quinta-feira, 22 set 2011
Uma
das implicações que pode ser logicamente deduzida do irrefutavelmente
verdadeiro axioma da ação humana é a de que a ação humana significa ação propositada (ou consciente) — ação que está voltada à
realização de certos fins.
Essa
constatação é essencial para uma compreensão completa da reconstrução, feita
por Mises, da economia como uma ciência lógica e formal (praxeologia, como ele
a denominou), e todas as implicações que podem ser deduzidas disso.
Essas
implicações incluem, por exemplo, o fato de que causa e efeito (a causalidade)
e tempo são categorias da ação humana, que os meios são escassos com relação
aos fins para os quais eles possivelmente podem ser utilizados, e que a
existência da ação humana implica incertezas quanto ao curso futuro dos
eventos.
Entretanto,
a afirmação verdadeira de que a ação humana é ação propositada pode muito
facilmente atrair críticas. Por exemplo,
não se poderia desafiar essa constatação de Mises dizendo que muitas das
decisões que as pessoas tomam não são propositadas, mas sim baseadas em
arbitrariedade, capricho ou impulso?[1]
Rejeitar
a constatação de que a ação humana é propositada colocaria em dúvida todas as
afirmações verdadeiras que podem ser derivadas do axioma da ação humana. Isso abriria caminho para desorientações
metodológicas e, como resultado, falsas teorias no campo da ciência econômica.
Dada
a importância de se compreender a irrefutável verdade de que a ação humana é
ação propositada, vale a pena relembrarmo-nos brevemente de como Mises chegou à
sua constatação, a qual ele deduziu tendo como ponto de partida o axioma da ação humana.
Como
observado anteriormente, o axioma da ação humana é irrefutavelmente verdadeiro.
Trata-se de uma proposição autoevidente cuja veracidade lógica não pode
ser negada. Qualquer tentativa de
negá-la resultaria em uma insolúvel contradição intelectual, pois dizer que
"humanos não podem agir" já é em si uma forma de ação humana.
Como
explicou Mises,
O objetivo final da ação é sempre a satisfação de algum
desejo do agente homem. Só age quem se
considera em uma situação insatisfatória, e só reitera a ação quem não é capaz
de suprimir o seu desconforto de uma vez por todas. O agente homem está ansioso para substituir
uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória.
E
o homem deve fazer uso de meios para alcançar tais fins. Os meios, por sua vez, são sempre escassos em
relação aos fins que se deseja alcançar.
Se os meios não fossem escassos, eles não precisariam ser economizados,
e por conseguinte não poderia haver nenhum tipo de ação — e isso, obviamente,
não é algo crível.
É
nesse sentido que a ação humana é ação propositada: fazer uso de meios com os
quais se alcançar determinados fins. E a
praxeologia é indiferente em relação ao conteúdo dos fins ou em relação à
motivação destes fins.
Mises
observou que,
Ação humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a vontade posta
em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e
objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do
seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe
determina a vida. Estas paráfrases podem
esclarecer a definição dada e prevenir possíveis equívocos. Mas a própria definição é adequada e não
necessita de complemento ou comentário.
II.
Ao
mesmo tempo, Mises afirma que nem todas as ações efetuadas por humanos podem
ser qualificadas como ações propositadas.
Ele explicitamente
se refere a ações não propositadas (ou inconscientes),
senda estas "os reflexos e as respostas involuntárias das células e nervos do
corpo aos estímulos."
Mas
será que essa referência de Mises à ação não propositada permitiria a conclusão
de que há humanos que não agem como
indicado pelo axioma da ação humana?
Como será mostrado abaixo, tal pergunta pode ser respondida com uma
negativa.
(1)
Pra começar, deve-se observar que a constatação de que a ação humana é ação
propositada não está relacionada à psicologia. Enquanto esta última visa a explicar o
funcionamento dos eventos (mentais) interiores de uma pessoa, bem como os
motivos que a levaram a uma determinada ação, a praxeologia está estritamente
confinada à lógica da ação humana.
A
praxeologia, baseando-se no axioma da ação humana, utiliza a lógica formal para
chegar à conclusão de que a ação humana é ação propositada (a qual é totalmente
oposta de ação não propositada). A
praxeologia não recorre a nenhum tipo de suposição comportamental.
(2)
Para Mises, exemplos de ações não propositadas são o funcionamento do corpo (as
batidas do coração, a respiração etc.) e as respostas reflexivas e
involuntárias a estímulos (por exemplo, a hesitação causada por um barulho
súbito e estranho). A ação não
propositada possui, na acepção de Mises, a mesma importância de dados externos:
é parte das condições gerais sob as quais ocorre a ação humana — a ação
propositada.
Escreve
Mises,
O comportamento inconsciente dos órgãos e células do
organismo, para o nosso ego, é um dado como qualquer outro do mundo exterior. O homem, ao agir, tem de levar tudo em conta: tanto
o que se passa no seu próprio corpo quanto outros dados externos, como por
exemplo, as condições meteorológicas ou as atitudes de seus vizinhos.
Na
medida em que estas condições são sobrepujadas pela ação (como, por exemplo, a
supressão de reflexos), os seres humanos estão na realidade ampliando seu
escopo de ação propositada: "Se um homem se abstém de controlar reações
involuntárias de suas células e centros nervosos, embora pudesse fazê-lo, seu
comportamento, do nosso ponto de vista, é propositado."
(3)
Seria possível determinar uma linha divisória exata entre ação propositada e
ação não propositada? Um feto humano, um
humano adormecido, ou uma pessoa sob a influência de drogas podem apresentar
uma ação que parece ser — para um observador comum — não propositada ao invés
de propositada.
Entretanto,
o observador não está em posição de chegar à conclusão de que uma pessoa não está agindo propositadamente, não
importa o quão não propositada, sem sentido, inexpressiva ou absurda possa lhe
parecer a atitude dessa pessoa. Até
mesmo uma pessoa insana ou sob a influência de drogas pesadas age — e, por
conseguinte, tem o objetivo de alcançar determinados fins.[2]
Escreve
Mises,
As pessoas têm uma tendência para acreditar que as
fronteiras entre comportamento consciente e a reação involuntária das forças que
operam no corpo humano são mais ou menos indefinidas. Isto é correto apenas na medida em que, às
vezes, não é fácil estabelecer se um determinado comportamento deve ser
considerado voluntário ou involuntário. Entretanto,
a distinção entre consciência e inconsciência é bastante nítida e pode ser claramente
determinada.
(4)
Por último, é válido ressaltar as consequências que uma negação da afirmação
verdadeira de que a ação humana é ação propositada implicaria.
Escreve Mises,
A negação de que há propósitos nas atitudes do homem é algo
que somente pode ser aceito se for assumido que a escolha dos fins e dos meios
é algo apenas aparente; que o comportamento humano é, em última instância,
determinado por eventos fisiológicos que podem ser completamente descritos na
terminologia da física e da química.
Mesmo os mais fanáticos defensores da "Unidade da
Ciência" [dogma central do positivismo lógico], os quais formam uma
seita, evitam propagandear inequivocamente essa formulação rude e grosseira de
sua tese fundamental. E há boas razões para essa reticência.
Enquanto não for descoberta uma relação clara e distinta entre ideias e eventos
físicos ou químicos — dos quais as ideias seriam a consequência lógica —, a
tese positivista permanecerá sendo apenas um postulado epistemológico originado
não da experiência cientificamente estabelecida, mas de uma visão metafísica do
mundo...
Mas é evidente que tal proposição metafísica não pode de
maneira alguma invalidar os resultados obtidos pelo raciocínio discursivo das
ciências da ação humana. Os positivistas, por motivos emocionais, não
gostam das conclusões que o indivíduo atuante — isto é, o indivíduo que age —
irá necessariamente obter dos estudos econômicos. Como os positivistas
são incapazes de encontrar qualquer falha tanto no raciocínio econômico quanto
nas inferências dele derivadas, eles recorrem a esquemas metafísicos com o
intuito de desacreditar os fundamentos epistemológicos e a abordagem
metodológica da ciência econômica.
III.
Para
concluir, Mises demonstrou que a ação humana é ação propositada: a tentativa
propositada de remover um desconforto ou de substituir uma situação menos
satisfatória por uma mais satisfatória. Isto
advém de maneira lógica do axioma da ação humana.
Saber
que a ação humana é uma ação propositada nada tem a ver com a psicologia. Declarar que ação humana é ação propositada é
algo que não requer suposições quanto às motivações concretas do agente homem.
O
comportamento não propositado deve, no que concerne à praxeologia, ser
classificado como um dado externo, parte do ambiente geral sob o qual a ação
humana ocorre. Está fora do escopo da
praxeologia.
Embora
uma linha divisória possa ser traçada entre a ação propositada e a não
propositada em um nível meramente
conceitual, tal distinção necessariamente não pode ser detectada por um observador externo mediante sua
simples observação — e isso não invalida a distinção traçada por Mises.
Ação
humana é ação propositada. Esse
conhecimento é derivado de maneira lógica do irrefutavelmente verdadeiro axioma
da ação humana, o qual é o núcleo da praxeologia.
[1] Nesse
contexto, ver, por exemplo, V.L. Smith, "Reflections on Human Action after 50 Years" Cato Journal 19, no. 2, Fall (1999): pp.
195-214, esp. p. 200. Smith
afirma que "Mises foi superado por recentes avanços na neurociência".
[2] Na
versão original e anterior de Ação Humana,
Nationalökonomie (1940), lançada ainda
em alemão, Mises detalhadamente explica que recorrer à noção de "instinto" para
explicar o comportamento humano não forneceria uma "explicação final", no
sentido metafísico. Escreveu ele (p.29):
Der
Begriff Instinkt ist keine Erklärung im metaphysischen Sinne, er ist einfach
die Bezeichnung eines Punktes, über den hinaus die Bemühungen unseres Denken
nicht zu dringen wissen oder zumindest bisher nicht zu dringen vermochten. Die
Einführung dieses Begriffes ermöglicht es uns, für Erscheinungen, an die wir mit
dem Denkverfahren der mechanischen Kausalität nicht heranzukommen vermögen, das
andere menschliche Denkverfahren, das, das wir für die Erfassung des
menschlichen Handelns zur Verfügung haben, anzuwenden. Wie Bewegung und
Bewusstsein ist auch Instinkt nur ein Ausdruck für einen Grenzpunkt
menschlichen Denkens, und nicht etwa ein Wort zur Bezeichnung der Ursache oder
gar der letzten Ursache.