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Política

Políticas conciliatórias levam ao socialismo

13/04/2010

Políticas conciliatórias levam ao socialismo

N. do T.: essa palestra, hoje um clássico, foi proferida por Mises perante o University Club of New York em 18 de abril de 1950. 

 

 

 

O dogma fundamental seguido por todas as matizes de socialismo e comunismo é que a economia de mercado -- ou capitalismo -- é um sistema que prejudica os interesses vitais da imensa maioria das pessoas para o benefício exclusivo de uma pequena minoria de individualistas insensíveis.  É um sistema que condena as massas a um crescente empobrecimento.  Produz miséria, escravidão, opressão, degradação e exploração do trabalhador, ao mesmo tempo em que enriquece uma classe de parasitas ociosos e inúteis.

Essa doutrina não foi criada por Karl Marx.  Ela já havia sido desenvolvida muito antes de Marx entrar em cena.  Seus mais eficientes propagandistas não foram os autores marxistas, mas homens como Carlysle e Ruskin, os fabianos britânicos, os professores alemães e os institucionalistas americanos.  E é um fato muito interessante que os poucos economistas que ousaram contestar a veracidade desse dogma foram rapidamente silenciados e tiveram seus acessos impedidos às universidades, à imprensa, à liderança de partidos políticos e, acima de tudo, aos cargos públicos.  A opinião pública, por sua vez, também já aceitou sem quaisquer reservas a condenação do capitalismo.

Socialismo

Porém, é óbvio, as conclusões políticas práticas que as pessoas tiraram desse dogma não são uniformes.  Um grupo declarou que há somente uma maneira de acabar de uma vez por todas com esses malefícios: abolindo o capitalismo por completo.  Eles advogam a substituição do controle privado dos meios de produção pelo controle público.  Eles visam o estabelecimento do que se convencionou chamar de socialismo, comunismo, planejamento central ou capitalismo de estado.  Não mais devem os consumidores, por meio de suas decisões de comprar ou não comprar, determinar o que deve ser produzido, em qual quantidade e com qual qualidade.  Doravante uma autoridade central deve dirigir todas as atividades voltadas para a produção. 

Intervencionismo, supostamente uma política conciliatória

Um segundo grupo parece ser menos radical.  Eles rejeitam o socialismo tanto quanto o capitalismo.  Eles recomendam um terceiro sistema que, dizem eles, está tão longe do capitalismo quanto do socialismo.  Trata-se de um sistema que, por ser aparentemente capaz de organizar a economia da sociedade de um terceiro modo, localiza-se no meio dos dois outros sistemas; e ao mesmo tempo em que retém as vantagens de ambos, magicamente também seria capaz de evitar as desvantagens inerentes a cada um.  Esse terceiro sistema é conhecido como intervencionismo.  Na terminologia política, normalmente nos referimos a ele como políticas de centro.  O que torna esse sistema tão popular perante muitas pessoas é o modo particular como elas optam por olhar os problemas envolvidos. 

Do modo como essas pessoas veem as coisas, de um lado temos os capitalistas e os empreendedores, e do outro, os assalariados, e ambas as classes não se entendem quanto à distribuição dos rendimentos do capital e das atividades empresariais.  Ambas exigem todo o bolo para si próprias.  A solução oferecida por esses mediadores passa então a ser: "Vamos fazer as pazes dividindo igualmente para ambas as classes os valores em disputa".  O estado, sendo um árbitro absolutamente imparcial, deve intervir e refrear a ganância dos capitalistas e transferir uma parte dos lucros para as classes trabalhadoras.  Somente assim será possível destronar o deus Moloch do capitalismo sem ao mesmo tempo entronizar o Moloch do socialismo totalitário.

Entretanto, esse modo de julgar a questão é inteiramente falacioso.  O antagonismo entre capitalismo e socialismo não se resume a uma divergência quanto à distribuição dos espólios.  Trata-se de uma contenda sobre qual desses dois esquemas de organização econômica da sociedade é aquele que leva à melhor consecução daquele objetivo que todos consideram ser o propósito supremo da economia -- a melhor oferta possível de mercadorias e serviços proveitosos.

O capitalismo quer atingir esse objetivo por meio da iniciativa livre e privada, sujeita à supremacia do público, que tem o poder de decidir se vai ou não comprar o produto desse empreendimento no mercado.  Já os socialistas querem substituir os planos de vários indivíduos pelo planejamento único de uma autoridade central.  Eles querem substituir aquilo que Marx chamou de "anarquia da produção" pelo monopólio exclusivo do governo.  O antagonismo entre essas duas doutrinas não está no modo de distribuição de uma quantidade fixa de amenidades.  O antagonismo está no modo de produção de todos aqueles bens que as pessoas querem desfrutar.

O conflito entre esses dois princípios é irreconciliável e não permite qualquer tipo de concessão.  O controle é indivisível.  Ou a demanda que os consumidores manifestam via mercado decide como e para quais propósitos os fatores de produção devem ser empregados, ou o governo assume o controle dessa decisão.  Não há nada que possa mitigar a oposição entre esses dois princípios contraditórios.  Eles são mutuamente excludentes.  O intervencionismo não é um áureo meio-termo entre o capitalismo e o socialismo.  Ele é o projeto de uma terceira via de organização econômica da sociedade e deve ser avaliado como tal.

Como funciona o intervencionismo

Não é meu objetivo nessa discussão suscitar qualquer debate sobre os méritos do capitalismo ou do socialismo.  Hoje estarei lidando apenas com o intervencionismo.  E não é meu intento fazer uma avaliação arbitrária do intervencionismo partindo de algum ponto de vista preconcebido.  Meu único interesse é mostrar como o intervencionismo funciona e se ele pode ou não ser considerado um padrão para uma permanente organização econômica da sociedade.

Os intervencionistas sempre fazem questão de enfatizar que seu plano é manter a propriedade privada dos meios de produção, incentivar o empreendedorismo e as trocas de mercado.  Porém, prosseguem eles, é imperioso impedir que essas instituições capitalistas continuem espalhando a devastação e explorando injustamente a maioria das pessoas.  É dever do governo restringir, por meio de decretos e proibições, a ganância das classes proprietárias -- caso contrário, sua avidez irá seguir prejudicando indefinidamente as classes mais pobres.   

O capitalismo laissez-faire é algo nocivo.  Porém, para se eliminar seus malefícios, não é necessário abolir o capitalismo por completo.  É possível melhorar o sistema capitalista por meio da interferência estatal sobre as ações dos capitalistas e empreendedores.  Tais regulamentações e controles governamentais sobre as empresas são a única maneira de impedir o surgimento do socialismo totalitário e salvar aquelas características do socialismo que valem a pena ser preservadas. 

Baseando-se nessa filosofia, os intervencionistas defendem uma galáxia de medidas.  Peguemos uma delas, o esquema bastante popular de controle de preços.

Como o controle de preços leva ao socialismo

O governo acha que o preço de uma determinada mercadoria, por exemplo, o leite, está muito alto.  Ele quer fazer com que os pobres possam dar mais leite aos seus filhos.  Assim, ele recorre ao controle de preços e congela o preço do leite em um valor abaixo daquele predominante no livre mercado.

O resultado é que os produtores marginais de leite, aqueles que produzem ao custo máximo, agora passarão a sofrer prejuízos.  As receitas de venda são inferiores aos custos de produção.  Como nenhum agropecuarista ou empreendedor pode continuar produzindo com prejuízos, esses produtores marginais irão parar de produzir e vender leite no mercado.  Eles irão empregar suas habilidades e suas vacas em atividades mais lucrativas.  Eles irão, por exemplo, produzir manteiga, queijo ou carne.  Como resultado, haverá menos -- e não mais -- leite disponível para os consumidores.  Isso, obviamente, é o oposto do que tencionava o governo.  Ele queria fazer com que fosse mais fácil para algumas pessoas comprar mais leite.  Porém, como resultado dessa interferência, a oferta de leite caiu.  A medida não só foi um fracasso para o governo, como também piorou as coisas exatamente para aquele grupo de pessoas que o governo ansiava por ajudar.  A situação tornou-se pior do que seu estado anterior, aquele que justamente estava tentando ser remediado.

Agora, porém, o governo tem uma alternativa.  Ele pode revogar seu decreto e abster-se de quaisquer outras tentativas de controlar o preço do leite.  Porém, se ele insistir em sua intenção de manter o preço do leite abaixo do nível que determina o livre mercado e, ao mesmo tempo, quiser evitar uma queda na oferta de leite, ele deverá tentar eliminar as causas que tornam as atividades dos produtores marginais não lucrativas.

Ao primeiro decreto que atacava apenas o preço do leite, o governo terá agora de acrescentar um segundo decreto fixando os preços dos fatores de produção necessários à produção de leite.  E esses preços terão de ser fixados em um nível tal que os produtores marginais de leite não mais sofrerão prejuízos e irão, como consequência, deixar de restringir a produção. 

Mas aí, porém, a mesma história vai se repetir em um plano mais remoto.  A oferta dos fatores de produção requeridos para a produção de leite irá cair, e o governo estará de volta ao seu ponto de partida.  Se ele não quiser admitir derrota e achar que deve continuar se intrometendo no sistema de preços, ele terá de ir ainda mais fundo e fixar os preços daqueles fatores de produção utilizados na produção dos fatores necessários para a produção de leite.  Assim, o governo terá de sair congelando, etapa por etapa, os preços de todos os bens de consumo e de todos os fatores de produção -- tanto humanos (mão-de-obra) quanto materiais --, e terá também de obrigar todos os empreendedores e todos os trabalhadores a continuar trabalhando a esses preços e salários.

Nenhum ramo da indústria poderá ser deixado de fora desse processo de congelamento de preços e salários, e nem da obrigação de produzir aquelas quantias que o governo quer ver sendo produzidas.  Se alguns ramos que produzem apenas bens considerados não essenciais, ou mesmo luxuosos, forem deixados de fora desse processo, o capital e a mão-de-obra tenderá a se deslocar para esses setores, e o resultado será uma queda na oferta dos bens tidos como essenciais, cujos preços estão congelados justamente porque o governo os considera indispensáveis à satisfação das necessidades do povo.

Porém, quando esse estado de controle total da economia for atingido, não mais será possível ver qualquer rastro de uma economia de mercado.  Não mais os cidadãos poderão determinar -- por meio de suas decisões de comprar ou não comprar -- o que deverá ser produzido e como.  O poder decisório sobre essas questões foi transferido para o governo.  Isso não mais é um sistema capitalista; trata-se de um planejamento integral feito pelo governo.  Temos agora um sistema socialista.

O socialismo de economia mista

É verdade que esse tipo de socialismo preserva alguns dos rótulos, bem como a aparência externa, do capitalismo.  Ele mantém, nominalmente e aparentemente, a propriedade privada dos meios de produção, os preços, os salários, as taxas de juros e os lucros.  Entretanto, o fato é que nada disso vale, pois o que conta é a irrestrita autocracia do governo.  O governo diz aos empreendedores e capitalistas o que eles devem produzir, em que quantidade e com qual qualidade; de quem devem comprar e a quais preços, e a quem devem vender e a quais preços.  Ele decreta onde e a que salários os trabalhadores devem trabalhar.

As trocas de mercado tornam-se um mero simulacro.  Todos os preços, salários e taxas de juros são determinados pelas autoridades.  São preços, salários e taxas de juros apenas na aparência; na realidade, são meras relações de quantia nos decretos do governo.  É o governo, e não os consumidores, quem dirige a produção.  O governo determina e dirige a produção.  O governo determina a renda de cada cidadão e especifica a cada um o emprego no qual ele deve trabalhar.  Isso é socialismo utilizando apenas uma aparência de capitalismo.  Foi perfeitamente exemplificado pelo Reich Alemão de Hitler e pela economia planejada da Grã-Bretanha.

A experiência alemã e britânica

O esquema de transformação social que descrevi não é apenas uma construção teórica.  É um retrato realista da sucessão de eventos que produziram o socialismo na Alemanha, na Grã-Bretanha e em alguns outros países.

Os alemães, durante a Primeira Guerra Mundial, começaram a praticar controle de preços para um pequeno grupo de bens de consumo considerados de vital necessidade.  Foi o inevitável fracasso dessas medidas que os impeliu a ir cada vez mais fundo em suas intervenções até que, no segundo período da guerra, eles criaram o plano Hindenburg.  No contexto do plano Hindenburg, nenhum espaço foi deixado para a livre escolha da parte dos consumidores e para a livre iniciativa da parte dos empreendedores.  Todas as atividades econômicas foram incondicionalmente subordinadas à jurisdição exclusiva das autoridades.  Mas a total derrota do Kaiser acabou com todo o aparato imperial da administração, levando junto todo o grandioso plano. 

Porém, quando em 1931 o chanceler Brüning embarcou novamente em uma política de controle de preços, e seus sucessores, acima de todos Hitler, aderiram obstinadamente a ela, a mesma história se repetiu.

A Grã-Bretanha e todos os outros países que durante a Primeira Guerra Mundial adotaram medidas de controle de preços tiveram de vivenciar o mesmo fracasso.  Esses países também tiveram de aprofundar cada vez mais suas medidas intervencionistas na esperança de fazer os decretos iniciais funcionarem.  Porém eles ainda estavam em um estágio rudimentar desse processo quando a vitória na guerra e a oposição do público removeram todos os esquemas de controle de preços.

Mas tudo foi diferente na Segunda Guerra Mundial.  A Grã-Bretanha novamente recorreu ao controle de preços para algumas mercadorias vitais e teve novamente de repetir todo o repertório, implantando seguidamente diversas medidas intervencionistas até o ponto em que acabou por substituir toda a sua liberdade econômica pelo planejamento total da economia.  Quando a guerra chegou ao fim, a Grã-Bretanha era uma nação socialista.

É válido relembrar que o socialismo britânico não foi implantado pelo governo trabalhista do Sr. Clement Attlee [que sucedeu a Churchill], mas sim pelo gabinete de guerra do Sr. Winston Churchill. 

O que o Partido Trabalhista inglês fez não foi estabelecer o socialismo em um país livre, mas apenas manter o socialismo que havia se desenvolvido durante a guerra e o período do pós-guerra.  Esse fato tem sido obscurecido pela grande comoção feita acerca da nacionalização do Bank of England, das minas de carvão e de outros setores empresariais.  Entretanto, a Grã-Bretanha é hoje um país socialista não porque algumas empresas foram formalmente expropriadas e nacionalizadas, mas porque todas as atividades econômicas de todos os cidadãos estão sujeitas ao total controle do governo e de suas agências. 

As autoridades dirigem a alocação de capital e de mão-de-obra aos vários ramos industriais.  Elas determinam o que deve ser produzido.  Supremacia em todas as atividades empresariais é exclusivamente garantida ao governo.  As pessoas são reduzidas ao status de soldados rasos, incondicionalmente limitadas a seguir ordens.  À classe empresarial, os antigos empreendedores, restaram funções meramente subservientes.  Tudo o que lhes é permitido fazer é pôr em prática, dentro de uma área rigidamente limitada, as decisões dos departamentos do governo.

O que dever ser definidamente compreendido é que controles de preços direcionados a apenas algumas mercadorias fracassam em atingir os fins desejados.  O que ocorre é o exato oposto.  Eles produzem efeitos que, do ponto de vista do governo, são ainda piores que o estado anterior em que as coisas se encontravam quando o governo decidiu alterá-las.  Se o governo, a fim de eliminar essas inevitáveis porém indesejáveis consequências, seguir aprofundando suas medidas intervencionistas, ele irá finalmente transformar o sistema capitalista e de livre iniciativa em um socialismo de padrão Hindenburg.

Crise e desemprego

O mesmo é válido para todos os outros tipos de intromissão nos fenômenos de mercado.  Leis de salário mínimo, sejam elas decretadas e compelidas pelo governo ou pela pressão e violência de sindicatos, resultam em um desemprego em massa que se prolongará por anos caso os salários sejam elevados acima do seu nível de livre mercado. 

É verdade que tentativas de se diminuir as taxas de juros por meio da expansão do crédito geram um período de expansão econômica.  Mas a prosperidade assim criada é um produto artificial cujo fim inexorável é uma recessão ou até mesmo uma depressão.  As pessoas inevitavelmente terão de pagar, e de forma severa, pela orgia propiciada pelo dinheiro fácil oriundo de alguns anos de expansão creditícia e inflação monetária. 

A reincidência de períodos de depressão e desemprego em massa deixou o capitalismo desacreditado junto a pessoas pouco perspicazes.  Mas o fato é que esses eventos não são o resultado do funcionamento do livre mercado.  Ao contrário, eles são o resultado de interferências governamentais bem intencionadas, porém irrefletidas, no mercado.

Os salários e o padrão de vida só podem aumentar se houver uma aceleração do aumento do capital em relação à população.  A única maneira de aumentar os salários permanentemente para todos aqueles que estão à procura de empregos e ávidos por um salário é aumentando sua produtividade -- e isso só pode ser feito por meio do aumento do capital investido em termos per capita.

O que possibilita que os salários pagos aqui nos EUA sejam maiores que os salários da Europa e da Ásia é o fato de que o trabalhador americano é auxiliado por mais e melhores equipamentos.  Tudo o que o governo pode fazer para melhorar o bem-estar material das pessoas é estabelecer e preservar uma ordem institucional na qual não haja obstáculos à acumulação progressiva de mais capital, que é o que permite o aprimoramento dos métodos tecnológicos de produção.  Foi isso que o capitalismo alcançou no passado e é isso que ele irá alcançar também no futuro caso não seja sabotado por más políticas.  

Dois caminhos para o socialismo

O intervencionismo não pode ser considerado um sistema econômico que veio para ficar.  Ele é apenas um método para a transformação do capitalismo em socialismo por meio de uma série de etapas sucessivas.  Como tal, ele se difere dos esforços feitos pelos comunistas que tentam implantar o socialismo de uma só vez.  A diferença não está no objetivo final do movimento político; ela está principalmente nas táticas a que cada grupo recorre para alcançar o mesmo fim que ambos ambicionam.

Karl Marx e Friedrich Engels recomendaram sucessivamente cada um desses dois caminhos para a realização do socialismo.  Em 1848, no Manifesto Comunista, eles delinearam um plano para uma transformação passo a passo do capitalismo em socialismo.  O proletariado deveria ser elevado à posição de classe dominante e utilizar toda a sua supremacia política para "extrair, gradualmente, todo o capital da burguesia".  Isso, eles declararam, "somente pode ser efetuado através de intervenções despóticas nos direitos de propriedade e nas relações de produção burguesas; por meio de medidas, portanto, que parecem ser economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que, no decurso da empreitada, se superam a si próprias e são inevitáveis como meio de se revolucionar inteiramente o modo de produção".  Nessa animação, eles enumeram por meio de exemplo dez medidas que devem ser tomadas.

Anos depois, Marx e Engels mudaram de ideia.  Em seu principal tratado, O Capital, primeiramente publicado em 1867, Marx viu as coisas de maneira diferente.  O socialismo é uma inevitabilidade que virá "como a inexorabilidade de uma lei da natureza".  Mas ele não pode surgir antes que o capitalismo tenha atingido sua completa maturidade.  Há apenas um caminho para o colapso do capitalismo: deixar que ele progrida por si próprio, sem intervenções.  E somente então a grande revolta final da classe trabalhadora irá desferir o golpe de misericórdia no capitalismo e inaugurar a eterna era da abundância.

Do ponto de vista dessa última doutrina, Marx e a escola de marxistas ortodoxos rejeitam todas as políticas que pretendem restringir, regular e aperfeiçoar o capitalismo.  Tais políticas, declaram eles, não apenas são fúteis, como também são completamente prejudiciais.  Pois elas atrasam o envelhecimento do capitalismo, sua maturidade e seu consequente colapso.  Elas, portanto, não são progressivas; são reacionárias.  Foi essa ideia que levou o Partido Social Democrata alemão a votar contra a legislação da seguridade social a ser implantada por Bismarck e a frustrar o plano do chanceler de nacionalizar a indústria alemã de tabaco.  Sob o mesmo ponto de vista, os comunistas tacharam o New Deal americano como sendo uma trama reacionária extremamente prejudicial aos reais interesses da classe trabalhadora.

O que deve ser entendido é que o antagonismo entre os intervencionistas e os comunistas é uma mera manifestação do conflito entre as duas doutrinas do marxismo: a antiga e a tardia.  É o conflito entre o Marx de 1848, autor de O Manifesto Comunista, e o Marx de 1867, autor de O Capital.  E é de fato algo paradoxal que o documento no qual Marx endossou exatamente as mesmas políticas defendidas pelos pretensos anticomunistas atuais seja chamado de Manifesto Comunista.

Há dois possíveis métodos para se fazer a transformação do capitalismo no socialismo.  Um é a expropriação de todas as fazendas, fábricas e lojas, fazendo com que elas sejam geridas por aparatos burocráticos, como agências do governo.  Toda a sociedade, diz Lênin, tornar-se-ia "uma repartição e uma fábrica, com salários idênticos e iguais cargas de trabalho,"[1] e toda a economia seria organizada "como os correios".[2]  O segundo método é o método do plano Hindenburg, originalmente o padrão alemão de estado assistencialista e planejador.  Tal arranjo obrigaria cada empresa e cada indivíduo a cumprir estritamente as ordens emitidas pelo comitê central de gerenciamento da produção.  Tal era a intenção do National Industrial Recovery Act, implantado por Franklin Roosevelt em 1933, porém frustrado anos depois pela resistência das empresas e declarado inconstitucional pela Suprema Corte.  Tal é a ideia implícita nas tentativas de se substituir a iniciativa privada pelo planejamento central.

Controle cambial

O principal veículo para a implementação desse segundo tipo de socialismo em países industriais como Alemanha e Grã-Bretanha é o controle cambial.  Esses países não conseguem alimentar e prover de roupas toda a sua população utilizando apenas recursos domésticos.  Eles precisam importar grandes quantias de comida e matéria-prima.  Para poder pagar por essas importações extremamente necessárias, esses países precisam exportar produtos manufaturados, a maioria deles produzida com a matéria-prima importada. 

Nesses países, praticamente todas as transações comerciais são direta ou indiretamente condicionadas pelas exportações, importações ou ambas ao mesmo tempo.  Logo, o monopólio governamental da compra e venda de divisas estrangeiras faz com que todos os tipos de atividade empreendedorial sejam dependentes do arbítrio da agência incumbida do controle do câmbio.

Aqui nos EUA as coisas são diferentes.  O volume de comércio externo é muito pequeno quando comparado ao volume total do comércio interno.  O controle cambial iria afetar apenas ligeiramente a maior parte das empresas americanas.  É por essa razão que nos esquemas de nossos planejadores dificilmente é mencionada a questão do controle cambial.  Os objetivos deles são outros: controle de preços, de salários, das taxas de juros e dos investimentos, bem como a limitação do lucro e da renda.

Tributação progressiva

Olhando para trás e observando a evolução das alíquotas do imposto de renda, desde sua criação em 1913 até hoje, é difícil não imaginar que um dia o tributo vá absorver 100% de todo excedente da renda do cidadão comum.  Era isso que Marx e Engels tinham em mente quando, no Manifesto Comunista, recomendaram "um imposto de renda gradual ou severamente progressivo."

Outra sugestão contida no Manifesto Comunista é a "abolição de todo o direito à herança".  Até o momento, nenhum país capitalista adotou leis que chegassem a esse ponto.  Porém, ao olharmos novamente para o passado e observarmos a evolução dos impostos sobre heranças, temos de concluir que eles cada vez mais têm se aproximado do objetivo traçado por Marx.  As alíquotas mais altas dos atuais impostos sobre herança não mais permitem que tais instrumentos sejam classificados como impostos.  Eles passaram a ser medidas de expropriação. 

A filosofia subjacente a esse sistema de tributação progressiva é que a renda e a riqueza das classes mais abastadas podem ser livremente arrebatadas.  O que os defensores dessas alíquotas tributárias não conseguem entender é que a maior parte dessa renda tributada não teria sido consumida, mas sim poupada e investida.  Essa política fiscal não apenas impede uma maior acumulação de capital; ela na realidade produz uma desacumulação de capital.  E esse certamente é o estado atual das coisas na Grã-Bretanha.

A tendência em direção socialismo

O curso dos eventos nos últimos trinta anos mostra um contínuo, embora às vezes interrompido, progresso em direção ao estabelecimento nesse país de um socialismo de padrão britânico e alemão.  Os EUA começaram seu declínio bem depois desses dois países e hoje ainda está muito longe de seu fim.  Porém, se a tendência dessa política não for alterada, o resultado final diferirá apenas em termos negligentes do que aconteceu na Inglaterra de Attlee e na Alemanha de Hitler.  Uma políticas centrista não é um sistema econômico duradouro.  É um método para se implantar o socialismo a prestações.

Capitalismo de brechas

Muitas pessoas contestam.  Elas salientam o fato de que a maioria das leis voltadas para o planejamento ou para a expropriação por meio da tributação progressiva acabou deixando brechas que dão à iniciativa privada alguma margem para respirar e se manter ativa.  É verdade que certas brechas ainda existem.  E é graças a elas esse ainda é um país livre.  Mas esse "capitalismo de brechas" não é um sistema sustentável.  É apenas um pequeno alívio.  Forças poderosas já estão trabalhando intensamente para fechar essas brechas.  Dia após dia a área na qual a iniciativa privada é livre para operar vai sendo severamente limitada.

A chegada do socialismo não é inevitável

É claro que esse resultado não é inevitável.  A tendência pode ser revertida assim como o foram muitas outras tendências históricas.  O dogma marxista -- de acordo com o qual o socialismo é uma inevitabilidade que virá "com a inexorabilidade de uma lei da natureza" -- é apenas uma conjetura arbitrária destituída de qualquer prova.

Mas o prestígio que esse presunçoso prognóstico desfruta, não apenas junto aos marxistas, mas também junto a vários pretensos não-marxistas, é o principal instrumento de progressão do socialismo.  Ele propaga o derrotismo entre aqueles que, de outra forma, iriam corajosamente lutar contra a ameaça socialista.  A mais poderosa aliada da Rússia Soviética é a doutrina que diz que a "onda do futuro" nos carregará em direção ao socialismo, sendo portanto "progressista" simpatizar com todas as medidas que restringem mais e mais a operação da economia de mercado.

Mesmo nesse país, que deve a um século de "rigoroso individualismo" o mais alto padrão de vida já obtido por qualquer nação, a opinião pública condena o laissez-faire.  Nos últimos cinqüenta anos, milhares de livros publicados condenam o capitalismo e defendem o intervencionismo radical, o estado assistencialista e o socialismo.  Os poucos livros que tentaram explicar adequadamente o funcionamento da economia de livre mercado mal foram notados pelo público.  Seus autores permanecem obscuros, ao passo que autores como Veblen, Commons, John Dewey e Laski são exuberantemente glorificados.

É um fato já bem conhecido que tanto o teatro quanto a indústria de Hollywood são críticos não menos radicais da livre iniciativa que muitos romances.  Há aqui nesse país vários periódicos que, em cada uma de suas edições, atacam furiosamente a liberdade econômica.  Dificilmente encontramos uma revista de opinião defendendo o sistema que forneceu à imensa maioria das pessoas abrigo, boa comida, carros, geladeiras, rádios e outros bens que os habitantes de outros países considerariam como sendo de extremo luxo.

A consequência desse estado de coisas é que praticamente quase nada é feito para se preservar o sistema de livre iniciativa.  Existem apenas centristas conciliatórios que acreditam ter obtido algum êxito por terem adiado por algum tempo uma medida especialmente ruinosa.  Eles estão em constante recuo.  Eles hoje toleram medidas que há apenas dez ou vinte anos teriam considerado totalmente não aceitáveis.  Daqui a poucos anos eles irão aceitar tacitamente outras medidas que hoje consideram simplesmente fora de questão.

Somente uma mudança completa e meticulosa de ideologia pode impedir a chegada do socialismo totalitário.  O que precisamos não é nem de anti-socialismo nem de anticomunismo, mas de um endossamento positivo daquele sistema ao qual devemos toda a riqueza que possibilita que hoje vivamos com mais conforto do que os grandes nobres do início do século.

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Notas

[1]  Cf. Lenin, State and Revolution (Little Lenin Library No. 14, New York, 1932) p. 84.

[2]  Ibidem p. 44.

 

Sobre o autor

Ludwig von Mises

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.

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