O artigo a seguir foi extraído do capítulo 3 do livro A Tragédia do Euro, a ser publicado em breve pelo IMB.O plano Werner foi a primeira tentativa de se estabelecer
uma moeda comum fiduciária e de curso forçado para toda a Europa. Tal plano foi concebido por um grupo que
estava sob os auspícios de Pierre Werner, primeiro-ministro de Luxemburgo, e
foi apresentado em outubro de 1970. O
plano envolvia três etapas e tinha a intenção de estabelecer uma união monetária
já em 1980. Na primeira etapa, as políticas
fiscais seriam coordenadas e as flutuações das taxas de câmbio seriam
reduzidas. A terceira etapa fixava as
taxas de câmbio e esquematizava uma convergência de todas as economias. Mas o plano não deixava claro como iria da
primeira para a terceira etapa; a segunda etapa nunca foi explicada. O plano Werner não requeria um banco central
comum para todos os países, e acabou sendo abandonado quando a França decidiu
sair do acordo cambial — câmbios semi-fixos, com banda variável de +-2,25% em
relação ao marco alemão — firmado entre os países europeus em 1974. Não obstante, o plano Werner criou o primeiro
precedente rumo à integração europeia, um objetivo essencial.
O plano
para uma moeda comum foi ressuscitado por Jacques Delors, que além
de ter sido presidente da Comissão Europeia por dez anos, era também um
indivíduo com uma longa carreira formada no Partido Socialista francês.[1] Tecnocrata
e político no sentido mais estrito de ambos os termos, ele havia sido formado
no melhor espírito do intervencionismo francês, e defendeu abertamente a
integração e a harmonização política durante seus mandatos como presidente da
Comissão. O Ato Único
Europeu de 1986 (um ano após Delors
assumir a Comissão Europeia) foi um passo rumo à união política. Foi a primeira grande revisão do Tratado de
Roma e seu objetivo era o estabelecimento do Mercado Único até 31 de dezembro
de 1992. Uma de suas metas de longo
prazo era a criação de uma moeda única e, para facilitar tal intento, a decisão
por voto majoritário (em contraposição à até então vigente decisão por voto
unânime) foi introduzida em áreas como moeda, políticas sociais, economia,
pesquisa científica e políticas ambientais.
Em 1987, a
pressão pela adoção de uma moeda única se intensificou. Helmut Schmidt, um social-democrata e
ex-chanceler da Alemanha, e Valery
Giscard d'Estaing, ex-presidente da França, criaram o grupo lobista
"Associação para a união monetária da Europa".
Grandes empresas alemãs, como Volkswagen, Daimler-Benz, Commerzbank, Deutsche
Bank e Dresdner Bank rapidamente se tornaram membros.
Em abril de
1989, o Relatório Delors, um plano de três etapas para a introdução do euro,
foi publicado. Foi um marco na
irreversível caminhada rumo ao euro. Na
reunião de cúpula de Roma, em dezembro de 1990 — ou seja, dois meses após a
reunificação alemã — o plano de três etapas foi oficialmente adotado,
baseando-se nas metas de longo prazo estabelecidas pelo Ato Único Europeu.
A primeira
etapa já estava em andamento desde julho de 1990, com o fortalecimento das
coordenações econômicas e monetárias. As
manipulações nas taxas de câmbio foram eliminadas e o mercado comum estava
pronto.
Em janeiro
de 1990, Helmut Kohl concordou com Mitterrand em aprovar a moeda única, sob a
influência das ideias do conselheiro de relações exteriores de Kohl, Joachim
Bitterlich. Porém, o alto escalão do
Bundesbank ainda via a moeda única como uma meta indesejável para o então
futuro próximo.
Karl Otto
Pöhl, presidente do Bundesbank à época, estava confiante de que a adoção de uma
moeda única podia ser impedida. Para
Pöhl, a união monetária era uma ideia maluca.
Ele argumentava que uma união monetária só poderia ser possível se
houvesse uma união política — algo que, na época, ainda estava muito
distante. Sua tática era a de
especificar condições tão restritivas para o estabelecimento de uma união
monetária que a França e outras nações jamais aceitariam. Porém ele errou no cálculo. O governo francês aceitou que o banco central
único fosse baseado no modelo do Bundesbank, o que faz com que Kohl abrisse mão
do seu objetivo de introduzir uma união política junto à união monetária.
A vontade
política de estabelecer uma moeda uniforme foi explicitada no Tratado de Maastricht,
assinado nos dias 9 e 10 de dezembro de 1991.
Em Maastricht, Kohl já havia desistido do seu objetivo de criar uma
união política, mas foi adiante assim mesmo e sacrificou o marco alemão. Ele também concordou em especificar uma data
para a introdução da moeda única: 1º de janeiro de 1999. Ademais, a participação na união monetária
não era voluntária para os países que assinaram o Tratado. Isso significava que a Alemanha, mesmo caso
mudasse de ideia, poderia simplesmente ser forçada a participar da união
monetária em 1999.
O Tratado
especificou os detalhes para a introdução do euro, bem como a data inicial para
a segunda etapa do Relatório Delors: 1994.
Na segunda etapa, que duraria de 1994 a 1998, o Instituto Monetário
Europeu, o precursor do Banco Central Europeu, foi fundado, e os participantes
da união monetária foram eleitos. Cinco
critérios para a seleção foram negociados e estabelecidos.
1. As taxas de inflação de preços teriam de
estar abaixo de um limite, o qual seria determinado pela média dos três aspirantes
que apresentassem as menores taxas de inflação + 1,5%.
2. O déficit público dos países não poderia ser
maior do que 3% do PIB.
3. A dívida pública total não poderia estar
acima de 60% do PIB.
4. As taxas de juros de longo prazo tinham de
ficar abaixo de um limite que seria determinado pela média dos três governos
que pagassem as menores taxas + 2%.
5. Os países teriam de participar do Sistema
Monetário Europeu por pelo menos dois anos e não poderiam desvalorizar suas
moedas durante este período.
O
cumprimento destes critérios foi facilitado pela vontade política demonstrada
em prol do euro. O apoio a uma moeda
única em um sistema monetário comum implicava que as taxas de juros iriam
convergir. À medida que as expectativas
de que um determinado país entraria na zona do euro cresciam, seu governo, por
mais endividado que estivesse, começava a pagar juros menores. Da mesma maneira, as taxas de inflação em
países altamente inflacionistas também decresciam, uma vez que as pessoas
tinham a expectativa de que o euro seria menos inflacionário do que sua moeda
nacional.
O governo
alemão tentou impor sanções automáticas para o país que violasse os limites
estabelecidos para o déficit após o euro ter sido introduzido. Mas Theodor Waigel, o ministro das finanças
da Alemanha, não logrou êxito. Nas
reuniões de Dublin, em dezembro de 1996, os outros governos rejeitaram as
sanções automáticas sobre aqueles países que extrapolassem o déficit permitido. Em 1º de janeiro de 1997, o arcabouço legal
do euro e do Banco Central Europeu foi estabelecido. Os países participantes e os instrumentos
monetários do BCE foram determinados no início de 1998.
Finalmente,
a terceira etapa do Relatório Delors começou com a introdução oficial do euro
em 1º de janeiro de 1999. A taxa de
câmbio entre as moedas dos países participantes foi fixada
permanentemente. A terceira etapa foi
concluída quando, três anos depois, o euro entrou em circulação.
O golpe de estado na Alemanha
A
introdução do euro na Alemanha foi algo bastante semelhante a um golpe de
estado. O Bundesbank havia apoiado uma
proposta feita pelo deputado britânico Nigel Lawson, em 1989, que defendia uma
concorrência monetária dentro da Comunidade Europeia, concorrência essa que
incluiria a nova moeda UME (Unidade Monetária Europeia). Haveria treze moedas circulando dentro da
União Europeia, sendo todas as treze de curso forçado. Um ano mais tarde, o primeiro-ministro
britânico, John Major, fez uma nova tentativa para a Grã-Bretanha: ele propôs
que UME fosse uma moeda forte a ser emitida por um banco central europeu e
sofrendo a concorrência de todas as outras moedas nacionais.
Mas o
governo alemão rejeitou essa proposta britânica, a qual foi a mais próxima de
um livre mercado já concebida. Ele
preferiu a proposta socialista de uma só moeda fiduciária e de curso forçado
para toda a Europa. O governo alemão
agiu contra a vontade da maioria dos alemães, os quais queriam continuar com o
marco alemão. O governo lançou uma
agressiva campanha publicitária, colocando vários anúncios nos jornais
declarando que o euro seria tão estável quanto o marco alemão. O orçamento destinado para essa campanha
publicitária saltou de 5,5 para 17 milhões de marcos quando os dinamarqueses votaram
contra a introdução do euro.
Os políticos
alemães tentaram convencer seus respectivos eleitorados utilizando um argumento
absurdo: eles alegaram que o euro era necessário para a manutenção da paz na
Europa. O ex-presidente Richard von Weizsäcker escreveu que uma
união política implicava uma união monetária sólida, e que tal arranjo seria
necessário para se manter a paz, uma vez que posição central exercida pela
Alemanha na Europa já havia gerado duas Guerras Mundiais. O social-democrata Günther Verheugen, em um
rompante de arrogância e paternalismo típico da classe política, afirmara em um
discurso perante o parlamento alemão que "Uma Alemanha forte e unida pode
facilmente — como a história nos ensinou — se tornar um perigo para si
própria e para os outros".[2] Ambos haviam se esquecido de
que, após a reunificação, a Alemanha não mais era tão grande e poderosa quanto
havia sido antes da Segunda Guerra Mundial.
Também não se deram conta de que a situação era bem diferente em vários
outros quesitos. A Alemanha,
militarmente, era bastante inferior à França e à Grã-Bretanha, e ainda estava
ocupada por tropas estrangeiras. E após
a guerra, os aliados haviam reeducado os alemães no caminho do socialismo, do
progressivismo e do pacifismo — para repelir qualquer oposição militar.
Acusar
implicitamente a Alemanha de ser a responsável pela Segunda Guerra Mundial e de
ter obtido ganhos como resultado era uma tática a que a classe política
frequentemente recorria. Agora o
argumento implícito era o de que, por causa da Segunda Guerra Mundial e mais especificamente
por causa de Auschwitz, a Alemanha tinha de abrir mão do marco como uma medida
em prol da união política. Paternalismo,
acusacionismo e complexo de culpa foram utilizados com perfeição.[3]
De fato, o
chanceler alemão Helmut Schmidt, ao comentar sobre o Sistema Monetário Europeu,
o predecessor do euro, disse que tal arranjo era parte de uma estratégia para
poupar a Alemanha de um fatal isolamento no centro da Europa. Em 1978, ele havia dito à alta cúpula do
Bundesbank que a Alemanha precisava da proteção do Ocidente por causa de suas
fronteiras com países comunistas. E
acrescentou que a Alemanha, como consequência de Auschwitz, ainda estava
vulnerável.[4] A Alemanha precisava entrar na OTAN e na
Comunidade Europeia, e o Sistema Monetário Europeu era um meio para este fim —
assim como o euro também seria mais tarde.
Ao reler suas palavras em 2007, Schmidt afirmou que não havia mudado de
ideia. Ele continuava crendo que, sem
uma moeda unificada, as instituições financeiras alemãs tornar-se-iam líderes
no continente, causando inveja e raiva em seus vizinhos, o que geraria
consequências políticas adversas para a Alemanha.
Uma ameaça
similar de isolamento político ocorreu mais tarde, dentro do contexto da
reunificação alemã. Miterrand havia
levantado a possibilidade de uma tripla aliança entre a Grã-Bretanha, a França
e a União Soviética, bem como um cerco à Alemanha. Somente uma moeda única poderia impedir tal
cenário.
Enquanto a
classe política alemã tentava convencer o cético povo alemão dos benefícios da
moeda única, os acadêmicos do país tentavam persuadir a classe política quanto aos
perigos desta mesma moeda única, exortando o governo a não assinar o Tratado de
Maastricht. Sessenta economistas
assinaram um manifesto em 1992 afirmando, dentre outras coisas, que suas
provisões eram muito brandas.[5] Em 1998,
155 professores de economia alemães exigiram um adiamento da implantação da
união monetária (mas sem êxito). As
estruturas dos países europeus eram diferentes demais para tornar o arranjo
viável. Mesmo vários burocratas do
Bundesbank se opunham à introdução do euro antes que houvesse uma união
política já estabelecida. Eles
argumentavam que uma moeda comum deveria ser o fim, e não o meio de uma
convergência econômica. Ao declarar que
uma união política seria um pré-requisito necessário para uma união monetária,
o Bundesbank tinha a esperança de que o governo francês iria parar de
pressionar pela moeda única. Em um ato
de desaprovação, o Bundesbank elevou a taxa básica de juros imediatamente após
a publicação do Tratado de Maastricht em dezembro de 1991.
Especialistas
jurídicos questionaram constitucionalmente a legitimidade do Tratado de
Maastricht.[6] O professor de direito Karl Albrecht Schachtschneider
argumentou que uma união monetária só poderia funcionar e ser estável se
operasse dentro de uma união política.
Uma união política, no entanto, significaria o fim do estado alemão,
algo por si só inconstitucional.
Schachtschneider também demonstrou que a constituição alemã demandava
uma moeda estável, algo não alcançável em uma união monetária formada por
estados independentes. Os direitos de
propriedade também seriam violados em uma união monetária inflacionista.
O tribunal
constitucional da Alemanha, contudo, afirmou que o Tratado de Maastricht de fato
era constitucional. A corte estipulou
que a Alemanha participaria apenas se a moeda fosse estável; ela abandonaria a
união monetária caso ela se comprovasse instável.
Finalmente,
os políticos alteraram a constituição alemã a fim de permitir que a soberania
da moeda nacional fosse transferida para uma instituição supranacional. Tudo isso foi feito sem que a população alemã
fosse consultada.
Além do
mais, os políticos alemães argumentavam que o euro seria estável por causa de
três itens: os critérios de convergência estipulados, a independência do BCE, e
as sanções que foram institucionalizadas no pacto de estabilidade e crescimento
proposto pelo ministro das finanças da Alemanha, Theo Waigel, em 1995.[7] No entanto, todos estes três argumentos
fracassaram.
Os
critérios de convergência não foram aplicados automática e rotineiramente, como
deveria; e o Conselho da União Europeia ainda podia decidir, com uma maioria
qualitativa, quais outros países poderiam entrar na zona do euro. Com efeito, o Conselho acabou por permitir a
entrada de países como Bélgica e Itália, mesmo com ambos não cumprindo o
critério da limitação da dívida pública a 60% do PIB. Nem a própria Alemanha obedecia a este
critério. Ademais, vários países só
conseguiram cumprir alguns critérios porque recorreram a truques contábeis que,
ou postergavam os gastos para uma contabilidade futura, ou aumentavam as
receitas de uma só vez.[8] Vários países conseguiram satisfazer os
critérios apenas para 1997, ano durante o qual os futuros membros da união
monetária seriam nomeados. Fora isso,
foram muitos os países que só conseguiram satisfazer os critérios porque já era
esperado que eles se juntariam à união monetária. Em decorrência disso, suas taxas de juros
caíram, reduzindo o fardo da dívida e dos déficits, o que impactou
positivamente seus orçamentos.
O Pacto de
Estabilidade e Crescimento (PEC) não era rígido como Theo Waigel queria. Quando finalmente foi promulgado, em 1997,
ele já havia perdido boa parte de seu poder disciplinar. O resultou fez com que Anatole Kaletsky
comentasse no The Times que o formato
final do Tratado de Maastricht representava a terceira rendição da Alemanha à
França no período de um século, citando também o Tratado de Versalhes e o
Acordo de Potsdam.
Waigel
queria limites mais rigorosos do que aqueles estipulados por Maastricht. Ele queria restringir os déficits públicos a
1%, e exigiu sanções monetárias automáticas para os governos que violassem esse
limite. As receitas oriundas dessas
multas seriam distribuídas entre os membros da união monetária. No entanto, após o governo francês se opor à
medida, as sanções não se tornaram automáticas, mas sim dependentes de decisões
políticas, e ficou decidido que as receitas iriam para a União Europeia.
A Comissão
da União Europeia era a responsável pelo monitoramento do Pacto de Estabilidade
e Crescimento.[9] Porém, mesmo dentro da comissão não havia um
apoio resoluto ao PEC. O presidente da
Comissão Europeia, Romano Prodi, descreveu as provisões do pacto como
"estúpidas". No caso de eventuais
violações às provisões do pacto, o PEC determina que a Comissão dê
recomendações para o Conselho
para as Questões Econômicas e Financeiras
(EconFin). O EcoFin é formado pelos
ministros das finanças da União Europeia e, por determinação estatutária, deve
se reunir uma vez por mês. Ao receber as
recomendações da Comissão, o EcoFin decide, com uma maioria qualitativa, se os
critérios do PEC estão sendo cumpridos ou não.
Ato contínuo, ele deve emitir um comunicado alertando ou anunciando a
existência de déficits excessivos. O
EcoFin oferece recomendações para se reduzir os déficits. Se o governo infrator não seguir essas
recomendações e continuar desobedecendo aos critérios, será necessária uma
maioria de dois terços para se estabelecer sanções. As multas podem chegar 0,5% do PIB.
Ou seja,
eram os pecadores que decidiam se eles próprios seriam punidos. Se vários países não conseguissem cumprir os
critérios, eles poderiam facilmente fazer um acordo e apoiarem-se mutuamente,
bloqueando as sanções. Nenhum país até
hoje foi punido por não ter cumprido os requisitos.
Em novembro
de 2003, o EcoFin dispensou a França e a Alemanha de sanções recomendadas pela
Comissão. Isso desencadeou uma discussão
a respeito da eficácia do PEC, o qual, desde então, entrou em espiral
descendente, tornando-se cada vez mais enfraquecido. Finalmente, ele foi abolido no dia 20 de
março de 2005. Naquele ano, a Alemanha
havia violado o limite de 3% para o déficit público pela terceira vez
seguida. Como consequência, o EcoFin
enfraqueceu o PEC ainda mais ao definir várias situações que justificariam uma
elevação dos gastos e uma consequente violação do limite de 3%: catástrofes
naturais, PIB em queda, recessões, gastos com inovação e pesquisa,
investimentos públicos, gastos com solidariedade internacional e com questões
políticas europeias, e reformas previdenciárias.
Esta
reforma significou uma carta branca para os déficits. Dado que eram os próprios políticos que
decidiam se as sanções do PEC deveriam ou não ser aplicadas, os países
deficitários jamais foram punidos. Os
políticos posteriormente justificaram esse seu comportamento simplesmente
diluindo o PEC e efetivamente abolindo-o.
A
independência do BCE também é questionável.
Nenhum banco central é totalmente independente. Presidentes de bancos centrais são nomeados
por políticos e seus mandatos estão sujeitos a mudanças implementadas pelo
congresso.
No caso
europeu, os políticos sempre foram muito francos a respeito da "independência"
do BCE. François Mitterrand afirmava
abertamente que o BCE executaria as decisões econômicas do Conselho da União
Europeia. Na concepção dos políticos
franceses, o Conselho da União Europeia controla o BCE. Fernand Herman, membro belga do Parlamento
Europeu, exigiu que o banco central seguisse as ordens do Conselho e do
Parlamento, e ao mesmo tempo garantisse a estabilidade de preços.
O Tratado
de Maastricht também estabeleceu que intervenções estratégicas na taxa de
câmbio do euro devem ser determinadas por políticos e não pelo BCE. O governo francês chegou até mesmo a exigir
que fossem os políticos quem decidisse qual seria a política de curto prazo
para o câmbio. Mas a ideia não
vingou. Ainda assim, uma decisão guiada
por pressão política que 'conclua' que o euro está sobrevalorizado e que,
portanto, ele deve ser depreciado vai totalmente contra a operação autônoma de
um banco central garantidor da estabilidade.
Ela solapa a autonomia do BCE.
Diferenças entre o Bundesbank e o BCE
Apesar das
seguidas garantias oferecidas pelos políticos alemães de que o BCE seria uma
cópia do Bundesbank — desta forma exportando a estabilidade alemã para o resto
da Europa —, fazendo inclusive com que sua sede fosse em Frankfurt, ambos são
bastante distintos.
Desde os
primórdios, havia dúvidas quanto à independência do BCE. Seu primeiro presidente, Wim Duisenberg,
"voluntariamente" abdicou do cargo ainda na metade do seu mandato para entregar
a presidência ao seu sucessor francês, Jean-Claude Trichet. Antes da introdução do euro, Trichet, um
engenheiro por treinamento e um estatista por convicção, já havia se
pronunciado rigorosamente contra a "independência" do BCE. Do ponto de vista do governo francês, a
"independência" formal do BCE era apenas um meio necessário para fazer com que
o governo alemão concordasse com uma união monetária. Se necessário, o BCE
poderia ser utilizado como ferramenta política.
De fato, esta era a intenção dos
políticos franceses. Mitterrand havia anunciado, antes do
referendo francês para o Tratado de Maastricht, que a política monetária
europeia não seria ditada pelo BCE. A
França imaginava que o BCE, em última instância, seguiria ordens da esfera
política.[10]
Uma
importante diferença é a prestação de contas das duas instituições. O Bundesbank gerencia a política monetária
alemã diretamente. Dado que a população
alemã, por traumas históricos, é bastante avessa à inflação, para os políticos
alemães seria suicídio político tentar influenciar o Bundesbank a criar mais
inflação, ou mesmo ameaçar sua independência.
Uma maior inflação de preços faria com que os eleitores punissem os
políticos e retirassem seu apoio ao Bundesbank.
Era exatamente no apoio da população alemã que o poder do Bundesbank se
alicerçava, e não no dos políticos. Em
contraste, se há inflação de preços na zona do euro, tanto o Bundesbank quanto
os políticos alemães podem tirar o corpo fora dizendo que eles até se opuseram
às medidas monetárias inflacionistas, mas foram voto vencido perante seus
colegas europeus, bem mais numerosos.
Eles podem, portanto, culpar terceiros pela elevação dos preços. E a população alemã não pode, como punição,
eleger outros membros para a Comissão da União Europeia, simplesmente porque
tais pessoas não são eleitas pelo público.
A diferença
entre as duas instituições pode ser vista quando se compara suas funções
oficiais. A Bundesbankgesetz (constituição do Bundesbank, formulada em 1957)
estabelece a garantia da segurança da moeda como sendo a principal tarefa do
Bundesbank (Währungssicherheit) — ou
seja, a estabilidade de preços. Já a
tarefa do BCE é mais ambiciosa. O
Tratado de Maastricht declara que seu principal objetivo deve ser o de "manter
a estabilidade de preços". Porém, "sem
prejuízo ao objetivo da estabilidade de preços, o [eurossistema] deve dar apoio
às políticas econômicas gerais da Comunidade".[11] Este acréscimo é resultado da pressão do
governo francês, o qual sempre quis exercer controle político direto sobre a
impressora de dinheiro. Isso significa
que, se as taxas oficiais de inflação de preços estiverem baixas, o BCE pode —
e na realidade deve — imprimir dinheiro com o intuito de sustentar as
políticas econômicas que estiverem sendo praticadas. Se a inflação de preços estiver baixa e
houver desemprego, o BCE deve afrouxar sua postura monetária.
Curiosamente,
a interpretação do BCE sobre estabilidade de preços é um tanto permissiva:
estabilidade significa preços em ascensão, desde que moderadamente. Antes de 2003, o BCE tinha como meta para a
inflação de preços uma banda entre zero e 2%.
Devido ao amplo temor de deflação, o BCE decidiu abolir o zero da
meta. Em maio de 2003, o BCE explicitou
sua tendência inflacionista ao elevar sua meta para algo "abaixo de 2%". Ao mesmo tempo, o BCE reduziu a importância
dada ao crescimento monetário, até então um de seus pilares. O controle do crescimento monetário deixou de
ser um fim mediador e se tornou um indicador das políticas do Banco.
O legado do
Bundesbank foi novamente solapado em 2006, quando a direção do departamento de
pesquisa do BCE foi retirada de Otmar Issing, um alemão conservador, e entregue
a Loukas Papademous, um socialista grego que acredita que a inflação de preços
não é um fenômeno monetário, mas sim um fenômeno causado pelo baixo desemprego.[12] No primeiro semestre de 2011, o
enfraquecimento do Bundesbank prosseguiu com a demissão de Axel Weber. Weber vinha repetidamente criticando a
política inflacionária do BCE, combatendo a supremacia dos interesses
inflacionistas de uma aliança de países latinos liderados pela França. Quando se tornou claro que ele não mais
conseguiria levar a cabo sua filosofia, ele se demitiu do
cargo de presidente do Bundesbank e se retirou da disputa (era o favorito) para
ser o próximo presidente do BCE. A
influência do Bundesbank sobre o BCE foi ainda mais erodida.
A mais
importante diferença entre os dois bancos é que o BCE baseia-se em dois
pilares, ao passo que o Bundesbank se apoiava em apenas um. O Bundesbank se concentrava na evolução dos
agregados monetários, isto é, na inflação da oferta monetária. Qualquer desvio de suas metas inflacionárias,
expressas pelos agregados monetários, sempre era corrigida.
Já o BCE
possui um segundo pilar. Ele também se
baseia na análise de indicadores econômicos ao tomar suas decisões de política
monetária. Estes indicadores econômicos
incluem a evolução dos salários, as taxas de juros de longo prazo, a taxa de
câmbio, índices de preços, pesquisas de confiança do consumidor e das empresas,
números da produção, evoluções fiscais etc.
O BCE, portanto, possui mais poderes discricionários do que o Bundesbank,
e pode utilizar a impressora de dinheiro para fazer "estabilizações
econômicas". Mesmo se os agregados
monetários estiverem crescendo mais rapidamente do que o planejado, o BCE pode
argumentar dizendo que os indicadores econômicos permitem uma política
expansionista. Ele possui vários indicadores
para escolher como justificativa.
Outra razão
de o BCE não querer uma baixa inflação é que nenhum banco central quer entrar
para a história como um gerador de recessões.
Uma recessão na parte sul da Europa gera pressões imensas sobre o BCE
para que ele reduza as taxas de juros, mesmo que isso possa arriscar a
estabilidade monetária.
[1] Como explicou Bernard Connolly em The Rotten Heart of Europe,
p. 75, "Delors era ao mesmo tempo um nacionalista francês e um
euronacionalista. Como era possível conciliar
essa contradição? Ele via na criação da
'Europa' a melhor maneira da ampliar a influência francesa. Durante seus dez anos em Bruxelas, ele
assiduamente populava a Comissão com socialistas franceses: a Comissão desta
forma se tornou, em ampla medida, uma máquina socialista francesa. Sua esperança, bastante óbvia, era que a
'Europa' fosse gerida pela Comissão e, desta forma, dominada pela França." Ver
também as páginas 104 e 380.
[2] Esse
argumento prevalece até os dias atuais, servindo para justificar os pacotes de
socorro à Grécia. No dia 8 de julho de
2010, Wolfgang Schäuble fez a seguinte declaração: "Somos o país que está no
meio da Europa. A Alemanha sempre esteve
no centro de todas as principais guerras na Europa, mas não é do nosso
interesse ficarmos isolados." Ver Angela
Cullen e Rainer Buergin, "Schäuble Denied Twice by Merkel Defies Doctors in
Saving Euro," Bloomberg (July 21,
2010), http://noir.bloomberg.com. Ele parece inferir que a Alemanha teve de
socorrer a Grécia com o intuito de prever outra guerra europeia.
[3] Sobre o sistemático uso de acusações e
da imposição do sentimento de culpa feitos pelas elites políticas estrangeiras
e nacionais a fim de manipular a população alemã a aceitar os objetivos destas
elites, ver Heinz Nawratil, Der Kult mit der Schuld. Geschichte im Unterbewußtsein (München:
Universitat, 2008). Utilizando um
argumento similar, Hans-Olaf
Henkel argumenta que o complexo de culpa e os temores gerados pela era
nazista fazem com que os políticos alemães até hoje sejam contidos e
envergonhados, o que os inibe de defender com firmeza os interesses dos
alemães. Ver See Hans-Olaf Henkel, Rettung unser Geld! Deutschland wird
ausverkauft ? Wie der Euro-Betrug unseren Wohlstand gefährdet. (München:
Heyne, 2010), p. 30.
[4] Citado
em Marsh, Der Euro, pp. 68-69.
[5] A
revista alemã Der Focus noticiou em 1997 que a comissão da UE havia contratado
170 economistas de todos os países da Europa.
Esses economistas tinham a tarefa de convencer a população quanto às
vantagens do euro. Ver See Günter
Hannich, Die kommende Euro-Katastrophe.
Ein Finanzsystem vor dem Bankrott? (München: Finanzbuch Verlag, 2010), p. 27.
[6] Os professores universitários alemães Karl Albrecht Schachtschneider,
Wilhelm Hank, Wilhelm Nölling e Joachim Starbatty deram entrada em um
processo no tribunal constitucional contra a introdução do euro.
[7] O Pacto
de Estabilidade e Crescimento cria limites fiscais para as nações
pertencentes à zona do euro.
[8] Os truques contábeis incluíam manobras
com a Telecom França, com alguns impostos na Itália, com a empresa estatal Treuhand na Alemanha,
com as dívidas dos hospitais públicos alemães, e uma tentativa de inflacionar o
real valor das reservas de ouro de vários países. Ver James D. Savage, Making the EMU.
The Politics of Budgetary Surveillance and the Enforcement of Maastricht
(Oxford: Oxford University
Press, 2005).
[9] Ver Roy H. Ginsberg, Demystifying the European Union. The
Enduring Logic of Regional Integration (Plymouth, UK:
Rowman & Littlefield, 2007), p. 249.
[10] Mitterrand disse literalmente: "Ouve-se
dizer que o Banco Central Europeu será o mestre das decisões. Não é verdade! A política econômica pertence
ao Conselho Europeu e a aplicação da política monetária é tarefa do Banco
Central [Europeu], sempre dentro do arcabouço criado pelas decisões do Conselho
Europeu . . . As pessoas que irão determinar a política econômica, da qual a
política monetária é apenas um meio para sua implementação, são os
políticos." Citado em Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 142. Ver
também a p. 248.
[11] Ver Tommaso Padoa-Schioppa, The Euro and its Central Bank (Cambridge: MIT Press,
2004), for more details on the functions and strategies of the ECB.
[12] Ver Roland Vaubel, "The Euro
and the German Veto," Econ Journal Watch 7
(1, 2010): p. 87.