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Economia

A PEC do "Orçamento de Guerra" e a bazuca do Banco Central

Os reais ganhadores e todos os perigos para o resto de nós

23/06/2020

A PEC do "Orçamento de Guerra" e a bazuca do Banco Central

Os reais ganhadores e todos os perigos para o resto de nós

Nota do Editor

Hoje, 23/06/2020, foi regulamentada pelo Banco Central a PEC que permite que a instituição, em uma medida inédita, possa comprar ativos privados (como debêntures, carteiras de créditos e certificados de depósitos bancários (CDBs) de bancos e fundos de investimento.

Em coletiva para explicar a medida, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse que a instituição "prefere pecar para o lado do excesso do que para o da parcimônia".

Eis aqui o resumo em PowerPoint da apresentação.

Abaixo, o artigo que publicamos sobre isso, ainda em abril deste ano.

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O Senado aprovou, nesta sexta-feira, a PEC 10/2020, do Orçamento de guerra

O objetivo da PEC é separar do orçamento geral da União os gastos para conter os danos causados pela Covid-19.

Clique aqui para ler a íntegra da PEC aprovada.

Este artigo irá abordar exclusivamente as novas e totalmente inéditas atribuições concedidas ao Banco Central.

Bazuca

A PEC autoriza o Banco Central — em tese, apenas durante o estado de calamidade pública, que vai até 31 de dezembro de 2020 — a comprar e a vender tanto títulos públicos quanto títulos privados nos mercados secundários 

Isso é inédito. Até então, o Banco Central sempre foi autorizado apenas a operar títulos públicos com instituições do mercado primário.

Eis como sempre funcionou:

a) O Tesouro Nacional faz leilões de títulos públicos para arrecadar dinheiro e com isso financiar seus déficits. O leilão ocorre no mercado primário, isto é, no mercado em que tudo se origina.

b) As únicas entidades que podem comprar os títulos do Tesouro diretamente nesses leilões são aquelas chamadas de dealers primários.

c) E quem são os dealers no Brasil? Os principais bancos do país e três corretoras. Eis a lista deles.

d) Apenas essas entidades podem participar dos leilões do Tesouro. Apenas elas podem comprar diretamente do Tesouro. Uma vez comprados os títulos, aí sim elas os revendem para todas as outras do sistema financeiro. Este é o mercado secundário.

e) Já o Banco Central faz as suas operações de mercado aberto exatamente junto a estes dealers: ele compra título do Tesouro em posse delas quando quer expandir a base monetária (por exemplo, em uma redução da Selic); e vende títulos do Tesouro para elas quando quer contrair a base monetária (por exemplo, em um aumento da Selic).

Até hoje, isso era tudo o que o Banco Central podia fazer: comprar e vender títulos do Tesouro junto a instituições financeiras listadas como dealers primários. Se uma corretora como Órama ou Easynvest, que operam apenas no mercado secundário, quisessem vender títulos do Tesouro ao Banco Central, não seria possível.

Agora, porém, com o Orçamento de Guerra, tudo mudou. Falando diretamente, o Banco Central não apenas passa a poder comprar títulos do Tesouro em posse de qualquer instituição financeira no mercado secundário (como corretoras que não são listadas como dealers), como também poderá comprar títulos privados em posse de qualquer instituição. 

Eis o que está escrito na PEC:

Art. 8º O Banco Central do Brasil, limitado ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º, e com vigência e efeitos restritos ao período de sua duração, fica autorizado a comprar e vender: 

I – títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional; e 

II – os seguintes ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central do Brasil: 

a) debêntures não conversíveis em ações; 

b) cédulas de crédito imobiliário; 

c) certificados de recebíveis imobiliários; 

d) certificados de recebíveis do agronegócio; 

e) notas comerciais; e 

f) cédulas de crédito bancário. 

§ 1º Respeitadas as condições do inciso II do caput deste artigo, será dada preferência à aquisição de títulos emitidos por micro, pequenas e médias empresas. 

Ou seja, o Banco Central agora adquiriu uma verdadeira bazuca. A PEC permitirá que qualquer instituição financeira em posse de títulos emitidos por empresas privadas possa revender esses títulos para o Banco Central, que agora pode criar dinheiro para comprar estes títulos.

Em tese, ao criar este mercado adicional e extremamente líquido para títulos privados, as empresas não mais terão problemas de financiamento. Dado que o Banco Central agora poderá comprar estes títulos no mercado secundário, então foi criada liquidez para estes títulos no mercado secundário. Investidores agora estarão mais dispostos a financiar essas empresas comprando seus títulos emitidos no mercado primário, pois poderão com mais facilidade revendê-los no mercado secundário, onde agora o Banco Central atua.

A PEC ao menos restringe os tipos de papeis que poderão ser comprados e vendidos pelo Banco Central. Como especificado acima, o BC só poderá comprar papeis que sejam classificadas como "BB- ou superior" no mercado local; que tenham comprovação de qualidade de crédito dada por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco; e cujo preço de referência tenha sido publicado por entidade do mercado financeiro credenciada pelo Banco Central.

Este "cuidado" foi incluído com o intuito de evitar brechas que permitiam que o BC comprasse "créditos podres", como dívidas vencidas e de difícil recuperação. 

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, estimou que a instituição poderá comprar até R$ 972 bilhões em papeis de empresas privadas

Os verdadeiros socorridos

A economia moderna se sustenta em um dinâmico sistema interconectado de crédito, formado por poupadores e tomadores de poupança, em geral intermediado pelos bancos. 

Quase toda empresa depende dos bancos para seu capital de giro e financiamento geral. Por sua vez, os bancos se ancoram nos bancos centrais, de cuja solidez depende o sistema.

O crédito tem crescido continuamente ao longo das décadas devido a uma crescente alavancagem de bancos e assim passou a se equilibrar, como uma pirâmide invertida, sobre uma quantidade muito pequena de reservas de caixa e de capital

Crises como a do coronavírus geram uma súbita demanda adicional de caixa por todos (bancos, indivíduos e empresas), o que, por sua vez, tende a causar pânico.

A raiz do problema é a enorme alavancagem perante a pequena quantidade de liquidez de curto prazo e de capital. Há conflito de interesses: os brasileiros preferem que haja bastante capital e liquidez nos bancos, mas estes discordam e têm interesse em aplicar os recursos e aumentar os lucros.

No auge da crise de liquidez, tornam-se inevitáveis medidas de exceção envolvendo injeção de liquidez. Walter Bagehot, economista e autor do clássico livro sobre o mercado de crédito "Lombard Street" (1873), é o autor mais citado em crises. Bagehot (pronuncia-se "badget") defendia que o Banco Central deve fornecer liquidez abundante, mas apenas a bancos solventes e a juros punitivos, e não por meios como compra de crédito privado.

O ideal seria que a liquidez adicional viesse de liberações de reservas preexistentes, e não de dinheiro criado "ex nihilo", ou seja, do nada, pelo Banco Central. Nesse sentido, o BC acertou ao liberar, no final de março, parte dos compulsórios sobre depósito a prazo, uma jabuticaba brasileira.

Eis o principal ponto: há espaço de sobra para liberação adicional de liquidez em compulsórios e por relaxamento de exigências de capital e liquidez, o que torna desnecessária a compra de crédito privado sob o argumento de incremento de liquidez.

Por isso, a real motivação parece ser um socorro a bancos e gestores de fundos que emitem ou carregam esses papéis privados, e que agora estão em dificuldades porque o valor de mercado destes papeis desabou e, ao mesmo tempo, está havendo resgates recordes nestes fundos

Ou seja, não é um socorro ao brasileiro, que tipicamente não tem ativo financeiro; e, quando detém, em geral é uma aplicação em caderneta de poupança ou em títulos pós-fixados que não sofreram perdas. Tampouco parece ser um socorro a empresas. É um socorro a bancos e a fundos de investimentos.

Dada a baixíssima liquidez desse mercado, há enorme espaço para abusos por meio de compras a um preço distinto do "preco justo", utilizando, por exemplo, como referência preços pré-crise.

Problemas

A compra de créditos privados no Brasil ainda não configura um QE, ou afrouxamento monetário tupiniquim, pois o QE ocorre apenas após os juros nominais serem reduzidos a zero. Ademais, um QE pode ser executado exclusivamente com títulos públicos.

Outro grande problema é que, ao comprar os títulos privados, a qualidade dos ativos em posse do Banco Central piora, e a moeda nacional tenderá a se desvalorizar mais perante as fortes. Uma moeda depende, dentre outras coisas, da qualidade dos ativos em posse da instituição que emite essa moeda. Essa é uma das definições de "qualidade da moeda". Se um Banco Central emite moeda comprando ativos ruins, então a qualidade dessa moeda será afetada. 

E piora: o Banco Central tampouco poderá reverter essa injeção monetária executando a operação contrária, como na política monetária tradicional. Se o BC expandiu a base monetária comprando um título privado de uma empresa que futuramente venha a falir, será impossível ele vender esse título e fazer o devido enxugamento da base monetária. 

Caso ocorra em escala maciça, a própria capacidade do Banco Central de fazer política monetária estará em cheque.

Para concluir

Por fim, mas não menos importante: quais as consequências de uma maciça injeção de dinheiro no mercado secundário em um cenário de restrição da oferta?

Na melhor das hipóteses, o dinheiro fica empoçado no sistema bancário ou apenas circulando no mercado financeiro. Se ele vazar para a economia real, teremos um cenário de mais dinheiro correndo atrás de menos bens e serviços. 

O leitor conhece o resto da história.

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Leia também:

Por que há uma escassez de dólares no mundo apesar das maciças injeções do Fed


Sobre o autor

Helio Beltrão

Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

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