Imagine
um indivíduo cuja renda total mensal seja de
R$ 10.000. Imagine também
que seus gastos correntes (conta de luz, condomínio, internet, TV a cabo,
alimentação, escola dos filhos, vestuário, lazer etc.) sejam de
R$ 8.500.
Teoricamente,
ele está tendo uma poupança de R$ 1.500
por mês. Sempre que ele for ao banco
pedir empréstimos, ele vai utilizar esse número como prova de sua austeridade e
de seu bom histórico.
Entretanto,
não incluído nesses gastos correntes, está o pagamento de juros de uma dívida
que ele contraiu há alguns meses, quando comprou um apartamento
financiado. As prestações mensais custam
R$ 1.300.
E
além do pagamento dos juros dessa dívida, há também outras dívidas que estão
vencendo (por exemplo, dívidas com alguns amigos e parentes), as quais ele deve
pagar. A amortização dessas dívidas lhe
custa R$ 1.520.
O
leitor — que certamente está com uma calculadora na mão — já percebeu que, caso
este indivíduo diga que está poupando R$ 1.500 por mês, ele estará mentindo
fragorosamente. A realidade é que ele
está tendo gastos maiores que sua receita.
Embora ele ganhe R$ 10.000, ele está gastando R$ 11.320 — ou seja, sua despesa total é R$ 1.320 maior que sua
receita.
Um
economista governamental diria que este indivíduo possui um superávit primário de R$ 1.500. Um economista mais realista diria que ele, na
verdade, está tendo um déficit nominal
de R$ 1.320, e que é esse número que interessa.
E
como esse indivíduo não tem poupança, ele precisa se endividar para cobrir esse
seu déficit nominal. Ou seja, ele terá
de pedir R$ 1.320 emprestados.
Consequência: no final do mês, mesmo pagando dívidas, seu endividamento
aumentou. Cada déficit nominal
representa um aumento na sua dívida.
Entretanto,
a agonia ainda não acabou. Os números
acima representam apenas as despesas totais deste indivíduo. Há, no entanto, outras despesas com dívidas
que não foram incluídas no relato acima.
São despesas que não alteram seu endividamento total; elas não aumentam
nem diminuem sua dívida, mas possuem enorme influência na sua capacidade futura
de obter novos empréstimos. Refiro-me às
operações de refinanciamento da
dívida. Explico melhor.
Imagine
que este indivíduo, além de todos os gastos acima — gastos correntes e gastos
com juros e amortização de dívidas —, tenha tido de renegociar outras dívidas
pendentes. Imagine que ele possua uma
alta dívida com o Banco A porque pediu empréstimo para um cruzeiro para as
Bahamas. O banco está lhe cobrando a
quitação de R$ 4.000. Como ele não quer
ficar encrencado com bancos, ele decide quitar essa dívida. Mas, obviamente, não tem dinheiro sobrando
para isso. Logo, ele vai ao Banco B, no
qual também possui conta, e pede um empréstimo de R$ 4.000 para quitar a dívida
com o banco A.
Ou
seja, ele trocou uma dívida por outra.
Em termos práticos, ele rolou
sua dívida ou refinanciou-a. No geral, sua dívida total não se
alterou. Porém, o observador mais
iniciado sabe perfeitamente que essa medida pode ser bastante perigosa caso venha
a tornar rotineira. Nesse caso, o
rolamento da dívida vai depender totalmente da boa vontade do Banco B em
continuar fornecendo crédito para este indivíduo. Vai depender também, e principalmente, do
histórico de crédito desse indivíduo. Se
seu histórico se deteriorar, os juros cobrados pelo Banco B irão subir — ou,
na melhor das hipóteses, nunca serão baixos.
Portanto,
eis o resumo da situação fiscal desse indivíduo:
1)
Renda: R$ 10.000
2)
Gastos totais (gastos correntes + juros + amortizações): R$ 11.320
3)
Despesas apenas com juros e amortizações: R$ 1.300 + R$ 1.520 = R$ 2.820 (28,2% da renda).
4)
Refinanciamento: R$ 4.000 (40% da
renda).
5)
Volume total despendido com a dívida (juros + amortizações + refinanciamento): R$ 6.820. (68,2% da renda)
Embora
a situação acima seja hipotética, os valores são percentualmente idênticos à
situação do governo federal brasileiro em 2010.
Por que isso importa?
A
ilustração acima ajuda a entender um dos principais motivos de a taxa SELIC —
a taxa básica de juros da economia brasileira — ser alta. Principalmente, ajuda a entender por que ela
não tem como diminuir caso a situação fiscal do Brasil continue como está.
Veja
os números fiscais do governo federal para o ano de 2010, ano considerado
excelente em termos econômicos:
Receita
total: R$ 919.773.319.934
Despesa
total: R$ 1.044.122.830.205
Déficit nominal: R$
124.349.510.271
Despesa sem
juros, encargos e amortizações: R$
782.204.970.288
Superávit primário: R$
137.568.349.646
Gastos apenas com juros, encargos e amortizações: R$ 261.917.859.917
Gastos com juros, encargos, amortizações e mais refinanciamentos: R$ 635.355.479.805
Despesa total do governo, incluindo o refinanciamento da dívida: R$ 1.417.560.450.094
PIB = R$ 3.674.964.000.000
Gasto total apenas com a dívida = 69% da receita total ou 17,3% do PIB
Observe
que a diferença entre considerar apenas as despesas com juros, encargos e
amortizações e considerar esse mesmo valor acrescido dos valores do
refinanciamento é enorme.
A
mídia gosta de divulgar apenas o superávit primário, dando a impressão de
austeridade governamental. Quando muito,
ela divulga rapidamente o déficit nominal.
Entretanto,
mesmo o déficit nominal não é suficiente para explicar o valor da SELIC. Afinal, o déficit nominal representa 13% da
arrecadação total, 12% dos gastos totais e "apenas" 3,38% do PIB. Há vários países, principalmente na Europa,
com valores muito piores do que esse, mas com uma taxa de juros muito menor.
Logo,
quem procurar explicações para o alto valor da SELIC apenas nos números fiscais
divulgados pela mídia ficará completamente à deriva, sem entender nada do que
se passa.
Dado
que a taxa SELIC representa os juros anuais que o governo paga sobre sua
dívida, fica mais fácil entender a relação entre seu alto valor e a real
situação fiscal do governo: um dos principais motivos de a SELIC ser alta está
na necessidade de refinanciamento da
dívida do governo federal, cujo volume é extremamente alto.
Como
demonstrado pelo exemplo do indivíduo no início deste artigo, o governo, além
de pagar encargos e amortizar parte da dívida, tem também de rolar boa parte da
dívida que está vencendo. E para rolar
essa dívida, o Tesouro tem de emitir novos títulos da dívida, os quais devem
ser comprados por investidores. E para
atrair investidores dispostos a comprar esse alto volume de títulos, os juros
devem ser atraentes. Quanto mais alto o
valor da dívida a ser rolada, mais altos têm de ser os juros — caso contrário,
não haveria investidores suficientemente atraídos para isso, o que significa
que boa parte da dívida não poderia ser rolada.
Logo, ela teria de ser paga, restringindo ainda mais a liberdade
orçamentária do governo federal. A outra
única opção seria o calote.
Veja
no gráfico a seguir a situação de alguns países do mundo nesse quesito. Observe a coluna "NFSP total" (Necessidade de
Financiamento do Setor Público Total), que representa justamente os gastos com
juros, encargos, amortizações e refinanciamentos:

Observe
que todos os países que estão piores que o Brasil são justamente aqueles que
estão enfrentando graves crises fiscais.
Os investidores não mais estão dispostos a seguir rolando a dívida
destes países ao atual nível de juros oferecidos, o que significa que os juros
terão de ser elevados. O Brasil
aparentemente não enfrenta essa dificuldade justamente pelo fato de os juros
aqui já serem elevados.
Portanto,
enquanto a necessidade de financiamento do governo federal brasileiro continuar
alta, simplesmente não haverá espaço para grandes reduções da taxa básica de
juros. Se esta for reduzida, o governo
dificilmente conseguirá continuar rolando o mesmo montante da dívida que rola
anualmente. Isso faria com que essa
dívida rolada tivesse de ser efetivamente quitada, o que comprimiria
sobremaneira o orçamento do governo. Daí
a importância do corte de gastos. Apenas
um genuíno corte de gastos pode fazer com que haja menos necessidade tanto de
tomar dinheiro emprestado quanto de refinanciar a dívida, o que permitiria sua
efetiva quitação.
Isso
também explica por que meras perfumarias, como o espalhafatosamente
recém-anunciado plano de aumentar o superávit primário em meros R$ 10 bilhões, não
trarão efeito nenhum sobre juros — o déficit nominal e a necessidade de
refinanciamento seguem inatacados.
Outra teoria complementar
O
presidente do IMB, Helio Beltrão, tem uma teoria — a qual funciona
complementarmente à apresentada acima — para a taxa básica de juros no Brasil
ser alta. Segundo ele, um dos principais
motivos de a SELIC ser alta é porque, durante a década de 1980 e a primeira
metade da de 1990, muita gente aplicava em títulos públicos apenas para se proteger
da inflação. Isso elevou enormemente o
M3 e o M4, que é o agregado monetário que considera os títulos públicos.
Sendo
assim, os agregados monetários hoje podem ser vistos como um "triângulo
invertido" (com a base monetária representada pela ponta da pirâmide, embaixo,
e o M3/M4 sendo a base da pirâmide, acima).
Nos
países centrais a pirâmide invertida é "magra", ou seja, a relação
entre M3/M4 e a base monetária é bastante menor que no Brasil. Isso significa que no Brasil há enorme
pressão ou potencial de que os poupadores (M3 e M4) queiram transformar sua
poupança em "dinheiro" (M1), para gastar.
Quem segura e impede a conversão é a taxa de juros de curto prazo
(SELIC, que é muito próxima ao CDI).
Quanto
mais o governo emite títulos, mais essa pirâmide fica "gorda" — mais o M3 e o
M4 aumentam em relação ao M1.
Consequentemente, mais aumenta a pressão de conversão de títulos
públicos em dinheiro — o M3/M4 começa a "pingar" ainda mais no M1. Sendo assim, se a taxa SELIC diminuísse, o
pinga-pinga viraria uma cachoeira inflacionária — e como o Banco Central
trabalha com metas de inflação, ele não pode deixar isso acontecer.
Conclusão
Esse
artigo abordou apenas a questão da SELIC, nada comentando sobre o nível dos
juros praticados pelos empréstimos bancários, cujos motivos de serem altos são
outros — embora sejam diretamente influenciados pelo valor da SELIC. (Para uma explicação completa sobre o que é a
SELIC e sua relação com o sistema bancário, veja este artigo.)
Embora
possa parecer menos importante do que os juros bancários, o fato é que a taxa
SELIC traz impacto direto sobre as finanças do governo — e, logo, sobre toda a
economia. Quanto maior a SELIC, maiores
serão os gastos do governo com a dívida.
Consequentemente, maior terá de ser a carga tributária.
Sem
cortes de gastos, será impossível o governo reduzir sua necessidade de
financiamento. Sem reduzir sua
necessidade de financiamento, será impossível uma redução expressiva na
SELIC. Sem uma redução na SELIC, os
gastos com a dívida seguirão altos. Com
altos gastos, será impossível uma redução na carga tributária.
E
isso afeta toda a economia.