segunda-feira, 24 out 2011
Quando
as placas tectônicas sob a sociedade se deslocam, a confusão toma conta. E junto com a confusão vêm as ilusões e os
pensamentos fantasiosos.
Tudo
indica que os mercados financeiros, mais uma vez, conseguiram se deixar levar
para um estado de expectativas irrealistas.
A ideia agora é que o encontro
de líderes europeus ocorrido no domingo, 23 de outubro, e sua sequência, na
próxima quarta-feira, supostamente criará um "plano abrangente" para resolver a
crise da dívida europeia. Mas é claro
que nada disso irá ocorrer, e por uma razão muito simples: é impossível. Aqueles que acalentem tais esperanças
fantasiosas são ingênuos e fatalmente se desapontarão.
Recuemos
um pouco e analisemos o problema, o qual, bem resumidamente, é este: o modelo
social dominante da segunda metade do século XX — o estado social-democrata
com seus altos níveis de tributação, de regulamentação e de sufocantes
intervenções no mercado, algo que, por conseguinte, o torna crescentemente
dependente de uma constante expansão da oferta de papel-moeda fiduciário e do
crédito artificialmente barato — está rapidamente se aproximando de seu lógico
e inevitável ponto final, e não só na Europa.
Ao redor do mundo, uma excessiva e ingovernável pilha de dívida vai se
amontoando, a fragilidade financeira vai se tornando sistêmica e o crescimento
econômico segue debilitado.
Para
muitos, inclusive para alguns daqueles que estão protestando sob o estandarte
'Ocupar Wall Street', toda essa bagunça merece o rótulo de "crise do
capitalismo". Que isso seja uma besteira
e um contrassenso é algo que já expliquei aqui. O que realmente estamos testemunhando não é a
crise do capitalismo, mas sim o fracasso do estatismo. O atual sistema, certamente o sistema
financeiro, pouco tem a ver com um genuíno capitalismo; e se os mercados
financeiros estão agora sendo demonizados pelo seu fracasso de não mais estar
conseguindo financiar esquemas Ponzi, então isso significa que se está querendo
matar o mensageiro ao invés de atacar — ou até mesmo de entender — as causas
básicas da doença. Como disse, estamos
também vivenciando uma época de grande confusão.
Fracasso do estatismo
A
loucura monetária das últimas décadas foi possível somente por causa da gradual
transição ocorrida no sistema: foi-se abandonando a apolítica e inflexível
moeda-commodity (o dinheiro escolhido pelo livre mercado) em prol da ilimitada
e totalmente discricionária moeda fiduciária (dinheiro estatal). Essa mudança foi completada no dia 15 de
agosto de 1971, quando tal sistema tornou-se global. Em termos puramente lógicos, o que este
sistema monetário inevitavelmente gera?
Em
um sistema completamente baseado no dinheiro de papel, bancos não podem ser
considerados empresas capitalistas privadas; eles necessariamente se tornam
meras extensões do estado, pois o estado detém o monopólio da irrestrita
criação de dinheiro. O setor bancário
torna-se um cartel comandado e coordenado pelo banco central estatal (processo
esse descrito aqui). Para operar um banco, você precisa ter uma
licença estatal que requer que você tenha uma conta junto ao banco central.
Em
tal sistema, o banco central pode criar reservas bancárias literalmente do nada
e sem qualquer limite, além de possuir total controle sobre o nível e o custo
destas reservas. O banco central,
portanto, detém o controle supremo do financiamento dos bancos e da disponibilidade
de crédito na economia — disponibilidade essa que, sob esse arranjo, foi
supostamente libertada de sua limitação natural sob o capitalismo: a poupança
voluntária.
Neste
sistema, geralmente se supõe que o estado não pode ir à falência, pois ele
sempre poderá imprimir mais dinheiro para se financiar. Da mesma maneira, supõe-se que os bancos não
apenas não podem quebrar, como também não precisam sequer encolher, ao menos
coletivamente, pois uma quantidade infinita de reservas bancários sempre pode
ser injetada no sistema para socorrê-los.
E isso de fato se tornou uma regra geral no mundo atual.
Logo,
não é de se surpreender que aqueles que estão no comando dos bancos e aqueles
que estão no comando das finanças estatais venham se comportando há décadas
como se o genuíno Grande Regulador da vida econômica — isto é, a ameaça de
falência — não lhes inquietasse o mínimo.
Mas agora que o sistema finalmente está sofrendo as consequências de sua
overdose de crédito farto e barato, e que os quarenta anos de farra alimentada
pelo dinheiro de papel acabou, a realidade já está se impondo
vigorosamente. E ela vem causando choque.
Há
muita conversa sobre um 'retorno à normalidade'. O mercado, é claro, possui uma maneira de
retornar à normalidade, a qual envolve liquidar os excessos, limpar os
desequilíbrios e desarranjos, declarar moratória sobre aquilo que não pode e
não será quitado, e deflacionar os preços que não refletem a demanda real. Liquidação, calote e deflação, entretanto,
são resoluções politicamente inaceitáveis, pois elas atacam exatamente o cerne
do nosso sistema de 'capitalismo' administrado pelo estado: a noção de que o
estado está acima das leis da ciência econômica, e que ele pode conferir
similar imunidade aos seus protetorados, sendo os mais importantes os bancos.
Qual o problema de 2 trilhões de euros
entre amigos?
Voltemos
à realidade alternativa do debate político na Europa. A esperança de vários agentes do mercado
financeiro parece ser a de que o encontro de líderes europeus irá revelar 1)
quais serão as medidas tomadas pela Alemanha e pela França para erigir uma
muralha em volta da Grécia, caso ela declare moratória, 2) que os bancos serão
'recapitalizados', e 3) novas medidas decisivas rumo a uma maior 'integração
fiscal'. O desejo aqui é evidente: o
Paizão irá finalmente dar um passo adiante, riscar uma linha na areia e dizer:
"Todo acaba aqui. Hora de sair dessa
crise."
Há
apenas um problema: ninguém tem o dinheiro para fazer isso tudo.
Na
quarta-feira passada, o jornal britânico The
Guardian especulou que a Alemanha e a França haviam concordado em criar um fundo
de socorro de 2 trilhões de euros. Como
consequência, os mercados de ações ao redor do mundo vivenciaram uma breve e
forte reação. Finalmente a grande bazuca
havia sido disparada.
Eu
realmente fico imaginando se ninguém nunca ouviu falar de Brian Cowen. Ele era o desafortunado camarada irlandês
que, em 2008, resolveu brincar de Paizão implementando uma proteção oficial do
governo para os bancos irlandeses. A
consequência foi a bancarrota geral de seu país.
Se
Merkel e Sarkozy fossem realmente imbecis a ponto de lançar um fundo de socorro
de 2 trilhões de euros, certamente valeria muito a pena ficar imediatamente
vendido em títulos públicos franceses e alemães. Alemanha e França não têm dinheiro para
socorrer ninguém. Tudo o que eles podem
fazer é empilhar ainda mais dívida sobre uma já colossal e cada vez maior pilha
de dívida própria. O mercado não levaria
tanto tempo, como ocorreu em 2008 no caso da Irlanda, para perceber qual seria
o fim da aventura. [E, de fato, a
insanidade foi cancelada
ontem].
Ademais,
todos os envolvidos já devem ter percebido que o garotinho perdido na multidão
já gritou que o imperador Sarkozy e a imperatriz Merkel estão nus. O spread dos juros dos títulos públicos
franceses já explodiu, e a Moody's já alertou que a classificação AAA da França
(hein? Três As?) pode ser submetida a uma revisão. Os spreads dos CDS [Credit Default Swap, uma
espécie de seguro contra um eventual calote de uma instituição qualquer]
dos títulos alemães estão crescendo, e o custo de se fazer um seguro contra a
falência da Alemanha só tem uma direção a seguir: para o alto. Já mencionei que ficar vendido em títulos
alemães e em títulos do Tesouro americano é a estratégia do século?
Toda
a noção de 'cercar' a Grécia é, obviamente, absurda. É como se a Grécia tivesse contraído alguma
rara doença contagiosa da qual nações mais saudáveis, como Itália ou Espanha,
tivessem de se proteger. No entanto, a
contínua e infindável deterioração fiscal não é um vírus, mas sim uma ferida
fatal e autoinfligida, que todas as nações europeias — e, com efeito, quase
todos os modernos estados social-democráticos — estão se impondo a si
próprias. A diferença entre a Grécia e a
Alemanha é de grau e não de princípio.
Por
essas razões, a ideia de que uma forma de 'integração fiscal' poderia ser a
solução é igualmente absurda e sem sentido.
É como se juntar as finanças dos já-falidos com a dos quase-falidos
fosse de alguma forma gerar uma comunidade de fiscalmente sólidos; é como se
você pudesse melhorar a situação fiscal de uma comunidade na qual alguns
habitantes estouraram seus cartões de crédito, e outros ainda estão um
pouco abaixo do seu limite, dando a todos eles uma conta bancária conjunta.
Mas
então isso significa que todas as opções políticas se exauriram? Isso então significa que o calote, a
liquidação e a deflação são agora inevitáveis?
Ainda vai piorar
Calma. Ainda restam algumas opções para os
governos. Nenhuma delas irá solucionar o
problema; todas elas irão piorar a crise; todas elas são assustadoramente feias
e destrutivas. Obviamente, creio que
todas elas serão rapidamente adotadas pelos governos.
Sempre
há a probabilidade de novas regulamentações e de mais intervenções no
mercado. Sempre se pode recorrer a
controles de capital e à proibição da venda á descoberto de títulos do governo. Creio que tudo isso será implementado em
algum ponto de um futuro não muito distante.
Como todas as intervenções governamentais, elas irão piorar as coisas e
acelerar o falecimento do sistema.
Porém,
o maior de todos os erros já está sendo cometido, e nem de longe está prestes a
acabar: a impressão, cada vez mais rápida, de quantidades cada vez maiores de
dinheiro.
O
Banco Central Europeu será solicitado/convencido/forçado a prover suporte ao
mercado de títulos da dívida de um número cada vez maior de governos de países
europeus. E a uma intensidade
crescente. Bancos centrais e moedas
fiduciárias não são criações do livre mercado, mas sim de políticos. Sua função sempre foi a de financiar o estado. Já chegamos ao ponto em que todos os
principais bancos centrais do mundo são os principais compradores —
frequentemente, os maiores compradores marginais — da dívida de seus
governos. O Federal Reserve já é o maior
detentor de títulos do Tesouro americano; e quando a recém-anunciada segunda
rodada de "afrouxamento quantitativo" for completada na Grã-Bretanha, o Bank of
England será o detentor de quase um quarto de todos os títulos públicos
britânicos (os Gilts).
Financiar
o estado diretamente com a impressora de dinheiro é o penúltimo estágio lógico
da morte do atual sistema de moeda fiduciária, e todas as economias estão se
aproximando velozmente desse ponto. A
zona do euro não será exceção. O estágio
final é a perda de confiança no papel-moeda e o consequente colapso
inflacionário.
Se
há uma consequência a ser esperada desse encontro de líderes europeus é a de
que eles darão mais um passo crucial para acelerar a já avançada degradação do
papel-moeda.