quinta-feira, 10 nov 2011
O que significa
a expressão "interesse coletivo" (ou "público")? Este conceito, que tem sido
empurrado a seco goela abaixo dos cidadãos e em especial dos estudantes de
ciências sociais e humanas nas últimas décadas, é um dos pilares centrais da
ascensão da doutrina estatista-positivista no Brasil.
À primeira
vista, qualquer desavisado nele enxerga as vestes de um postulado, isto é, de
uma verdade auto-evidente. Entretanto, para atestarmos a sua inveracidade,
basta constatarmos que tal gatilho mental é sempre proferido por uma só boca e
sempre à revelia da vontade expressa ou da consulta prévia de todos os cidadãos
que pertencem à alegada coletividade. Disto resulta que quando alguém recorre à
autoridade de tal fórmula, incorre em usurpação dos interesses individuais. Não
seria exagero acusá-lo de estelionato.
A escola que
legitima a tese da supremacia do interesse público sobre o particular é a do
utilitarismo socialista, segundo a qual a baliza do conceito de justiça é a
maximização do bem estar a um número majoritário de pessoas. Todavia, aí mesmo
morrem por asfixia não somente o senso natural de justiça (atribuir a alguém o
direito que lhe pertence) como também o conceito de segurança jurídica (o de um
indivíduo conhecer previamente seu direito para poder defendê-lo).
Sob a ótica da
prevalência do interesse coletivo nenhum chão firme há de existir, porque a
cada ação agressiva contra a propriedade alheia há de ser averiguada a sua
conformidade com os supostos resultados esperados para a aferição de sua
validade. Exemplifiquemos: um assalto cujo botim seja repartido entre os participantes
de uma quadrilha efetivamente proporciona uma melhoria do bem estar a um maior
número de pessoas do que se estivesse mantido na carteira de um único cidadão,
no caso, a vítima.
Este exemplo
pode parecer ao leitor como um exagero incabível, mas, nos EUA, a Suprema
Corte permitiu aos governos locais desapropriar moradias e fazendas em favor de
projetos de desenvolvimento privados. No Brasil, as invasões de
terras pelo MST usualmente dão ensejo à imputação de culpabilidade ao dono, que
passa a ser obrigado a provar que sua propriedade atende à "função social". Na
Venezuela, até mesmo roubos de automóveis são comumente chancelados pelas
autoridades, especialmente se forem praticados pelas milícias bolivarianas.
Expus este
prólogo bem explicativo porque no dia 26 de outubro de 2011 foi justamente com
a tese da supremacia do "interesse coletivo" que o STF, espelhando uma
jurisprudência que já vem firmando uma sólida tradição na erraticidade, decidiu
pela legalidade do exame de ordem como requisito para o exercício da advocacia:
"Tem que separar o interesse individual do interesse
coletivo. O advogado exerce função pública, e quando não tem capacitação,
coloca em risco a paz social", disse
o Ministro Marco Aurélio Mello ao deixar o
plenário do STF.
Convém recordar
que ainda recentemente o mesmo STF extinguiu até mesmo a exigência do diploma de
bacharel como condição para o exercício da profissão de jornalista, bem
como também a obrigatoriedade de inscrição na bizarra Ordem dos Músicos do
Brasil, conjuntamente com a compulsoriedade da cobrança de suas taxas e
anuidades. Como dito, já no caso dos advogados — e também dos juízes — estes
foram unânimes em afirmar o "interesse coletivo" como uma valiosa exceção.
Quanto a este
vício de supervalorização de um ofício perante outros, o filósofo e economista
Ludwig von Mises já criticava a tradição burocrata-militarista prussiana
segundo a qual os funcionários públicos gozavam de um status social mais
elevado do que as pessoas que produziam bens e serviços. Em seu livro Liberalismo — Segundo a
tradição clássica, aduziu:
Até
muito pouco tempo atrás, os funcionários públicos na Alemanha gozavam, e, de
fato, ainda hoje gozam, de um prestígio que tornou o serviço público uma
carreira altamente respeitada. A estima social com que conta um
jovem "assessor"[i]
ou tenente excede, em muito, o prestígio de um homem de negócios ou de um
advogado que tenha dedicado toda sua vida a um trabalho honesto. (...) Não
há qualquer base na razão em que se possa apoiar esta superestima das
atividades executadas nos gabinetes de autoridades administrativas. (...) Passar
seus dias numa repartição pública, preenchendo documentos, não é mais refinado,
nobre ou honroso do que, por exemplo, trabalhar numa sala de projetos de uma
fábrica de máquinas.
Prossigamos com
nossa análise sobre o depoimento do Ministro Marco Aurélio Mello, que também declarou não ver problema na realização da prova no
formato que é feito hoje: "Hoje se tem o exame feito, não pela Ordem em si, mas
por essa instituição [Fundação Getulio Vargas] acima de qualquer suspeita",
completou Marco Aurélio, referindo-se à fundação.
Não vou
contestar a laureada reputação da Fundação Getúlio Vargas, embora nos dias
atuais por tal atitude reste-me o risco de queimar as mãos. No entanto, sobre o
que o digníssimo magistrado arguiu provavelmente guarda relação com um possível
ato de corrupção com a finalidade de facilitar a aprovação de um ou de mais
indivíduos em função de uma relação de apadrinhamento.
Porém, nem de
longe é este o principal problema que o exame de ordem é passível de causar;
além do flagrante e injustificado duplo ato administrativo para um mesmo fim ("bis in idem"), há ainda outros dois deveras
preocupantes: a reserva protecionista do mercado e o filtro ideológico.
Entenderam em
uníssono os excelentíssimos que o bacharel incapaz há de botar em risco a paz
social, conforme declaração já transcrita acima. Não entendo e parece que
também não foi explicado como isto pode acontecer. Será por causa de petições
esdrúxulas? Será por causa de peças de defesa ineptas[ii]?
Ora, uma petição mal feita pode ser simplesmente indeferida, e no caso de
lides, para cada causa ganha haverá sempre outra oposta que resta perdida.
Então, qual o grande risco para a paz social?
Agora, peço aos
nobilíssimos a máxima vênia: onde haveremos de encontrar muito maior risco para
a paz social? No trabalho deste ou daquele advogado incompetente, cuja
reputação há de afastá-lo naturalmente do mercado, ou no risco de o exame de
ordem — abusando de seu poder monopolista — promover uma perigosa seleção
ideológica dos candidatos? Aqui alerto que se trata de um perigo latente, que
deve antes de tudo ser considerado aprioristicamente, mas que já podemos
constatar sinais visíveis de sua existência.
Da mesma forma,
temos uma entidade formada por advogados, sendo que são os mesmos que detêm o
poder de crivar quantos mais poderão entrar no mercado. Que interesse terão
eles em aceitar a participação de novatos no mercado? Vamos refletir com base
em paralelos: que tal um conselho formado por supermercadistas com o poder de
admitir, a seu exclusivo juízo, novos concorrentes na praça? Então, não temos
aí um perigoso precedente contra a paz social? Será isto menos importante do
que o fulano perder o prazo para interpor o recurso?
Só para
recordarmos, neste ano de 2011 foram aprovados apenas 4% dos bacharéis. Assim
sendo, ou temos um gravíssimo escândalo no sistema de ensino, posto que 96% dos
formados são considerados incapazes, ou temos um flagrante de desvio de
finalidade no exame de ordem, levado ao extremo não para aprovar
qualitativamente mediante critérios mínimos aceitáveis, mas sim para obstar no
máximo possível a entrada de novos concorrentes.
Vamos agora a
um pequeno raciocínio lógico: quem são os especialistas da fundação Getúlio
Vargas que elaboram as provas? Ora, se não são advogados, então estamos em uma
situação em que não-advogados elaboram provas de exame de ordem para que bacharéis
em Direito possam se tornar advogados, o que nos leva a um estrondoso absurdo.
Absurdo? Mas, e se forem advogados, digo, advogados aprovados pela OAB? Oras,
então estamos diante do mesmíssimo problema, ainda não resolvido: ainda são os
sócios da Guilda os que ditam as regras.
Mises também
nos ensina sobre o que denominou de "socialismo das guildas". O trecho abaixo
transcrito, extraído de sua mais famosa obra, Ação Humana,
é um pouco longo e de certa forma desrespeita um pouco as normas usuais para
citações. Todavia, pelo seu alto valor informativo, apresento-o sem cortes:
Ao
elaborar o seu projeto, os socialistas de guildas tinham em mente as condições
de funcionamento dos governos locais ingleses e as relações entre as várias
autoridades locais e o governo central da Inglaterra. Seu objetivo era
estabelecer a autogestão de cada setor da indústria; pretendiam instaurar,
segundo palavras dos Webbs,
"o direito de autodeterminação de cada profissão". Da mesma maneira que cada
municipalidade se ocupa dos assuntos da comunidade local e o governo nacional
se encarrega dos assuntos que dizem respeito à nação, a guilda, e apenas ela,
deveria ter jurisdição sobre seus assuntos internos, ficando a intervenção do
governo adstrita àqueles casos que as próprias guildas não pudessem resolver.
Entretanto,
num sistema de cooperação social com base na divisão do trabalho, nada há que
se identifique com o interesse exclusivo dos membros de algum estabelecimento, companhia
ou setor industrial, e que não seja também de interesse dos demais membros da coletividade.
Não existem questões internas de qualquer guilda ou corparazione cujas soluções não afetem a toda a nação. Um setor da
atividade econômica não está a serviço apenas daqueles que nele trabalham; está
a serviço de todos. Se, num setor da atividade econômica, houver ineficiência,
desperdício dos fatores escassos de produção ou relutância em se adotarem os
métodos de produção mais adequados, todos saem prejudicados. Não se pode deixar
que os membros da guilda decidam sobre o método tecnológico a ser adotado, sobre
a quantidade e qualidade dos produtos, sobre a jornada de trabalho e mil coisas
mais, porque essas decisões afetam a toda a comunidade. Na economia de mercado,
o empresário, ao tomar essas decisões, está incondicionalmente sujeito às leis
do mercado; na realidade, são os consumidores que tomam as decisões. Se o
empresário tentar desobedecê-los, sofrerá perdas e logo perderá sua posição
empresarial. Por outro lado, as guildas monopolísticas não precisam temer a
competição; gozam do direito inalienável de exclusividade no seu setor de produção.
De servidores do consumidor transformam-se em senhores. Ficam
livres para recorrer a práticas que favorecem seus membros às expensas do resto
da população.
Pouco
importa que a guilda seja comandada exclusivamente por trabalhadores ou que os
capitalistas e antigos empresários, em alguma medida, ainda participem de sua
direção. Carece também de importância o fato de os representantes dos
consumidores disporem ou não de assentos no conselho diretor da guilda. O que
importa é que a guilda, se autônoma, não estará sujeita à pressão que a forçaria
a ajustar seu funcionamento de modo a atender os consumidores da melhor maneira
possível; terá liberdade para dar precedência aos interesses de seus membros
sobre os interesses dos consumidores. O esquema do socialismo de guildas e do
corporativismo, não leva em consideração o fato de que o único propósito da
produção é o consumo. Há uma inversão
total de valores; a produção torna-se um fim em si mesmo.
Até aqui vimos
os problemas causados por um tipo especial de conselho de classe: a OAB,
potencialmente — se já não o é de fato — corporativista e ideologicamente
engajada. Então, a pergunta que naturalmente exsurge é: que solução poderia ser
mais viável?
Allain
Peyrefitte nos conta que na França monárquica as guildas e as corporações de
ofício mantinham os códigos e manuais mais exigentes para a produção de tecidos
e estampas — em termos de qualidade, não havia concorrentes à altura no mundo
conhecido. Porém, ano após ano, a França perdia mercado para os países baixos e
para as Hansas, porque lá eram fabricados produtos concorrentes de qualidade um
pouco inferior por preços mais acessíveis, que eram muito bem apreciados para
usos menos nobres.
Portanto, a
primeira resposta está em que nem todos os advogados precisam ser magníficos
juristas. Na verdade, a maior parte se ocupará de procedimentos razoavelmente
simples, do tipo "receita de bolo".
Deixemos o
mercado livre e, ao invés de mantermos uma entidade representativa de classe na
forma de uma autarquia estatal, poderemos vislumbrar a ascensão natural de não
somente uma OAB, mas de várias delas, isto é, na forma de associações puramente
privadas, cada qual com sua filosofia e reputação. Com o tempo, será muito
fácil a um cidadão identificar que tipo de advogado deseja: se aquele que
pertence a uma conceituadíssima associação, para resolver um caso muito
complexo, ou de uma associação mais simples, cujos integrantes sejam
profissionais mais acessíveis, para resolver problemas mais cotidianos.
Estas
associações poderão estipular todas as exigências que lhe vierem à telha, desde
que todo bacharel terá o poder de escolha de optar pela qual mais se interessa,
ou mesmo não se alinhar a nenhuma delas, preferindo construir seu nome por si
próprio.
O modelo que
retrato acima não é utópico: funciona de forma excelente no meio da engenharia:
são as chamadas "sociedades classificadoras", entidades totalmente
privadas de certificação que começaram registrando e editando normas para a
construção de embarcações mercantes e que hoje atuam também no segmento
ferroviário, rodoviário, aeronáutico e de grandes obras. A mais antiga é o
Lloyd Register, fundado em 1760 na Inglaterra e que funciona até hoje.
Quando um
empresário, digamos, um armador, adere a uma sociedade classificadora, ele se
submete a ela voluntariamente, devendo construir seus navios conforme as
especificações técnicas por ela estabelecidas. Pode parecer estranho, mas a
reputação que goza a sociedade classificadora garante segurança aos
contratadores de fretes e fornecedores, bem como prêmios mais baratos nas
seguradoras e acesso facilitado aos portos das economias mais pujantes. Todo o
sistema funciona em bases voluntárias e contratuais, nos quais a reputação e a
confiança são os maiores ativos.
Este modelo poderia
ser reproduzido no Brasil tendo somente vantagens a auferirmos. É uma questão
de mudança de cultura. Já estamos fartos deste amálgama de modelos socialistas
falidos.
Leia também: O cartel dos advogados
[i] Na
Alemanha, a administração pública tinha uma estrutura militarizada, de modo que
os "tenentes" seriam hoje comparáveis aos funcionários públicos concursados de
nível superior em início de carreira.
[ii] - Uma
peça de defesa considerada inepta é aquela que não ataca adequadamente os
motivos apresentados pela acusação. Ex.: um sujeito acusado de roubo alega em
seu favor que é pessoa de ilibada reputação, ao invés de procurar desqualificar
ou justificar as provas que contra ele pesam.