveria se comprometer a adotar o projeto europeu sob um domínio conjunto [Bonn
pagando e Paris criando as políticas], e a Alemanha deveria ser amarrada a uma
união 'cada vez mais estrita' — cujas cláusulas, notavelmente uma moeda
europeia única, seriam consagradas em um novo tratado."
[12] Ambas as
citações foram retiradas de Vaubel, "The Euro and the German Veto," pp. 82-83.
[13] Traduzido de uma
citação em Hannich, Die kommende
Euro-Katastrophe, p. 22. Como escreveu Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 142: "Proeminentes figuras do
Partido Socialista francês ... deixaram implícito que somente o Tratado de
Maastricht poderia manter os velhos demônios do caráter alemão sob controle."
[14] Ver Larsson,
"National Policy in Disguise." A
Alemanha está sub-representada não apenas em relação à França. No Conselho Europeu, a Alemanha tem direito a
vinte e nove votos, a mesma quantidade do Reino Unido, da França e da Itália,
os quais são substancialmente menores em população e PIB. Espanha e Polônia, com aproximadamente metade
da população da Alemanha, têm direito a vinte e sete votos cada uma.
[15] Bernard
Connolly, The Rotten Heart of Europe,
p. 100 escreve: "Aos olhos franceses, o objetivo da UME, ao menos em termos
monetários, era permitir o domínio francês do Bundesbank."
[16] Como escreveu
Connolly (The Rotten Heart of Europe,
p. 30), comentando sobre os acontecimentos de 1983: "As políticas salariais e
orçamentárias da França eram em última instancia determinadas pela Alemanha...
A humilhação imposta ao governo socialista francês era quase total, um tipo de
1940 monetário." Trichet vivenciaria
outra humilhação mais tarde. (Ibid, p. 311)
[17] Citado in
Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe,
p. 22 and Marsh, Der Euro, p. 175. Da
mesma forma, o predecessor de Mitterrand, Valéry Giscard d´Estaing, também
temia uma hegemonia alemã. Ver Marsh, Der Euro, p. 99. Ver também Feldstein,
"The Political Economy of the European Political and Monetary Union," p. 28,
que afirma que a França utilizou a UME para impulsionar sua influência
vis-à-vis a Alemanha.
[18] Connolly, The
Rotten Heart of Europe, p. 146, argumenta que os bancos centrais e os
políticos do sul da Europa concordaram em adotar políticas monetárias
restritivas com o intuito de alcançar o objetivo de longo prazo da
implementação da moeda única e, com isso, adquirir um maior número de votos em
relação ao Bundesbank: "O maior desejo deles [as elites do sul da Europa] era o
de se alçarem a uma posição em que poderiam sobrepujar Schlesinger
[ex-presidente do Bundesbank], ou seus sucessores; mas eles só poderiam chegar
a essa situação se, durante esse meio tempo, os banqueiros centrais não
exagerassem em suas políticas monetárias inflacionistas."
[19] Ver Marsh, Der Euro, pp. 47-50. Ele afirma
explicitamente que queria um rompimento suave, mas completo, com o capitalismo.
(Connolly, The Rotten Heart of Europe,
p. 24)
[20] Ver Marsh, Der Euro, p. 57. Em linguagem similar, Jacques Delors
indignou-se com o Bundesbank quando este não reduziu as taxas de juros em 1993
para apoiar a França: "Por que eles declararam guerra a nós?" (Citado in
Connolly, The Rotten Heart of Europe,
p. 321)
[21] Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe, p. 22.
Marsh, Der Euro, pp. 172-74
[22] Ameaças
implícitas similares ocorrerem em 1992 durante uma crise do franco. Naquela ocasião, Trichet questionou a
conciliação franco-germânica com o intuito de obter ajuda da Alemanha. Um dirigente do Bundesbank, quando perguntado
por que não recorreram ao artifício de elevar o compulsório para combater as
pressões inflacionárias, respondeu: "Porque, se fizéssemos isso, o céu ficaria
negro, repleto de esquadrões de Mirages que cruzariam o Reno para nos bombardear"
(Citado in Connolly, The Rotten Heart of
Europe, p. 180.)
[23] Citado in Judt, Postwar, p. 637.
[24] Bandulet, Die letzten Jahre des Euro, p. 48. Mais
provavelmente, Mitterrand estava apenas blefando. Ele não tinha condições de impedir a
reunificação mesmo se Kohl não tivesse sacrificado o marco. Tampouco os EUA ou a URSS pressionaram o
governo alemão a assinar o Tratado de Maastricht como condição para a
reunificação.
[25] Ver Marsh, Der Euro, p. 263. O primeiro-ministro italiano, Andreotti,
alertou para um novo pangermanismo. O
primeiro-ministro da Holanda, Lubbers, era contra a reunificação, assim como
Thatcher, que, durante um reunião de cúpula em Estrasburgo, sacou de sua bolsa
dois mapas da Alemanha: em uma mapa, a Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial;
no outro, a Alemanha após a guerra. Ela
então afirmou que a Alemanha retomaria todos os territórios que havia perdido
mais a Tchecoslováquia. Ver Marsh, Der Euro, p. 203. Sobre a preocupação francesa com a hegemonia
alemã na Europa, ver também Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 88 or p.
384.
[26] Ver
Marsh, Der Euro, p. 202.
[27] Ver
Hans-Hermann Hoppe, "A análise de classe marxista
vs. a análise de classe austríaca ," Journal of Libertarian Studies 9 (2,
1990): pp. 79-93.
[28] Ver
James Neuger, "Euro Breakup Talk Increases as Germany Loses Proxy," Bloomberg (May 14, 2010),
http://www.bloomberg.com.